Recentemente a comissão de representantes de entidades de memória e anistia política, a qual integro, foi finalmente recebida em Brasília pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Foram cinco meses solicitando esta audiência, que, somente ocorreu após o empenho dos presidentes das Comissões de Direitos Humanos do Senado, senador Paulo Paim (PT-RS), e da Câmara dos Deputados, Deputado Helder Salomão (PT-ES).
A reunião pouco avançou, restando apenas a proposta da ministra de agilizar as sessões de julgamentos e a promessa de que agendaria uma reunião entre os novos conselheiros da Comissão Nacional de Anistia com as entidades.
As representações presentes questionaram primeiramente o fato de ter sido nomeado para Presidência da Comissão Nacional de Anistia uma pessoa que traz no seu currículo, enquanto ex-assessor parlamentar do então deputado Jair Bolsonaro, a atuação perante os Tribunais contrária ao direito de anistia política inclusive com elogios a torturadores.
Também se questionou a nomeação de oito oficiais superiores do Exército para comporem a Comissão de Anistia, sendo um destes defensor e admirador do Coronel Ustra, torturador durante a ditadura. Não é novidade para ninguém que este governo está repleto de oficiais militares em seus ministérios. Todavia, no que diz respeito ao tema da anistia política, os militares, enquanto corporação e categoria, são maioria nas acusações de prática de violação de direitos humanos nos processos submetidos à Comissão julgadora. Ou seja, sem nada pessoal contra os oficiais nomeados para a comissão, não se pode esperar isenção destes novos conselheiros quando forem julgar atos que envolvam seus pares, pois é sabido que o corporativismo militar impera enquanto regra geral na caserna. Sem falar na formação ideológica que tiveram, em especial na AMAN, sob o signo ainda da ideologia da segurança nacional e mentalidade da guerra fria, e que os faz não considerar 1964 como golpe e ter uma opinião própria sobre os que lutaram e resistiram na ditadura.
Justiça de Transição
Para além do desmonte da Comissão Nacional de Anistia, é preciso discutir a Justiça de Transição. O conceito e a proposta consiste em primeiramente revelar a verdade sobre os crimes do passado; fazer justiça após ampla e democrática apuração e do direito de defesa; promover a reparação histórica moral e também material as vítimas da ditadura, e, principalmente assegurar para o futuro mecanismos democráticos a fim de que não mais se repitam tais abusos, o que seria o papel dito reformador desta justiça transicional.
Infelizmente o Brasil ainda não alcançou plenamente nenhum destes objetivos, em que pese ter avançado, durante os governos de Lula e Dilma, nos quesitos de reparações financeiras individuais aos perseguidos políticos e avanços na questão da memória, tendo-se, entretanto, recusado-se a abrir a totalidade dos arquivos das Forças Armadas para que o povo brasileiro finalmente conhecesse toda a verdade sobre a repressão e seus responsáveis e o que ocorreu com cada um dos desaparecidos políticos.
O STF acabou por prestar um desserviço à justiça de transição, anistiando os torturadores do regime de 1964. Prova é que o Brasil, ao contrário dos demais países da América do Sul que passaram por ditaduras, não teve um único ditador condenado e preso, apesar de honrosos esforços de entidades de direitos humanos e de alguns membros de Ministério Público, que, inclusive, conseguiram obter a condenação internacional do Estado brasileiro em relação aos crimes perpetrados contra os homens e mulheres, na sua maioria jovens, que integraram a guerrilha do Araguaia. Em lugar disto, temos um judiciário que muito pouco, ou quase nada, reflete as questões trazidas pela justiça de transição (com exceção de alguns poucos procuradores do MPF de reconhecida e excepcional atuação nesta área) ocupando-se majoritariamente as instituições judiciais deste país em processar e encarcerar pobres negros, bem como uma lava-jato destinada a alimentar com atos judiciais os conhecidos atos políticos da direita no poder, o que está sendo confirmado pelo vazamento feito pelo site The Intercept.
Em lugar de justiça de transição, temos, na prática, a tentativa de uma transição para o retorno de práticas do regime anterior, que execuções como a de Marielle, o crescimento dos grupos paramilitares e a prisão política de Lula estão aí para não deixar dúvidas.
Em retrospectiva, a questão da justiça de transição no Brasil, do histórico movimento de anistia política, surgido nos idos de 1975, através da organização de mães, esposas, companheiras, familiares e amigos de presos políticos, denominado Movimento Feminino pela Anistia ( MFPA), (o qual três anos depois resultou na criação do Comitê Brasileiro de Anistia, o CBA), e consistiu em um movimento social e político que ainda não realizou plenamente a sua tarefa, seja de anistiar todos os perseguidos, punidos, ou no que diz respeito a elucidar os desaparecimentos, (assegurando-se o direito de sepultamento dos corpos por seus familiares), seja julgando e punindo os executores e mandantes dos crimes políticos realizados e principalmente desmontando os mecanismos civis e militares de repressão política que ainda remanescem no Estado brasileiro.
