As gigantescas mobilizações ocorridas no dia 15M em cerca de 250 cidades, reforçadas em menor escala pelo 30M, em defesa da Educação Pública e contra o contingenciamento orçamentário anunciados pelo MEC, reacendeu em amplos setores da população brasileira e principalmente entre estudantes, professores e técnicos, das diversas esferas da educação federal, estadual e municipal, o debate sobre a necessidade e o caráter da educação pública.
Temas como o financiamento das instituições, o modelo de gestão e escolha das autoridades, a democracia interna e a participação da comunidade, autonomia didático-pedagógica e liberdade de cátedra, a relação das universidades e escolas com as empresas privadas, os métodos de avaliação e padrões curriculares, bem como a pesquisa e a extensão, a existência do piso salarial nacional dos professores da educação básica, entre outros temas educacionais, assumiram uma relevância estratégica, após a vitória da direita nas eleições de 2018 e a posse de Ministros da Educação que promovem referenciais anti-iluministas.
No Brasil, uma das principais conquistas das lutas democráticas, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 com auge nas mobilizações pelas Diretas Já, que puseram fim ao regime ditatorial empresarial-militar de 1964-1984, após as grandes batalhas dos movimentos sociais e no âmbito da Assembleia Constituinte, foi assegurar na Constituição Federal de 1988, o Título referente à Ordem Social, onde se constitucionalizou direitos demandados pela grande maioria dos movimentos sociais dos estudantes e dos trabalhadores em educação que lutaram para assegurar uma concepção abrangente de educação pública do papel do Estado, nas esferas federal, estadual e municipal, tanto na garantia do financiamento como na autonomia de gestão e na defesa da liberdade de cátedra.
O título da Ordem Social na Constituição garante juridicamente direitos sociais, sem os quais é impossível se falar minimamente em democracia e cidadania, a exemplo da Seguridade Social (Saúde, Previdência Social e Assistência Social), Educação, Cultura e Desporto, Meio Ambiente, da proteção à Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso e dos direitos dos Índios, entre outros.
Essa seção talvez seja uma das mais odiadas pelo governo ultraliberal e protofascista de Bolsonaro e seus asseclas, pois – ainda que somente a existência normativa/legal não seja a garantia de sua execução plena, já que para que sejam efetivadas é preciso a implementação de políticas públicas reais e institucionais – para o projeto do bloco de poder hegemônico, cuja estratégia é reposicionar o Brasil aos patamares de barbárie social, qualquer referência legal aos direitos sociais tornam-se obstáculos reais aos serviçais de um projeto de país a ser neocolonizado.
A liberdade de cátedra ou liberdade acadêmica significa a liberdade de ensinar, aprender e pesquisar, bem como divulgar as artes, o pensamento e a produção de conhecimento. Daí que no Brasil tenha sido ampliada para o conceito de LIBERDADE DE ENSINO E APRENDIZAGEM. Tal conquista, não somente legal, mas constitucional, foi assegurada no Art. 206, que prevê, entre outros princípios, que haverá:
I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – Valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;
VI – Gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – Garantia de padrão de qualidade;
VIII – Piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.
Tais conquistas passavam, praticamente despercebidas na rotina de amplos segmentos da população que tiveram o acesso à educação pública básica ou universitária, pois já haviam se convertido em rotina e direito líquido e certo, o acesso de amplos setores populares das classes trabalhadores e das classes médias baixas às escolas, institutos e universidades públicas, inclusive como fator de mobilidade social no país.
Mesmo que tenha havido vários momentos de crises de financiamento, principalmente ao longo da década de 1990 que foram amenizadas parcialmente com a expansão das redes das universidades e institutos federais, promovida pelos dois governos de Lula, e mesmo existindo restrições mais estruturais reais aos segmentos mais explorados do proletariado urbano e das famílias camponesas mais pauperizadas, a existência da educação pública, gratuita e laica, é uma conquista das lutas populares e dos trabalhadores em educação.
Mas com o Golpe16 e, na sequência, com a ascensão da extrema direita ao poder, pela via eleitoral e com a adesão de setores de massas ao bolsonarismo, todos esses pilares constitucionais estão ameaçados, não somente o corte do financiamento anunciado pelo MEC, mas toda a concepção de educação e universidade pública, que hoje são garantidos aos amplos seguimentos da sociedade brasileira ao longo dos últimos 30 anos.
