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OPRESSÕES

Uma análise marxista sobre o caso Neymar Jr.

Karla Costa*, de Fortaleza, CE

Angela Davis

Angela Davis, no final de seu artigo Estupro, racismo e o mito do estuprador negro (1), faz algumas advertências que, ante de qualquer argumentação, precisam ser reproduzidos aqui e, por esse motivo, seguem.

“[…] parece que homens da classe capitalista e seus parceiros de classe média são imunes aos processos judiciais porque cometem suas agressões sexuais com a mesma autoridade incontestada que legitima suas agressões diárias contra o trabalho e a dignidade de trabalhadoras e trabalhadores”.

“Dada a complexidade do contexto social em que o estupro acontece hoje, qualquer tentativa de tratá-lo como um fenômeno isolado está fadada ao fracasso”.

“[…] a ameaça de estupro persistirá enquanto a opressão generalizada contra as mulheres continuar a ser a muleta essencial para o capitalismo”.

“O movimento antiestupro e suas importantes atividades atuais devem ser situados em um contexto estratégico que tenha em vista a derrota definitiva do capitalismo monopolista”.

Trinta e oito anos separam o texto de Davis do mais famoso caso da acusação de estupro imputada ao jogador de futebol Neymar Jr. Não escrevo esse artigo para retomar tudo o que foi dito sobre o caso. Acho pertinentes as críticas de Travesti Socialista publicadas no Esquerda Online sobre a difamação sofrida pela denunciante a partir da prática de pornografia de vingança realizada pelo jogador que se somou a já difundida culpabilização das vítimas de estupro pela sociedade. Em meio às muitas controvérsias sobre a veracidade do estupro, a denunciante já foi condenada pela sociedade.

Peço ao leitor que compreenda o caso acima descrito como um caso singular no interior de uma totalidade. Essa totalidade é a sociedade capitalista do tempo presente. Trinta e oito anos separam o artigo referido de Angela Davis e o caso da acusação de Neymar Jr., mas não há como negar a atualidade da análise da ativista, feminista e marxista estadunidense. Cheguei a esse artigo por indicação da feminista marxista Paula Farias, após assistir à série da Netflix When they see us, escrita e dirigida por Ava DuVernay – em outra oportunidade poderemos, caro leitor, discutir sobre a série.

Voltemos a nosso caso singular. Tanto Neymar Jr. quanto sua denunciante são indivíduos concretos e, na concreticidade da vida cumprem papéis. Esses papéis não podem ser abstraídos para se entender o caso e a construção desses seres humanos. Neymar é um jogador de futebol multimilionário que vive das benesses do capitalismo, ou seja, vive da distribuição do resultado da exploração da classe trabalhadora, a mais-valia. Como se não bastasse esse fato, o jogador se alia à ideologia dominante, apoiando e sendo apoiado pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro.

Para termos uma ideia aproximada – porque não consigo nem visualizar tal quantia –, segundo o Globo Esporte de fevereiro deste ano, Neymar tem o quarto maior salário da Europa € 3,06 milhões brutos por mês, o que equivale a R$ 12,9 milhões na cotação atual, enquanto Marta recebe 269 vezes menos que ele. Neymar é, então, um privilegiado. Seu privilégio se origina na acumulação indevida do resultado do trabalho da classe trabalhadora que tem como consequência nossa expropriação, a pobreza, a miséria, a fome, a morte e a subjugação da mulher como classe e como gênero à subalternidade. Neymar é parte do que nos oprime: o capitalismo e seu irmão, o patriarcado.

 Muito já foi dito sobre a mulher que acusa Neymar. A vida dela já foi exposta de todas as formas possíveis. É preciso entendê-la também como pertencente a uma classe. Por mais que ela seja modelo, branca, loira e esteja nos padrões que a sociedade capitalista valora como esteticamente belo, ela não é da mesma classe que Neymar. Mesmo que o fosse, como mulher, a avaliação social não seria diferente, pois, fazer parte do gênero feminino, está ligado à lógica de manutenção da sociedade capitalista que precisa nos subjugar, colocar-nos como seres inferiores, confinadas à esfera doméstica e submissas aos homens. A lógica de poder capitalista está intimamente ligada à lógica patriarcal. Elas não se separam. O homem que se vê como classe dominante vê-se também como gênero dominante. Indico aqui a leitura de Davis para compreender como a herança da exploração escravagista e a sexual reverbera na situação das mulheres da própria classe dominante.

Penso que as citações de Davis não estão aqui só para ser um argumento de autoridade sobre o que estou apontando, mas que elas falam por si mesmas. A análise de Davis, fincada no método marxista, não perde de vista um minuto a realidade concreta da sociedade de classes para compreender o fenômeno do estupro e suas consequências nefastas para os homens e mulheres negros da classe trabalhadora, bem como para as mulheres brancas em geral. Como sujeito concreto que é, Neymar pode não ter estuprado essa moça em específico. O grande problema aqui, entretanto, é o fato de ele ser membro de uma classe que compreende a licença e impunidade para fazê-lo.

Nossa luta, como mulheres da esquerda, não pode estar circunscrita à exigência de leis, investigação e punição para Neymar Jr., nossa luta é para que não existam neymares, pois a segurança de mulheres não depende da atuação do Estado burguês, mas “derrota definitiva do capitalismo monopolista”. Do mesmo modo, mas por vias completamente diferentes, o feminismo pejorativamente chamado de lacração que não perdeu tempo em acusar Neymar de estuprador e exigir punição comete a mesma legitimação do Estado de direito burguês e, também, se equivoca ao fazê-lo. Por isso tenho dito e volto a repetir, chamando as mulheres da esquerda a resgatar o marxismo como método de análise da realidade, que precisamos de teoria revolucionária para o feminismo e que essa, com todas as suas contradições e tendo sido iniciada por um homem, é a ferramenta para construir a mudança de nosso tempo.

Compreendo, então, que não cabe às mulheres de esquerda exigir apuração ou qualquer outro direito burguês ao Neymar, não porque eu possa dizer a priori que ele cometeu o estupro, mas por dois motivos principais, além de tudo o que disse até aqui: 1 – o direito é burguês, portanto ele já está do lado de Neymar, seja ele culpado ou inocente, e 2 – se o direito é burguês, exigir que ele seja justo é uma contradição em si porque ele é parcial por natureza. Para mim, a consequência mais grave de chamar justiça para o caso Neymar por meio da ilusão de que o Estado de direito burguês seja justo, é legitimar o poder dele como órgão da burguesia para punir quanto os únicos que sofrem realmente com o poder de punição do Estado burguês são os homens ou mulheres da classe trabalhadora.

  Se Neymar Jr., além de preto, fosse trabalhador pobre, morador de favela, nenhuma vírgula teria sido escrita nenhuma palavra teria sido pronunciada em sua defesa. Se quiserem saber como o capitalismo trata preto-pobre, assistam à série que mencionei no início desse artigo e leiam o artigo de Davis, depois, voltaremos a conversar.

*Karla Costa é cearense, feminista e professora.

 

 

NOTAS

1 –  DAVIS, Angela. Estupro, racismo e o mito do estuprador negro. In: Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.