Pular para o conteúdo
BRASIL

O governo da anticiência

Luis Felipe Miguel, de Brasília, DF
Reprodução

Ministro da Educação, em vídeo sobre “fake news”

As conclusões de uma pesquisa científica nunca são indiscutíveis. Pelo contrário, é próprio da ciência sempre estar aberta à contestação e ao debate. Mas isso se faz a partir de crítica interna séria, de reinterpretação dos dados a partir de outros ângulos ou outros enquadramentos teóricos, de novas pesquisas.

Descartar uma pesquisa científica apelando ao senso comum é não entender minimamente o sentido da ciência. Ela existe para desafiar o senso comum. Se o senso comum nos bastasse, não precisaríamos de ciência.

Dito isso, é constrangedor o ministro “da Cidadania”, Osmar Terra, difamando o trabalho de pesquisadores sérios porque o resultado não lhe agradou. E usando suas impressões pessoais, após um passeio por Copacabana, como argumento.

Eu poderia dizer que as ruas do Rio de Janeiro estão vazias porque as pessoas não saem de casa com medo de serem metralhadas pelos helicópteros de Witzel. Seria também uma maneira de generalizar a partir de um evento singular (em determinada hora de determinado dia, determinadas ruas estavam vazias) e tirar da cartola uma explicação que me agrada (seja ela epidemia de drogas ou governador psicopata).

Para não cair nesse erro tão primário, só tem um jeito. Fazer pesquisa. Foi o que a Fiocruz fez.

A fala do ministro se explica por ignorância ou mau-caratismo. Osmar Terra é médico. Certamente teve contato, em sua formação, ao menos com rudimentos do método científico. É difícil justificar sua fala por ignorância.

Se houvesse a intenção sincera de combater o vício e reduzir o consumo de substâncias nocivas, se houvesse preocupação de fato com a saúde pública, o conhecimento produzido pelas pesquisas seria o fundamento da produção de políticas governamentais, não o inimigo.

A paranoia sobre as drogas ilegais não apenas sustenta o discurso de muitos políticos da direita, que encontram um culpado para nossa mazelas sociais externo ao sistema capitalista, como garante a repressão permanente às populações marginalizadas e alimenta uma indústria florescente de “benemerência” sustentada com verbas públicas. Terra tem bons motivos para preservá-la.

Também não é difícil ver quais são os motivos para Ernesto Araújo insistir que não há aquecimento global. Ontem, na Câmara, ele voltou a dar vexame com um argumento estapafúrdio: as pessoas acham que há aquecimento global porque estão colocando os termômetros mais perto do asfalto.

Há uma comunidade internacional de cientistas que debate a mudança climática há décadas. Ela usa um conjunto extremamente amplo de medidas, equipamentos de alta sofisticação e simulações computadorizadas altamente elaboradas. Está munida de séries históricas complexas e maneja referenciais teóricos de ponta.

Essa comunidade chegou ao consenso de que existe um processo acelerado de aquecimento do planeta. E eis que vem o chanceler brasileiro e tira, da sua cabecinha de seguidor de um guru que acha que o sol gira em torno da terra, a informação de que os cientistas são “ideológicos” e não perceberam que estavam colocando seus termômetros no lugar errado.

Bom para o “agronegócio” que quer desmatar à vontade. Bom para seus chefes nos Estados Unidos, que querem emitir CO2 como se não houvesse amanhã. E não vai haver mesmo.

Não vou me estender, mas dá para olhar também para Paulo Guedes. Ele inventa os números que quer para justificar suas “reformas” e se aferra à mentira de que a implantação de seu receituário ultraliberal levará à prosperidade e ao bem-estar – contra todas as evidências. Com o auxílio inestimável da grande mídia, os muitos dados, argumentos e pesquisas que contradizem esse enquadramento são simplesmente ignorados. É como se não existissem.

Não é de hoje, aliás. Há décadas o debate sobre a Previdência Social é nosso melhor exemplo de pós-verdade institucionalizada.

Enfim: vivemos num país em que o combate ao conhecimento está se tornando política de Estado.

Este é mais um grande motivo para irmos às ruas. Em defesa da educação. Em defesa da liberdade de ensinar e de aprender. Em defesa da pesquisa e da ciência. Em defesa do pensamento.

 

* Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política da Unb.