O bolsonarismo pretende interditar a autonomia universitária para facilitar a privatização
Para as Instituições Federais de Ensino Superior-IFES, o Art. 207 da Constituição Federal estabelece a garantia da autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Tentar provar emendas constitucionais é muito mais complexo e exige no processo legislativo um elevado quórum mínimo de aprovação de 2/3 dos parlamentares, tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado, além de dois turnos em cada casa. Por isso, o MEC a serviço de um projeto obscurantista, desde o governo Temer, e agora a serviço do bolsonarismo, vem tentando impor a interdição da autonomia universitária, não somente através dos anunciados contingenciamentos orçamentários de R$ 5,8 bilhões (com recuo parcial fake para tentar desmobilizar o 30M), buscando “punir” as universidades e institutos por estrangulamento do seu funcionamento, mas também através de atos administrativos coercitivos e das chamadas Notas Técnicas (que de técnicas tem tudo de políticas) que visam intimidar o pensamento crítico e a liberdade de opinião e associação, entre as quais se destacam:
- A Nota Técnica nº 400/2018, editada ainda sob o governo Temer, em dezembro de 2018, trata da formação das chamadas “listas tríplices” para escolha de reitores a serem nomeados pela Presidência da República em Instituições Federais de Ensino Superior. O documento instituiu o entendimento da Secretaria de Educação Superior/MEC sobre o assunto, substituindo a nota técnica anterior (nº 437/2011), abrindo a possibilidade de ingerência direta na escolha dos reitores, ferindo a autonomia constitucional, prevendo ao contrário da Nota anterior, que processos de consulta à comunidade universitária que adotem votação paritária (mesmo peso) entre docentes, técnicos administrativos e estudantes pode ser passível de anulação. A Nota Técnica nº 400 registra que consultas com “peso dos docentes diferente de 70% será ilegal, e deve ser anulada, bem como todos os atos dela decorrentes”;
- A instalação da mal chamada “Lava Jato da Educação”, instalada no dia 15 de fevereiro, para abrir investigações policialescas comandadas pela Polícia Federal para vasculhar medidas adotadas em gestões anteriores, envolvendo o ProUni e o Pronatec, quando quaisquer irregulares administrativas podem ser objeto de medidas administrativas previstas corretivas já previstas no Direito Administrativo, sem o espetáculo de operações policiais;
- Já a Nota Oficial de 30 de maio da Assessoria de Comunicação Social do MEC, visou intimidar a comunidade acadêmica para que não participassem do ato em defesa da educação do 15M, com ameaças de corte de ponto, e tentativa de proibição até dos pais dos alunos de divulgarem e estimularem protestos durante o horário escolar;
- Aprofundando as medidas coercitivas e de ataques à autonomia, foi editado o mais recente Decreto nº 9794 de 14 de maio, que prevê que a partir de 25 de junho, os reitores de universidades, CEFETs e institutos federais não poderão mais nomear os seus próprios pró-reitores e diretores de unidades. A nomeação caberá a Onyx Lorenzoni, ministro chefe da Casa Civil, e a Abraham Weintraub, ministro da Educação. E o mais absurdo é que os docentes indicados para os cargos terão que passar por investigação de vida pregressa feita pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e pela Controladoria Geral da União (CGU). O referido Decreto modifica também todo o sistema de nomeações de cargos em comissão e funções de confiança de competência originária do Presidente da República. Não afeta apenas as instituições de ensino. O decreto também cria o Sistema Integrado de Nomeações e Consultas (Sinc), no âmbito da administração pública federal.
O contingenciamento orçamentário, seguido das medidas de coerção, controle político e intimidação da comunidade acadêmica e suas organizações associativas, combinadas com ações de grupos fascistas nos ambientes universitários e escolares representam uma das principais escaladas da estratégia reacionária em criar um Estado bonapartista com características fascistas no Brasil que precisa ser derrotada. Caso contrário, também estarão ameaçados o caráter público e a gratuidade das universidades e institutos federais, estaduais e da educação básica nos estados e municípios.
A garantia constitucional de financiamento público, o livre pensamento e a livre pesquisa científica, a autonomia didático-pedagógica e administrativa, a liberdade de ensino e aprendizagem, a educação pública estatal e laica, o livre direito de associação, deliberação e de greve, só sobreviverão mediante o enfrentamento deste projeto reacionário, sem concessões, até sua derrota. A educação pública se levantou com força tsunâmica no 15M e seguramente será um braço decisivo para derrota definitiva do bolsonarismo!
Comentários