Isto é essencialmente a proposta da Justiça de Transição, embora na década de 1970 ainda não possuía tal formulação. Mas este é o seu significado maior: evitar que se repita o arbítrio!
Em verdade, o conceito de Justiça transicional foi exposto pela primeira vez em 2002, pelo então Secretário Geral da ONU, perante o Conselho de Segurança, enquanto uma diretriz de fortalecer os instrumentos democráticos em sociedades marcadas por violações de direitos humanos e regimes autoritários, em especial na America Latina, Ásia e África, sendo que instituições como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Comitê de Direitos humanos vêm aperfeiçoando entendimentos, julgamentos no sentido da valorização desta justiça, cujo fundamento maior, do ponto de vista jurídico, encontra-se no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e, no plano nacional, entre nós, no Artigo 4 da Constituição Federal que trata da prevalência do conceito universal de Direitos Humanos no Estado brasileiro, e especialmente o Artigo 8 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADTC) da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre a anistia aos perseguidos políticos, inclusive, desde 1946.
A urgência de uma efetiva justiça de transição é assim internacional. Destaque-se que são pelo menos 40 mil mortos! Esse seria o saldo das ditaduras da América do Sul entre 1960 e 1990. Só na Argentina foram 30 mil mortos e desaparecidos – no Chile a estimativa é de 3.500 e no Brasil, de 475 pessoas, apesar de haverem indícios de milhares, sobretudo entre camponeses sem identificação. Naqueles anos de Guerra Fria, o regime militar brasileiro esteve na vanguarda dos atos repressivos, sendo que, juntamente com o general Pinochet, à frente do governo militar chileno, criou em 1975 a Operação Condor – força conjunta de 6 regimes ditatoriais sulamericanos para combater o que denominava de inimigos vermelhos, majoritariamente jovens, intelectuais e trabalhadores que estiveram na luta pela democracia em seus países.
Pois é exatamente contra esta justiça de transição, que, sem pudor algum, se insurge o atual governo e assume-se enquanto verdadeiro inimigo e carrasco da memória e da anistia política, á frente do Estado brasileiro, quando nomeia defensores do regime autoritário para órgãos tipicamente de justiça transicional como a Comissão Nacional de Anistia, contrariando tanto o objetivo constitucional da anistia política prevista, como sua própria execução regulamentada pela Lei 10. 559/02.
Quando desmonta projetos e memória; quando indefere em massa pedidos de anistia política, sem a devida fundamentação legal; quando não reconhece as greves políticas e a perseguição sobre seus participantes e líderes; quando se recusa a continuar a busca pelos paradeiro dos corpos de ainda centenas de desaparecidos políticos; quando exonera peritos; quando se recusa a reintegrar plenamente nas forças armadas aqueles militares que opuseram-se ao golpe e foram por isto punidos, enfim, uma lista de atos e omissões que são uma peremptória negação da justiça de transição no Brasil, pois, ao contrário, tudo leva a crer que desejam mesmo o retrocesso, em que a transição seria em direção ao obscurantismo do passado.
Finalizando, este cenário de retrocesso na já limitada justiça de transição no Brasil está inserido em um dos objetivos estratégicos deste governo, ao lado da reforma da Previdência (que inclusive desnatura e também ameaça as pensões dos anistiados), estando sendo atualmente organizada a resistência também neste importante tema, com coletivos de anistiados sendo reorganizados pelos Estados, como em SP e RJ, onde plenárias foram formadas e estão reunindo dezenas de entidades de memória e anistia política, bem como já foram realizados dos eventos importantes em Brasilia, uma audiência pública na Câmara dos Deputados e Encontro na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, além de outras iniciativas, como a realização no próximo 27 de agosto de um Ato em defesa da Anistia e da memória no Auditório Nereu Ramos, da Câmara dos Deputados, em Brasilia.
Faz-se necessário, de fato e urgente, retomar com vigor o movimento pró-anistia, ampla geral e irrestrita, agora sob risco de profundo retrocesso, sob o governo Bolsonaro, através de sua reforma da Previdência que, como dito, ataca direitos dos anistiados políticos, o que exige a mobilização de todos os anistiandos e anistiados, mas igualmente a compreensão do movimento social e democrático de que a Justiça de transição deve ser uma das bandeiras da luta contra o avanço da pauta conservadora e de extrema-direita no Brasil, ao lado da resistência ás reformas da previdência e sistema penal, que partem do mesmo viés e projeto autoritário e de destruição dos direitos humanos e sociais.
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