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BRASIL

O ataque à educação e a determinação obscurantista do bolsonarismo

Marcelo Badaró Mattos, de Niterói, RJ
Alessandro Dantas

Domingo, 26 de maio de 2019. Milhares de pessoas saíram às ruas para apoiar as pautas mais reacionárias do governo Jair Bolsonaro. Muito se poderia dizer sobre essas manifestações. Quero aqui resgatar apenas duas imagens. A primeira é a dos manifestantes em Curitiba, arrancando uma faixa de um prédio histórico da Universidade Federal do Paraná, cujos dizeres eram “Em defesa da Educação”. No vídeo de um manifestante, orgulhoso com o feito, ele filma a retirada da faixa sob aplausos e gritos de júbilo e afirma coisas como “prédio público não pode ser utilizado de forma ideológica”; “dinheiro público com responsabilidade”; “nós estamos aqui buscando um Brasil melhor” e “É Brasil!”. Antes de arrancar a faixa, os manifestantes haviam pendurado outras, como uma na qual que se lia: “Olavo tem razão”. Segundo flash: em São Paulo, uma youtuber disfarçou-se de manifestante pró-Bolsonaro e testou o que considerava ser o limite da racionalidade dos manifestantes, com um cartaz em que escreveu “Chega de universidades! Armas sim, bolsas não!”. O resultado? Foi efusivamente aplaudida e choveram pedidos para fotos.

O que significa tudo isso? Trabalho em instituições federais de ensino desde meados da década de 1980 e comecei a frequentá-las como estudante no ano de 1980. Nessas quatro décadas, foram muitos os ataques à educação pública que pudemos presenciar. No fim da ditadura e nos anos da chamada “Nova República”, o perfil privatista que a ditadura buscou imprimir às Universidades Públicas foi em larga medida contido por fortes greves dos três segmentos (estudantes, servidores técnico-administrativos em educação e docentes) e por movimentos sociais em defesa da educação pública em geral. Foram conquistas importantes, como o fim do modelo fundacional de universidades federais, planos de carreira baseados no ingresso por concurso público e na valorização da dedicação exclusiva, vestibulares autonomamente geridos pelas instituições e, mais importante, dispositivos constitucionais garantindo a gratuidade do ensino público em todos os níveis, a autonomia universitária e a indissociabilidade entre ensino pesquisa e extensão como padrão de qualidade mínimo para que uma instituição pudesse ser considerada universidade.

Essa fase de avanços durou pouco. Nos anos 1990, a tônica foi outra. Dos governos de Collor a FHC, passando por Itamar, os ataques às instituições federais de ensino e à educação pública em geral, vieram orquestrados em torno do corte orçamentário e do bloqueio ao crescimento do sistema. Nas universidades federais, arrocho total, com congelamento de salários, bloqueio aos concursos públicos, corte brutal dos investimentos e expansão zero, além de medidas legais que cercearam a autonomia universitária. O sentido desse tipo de ataque ficava evidente pelo seu reverso: desregulamentação e financiamento público como estímulos à expansão do setor privado. As matrículas no ensino superior, que em 1980 somavam cerca de 1,38 milhão, das quais 64% no setor privado, haviam crescido pouco, para cerca de 1,66 milhão em 1994, mas com expansão maior do setor público, pois as matrículas privadas representavam agora 58% do total. Após dois mandatos de FHC, o total de matrículas chegou a 2,13 milhões em 2002, mas com uma expansão muito maior no setor privado, respondendo por 69% do total, que se recuperava com folga daquele breve crescimento proporcional do setor público derivado das lutas sociais da década de 1980.

No século XXI, os treze anos e meio de governos petistas representaram uma inflexão parcial. Ao invés do bloqueio anterior, veio o estímulo à expansão das instituições federais de ensino (universidades e institutos tecnológicos). Dezoito novas universidades, 173 campi universitários e 360 unidades de institutos federais foram criados. As matrículas no ensino superior federal saltaram de 505mil para 932 mil entre 2005 e 2014. A pressão dos movimentos sociais de luta contra as opressões resultou na conquista de políticas de ação afirmativa que mudaram o perfil estudantil. Hoje, conforme mostra pesquisa da Associação de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) recentemente divulgada, 70% dos(as) estudantes vem de famílias com até 1,5 salário mínimo de renda per capita (26,6% de famílias com até meio salário mínimo de renda per capita), 60,4% são egressos(as) de escola pública e 51,2% são negros(as). Ainda que os recursos para investimento e a contratação de pessoal não tenham acompanhado a expansão das vagas, algo que hoje cobra um preço caro no sentido da precarização das condições de trabalho e estudo, não há dúvida da importância dessa expansão. Por outro lado, o sentido privatista das políticas públicas não foi alterado. Pelo contrário, programas como PROUNI e FIES transferiram rios de recursos públicos para o setor privado, possibilitando que os fundos de investimento que gerenciam grandes grupos privados de ensino superior fossem os ativos mais valorizados na Bolsa de Valores por anos seguidos. Ao fim e ao cabo, a expansão do acesso ao ensino superior foi expressiva, mas a proporção de vagas nas instituições privadas continuou a crescer. Assim, se dos 3,48 milhões de matrículas em 2002, 69,8% eram privadas, nos governos do PT esse percentual saltou para cerca de ¾ do total, representando mais de 73% em 2016.

As políticas de governo nos anos 1990 e no século XXI foram profundamente influenciadas pelos setores empresariais, organizados em institutos e movimentos que atuaram da venda de pacotes educacionais para a escola pública até a formulação de projetos de lei (como o próprio Plano Nacional de Educação). Tais iniciativas atendiam a seus interesses de negócios no setor e ao horizonte político mais amplo de submeter a educação à lógica da formação de força de trabalho dócil para um mercado cada vez mais selvagem e de conformação das consciências ao horizonte hegemônico do capital. Empreendedorismo, flexibilidade, competências, meritocracia etc. foram palavras incorporadas ao vocabulário escolar e aos objetivos das políticas públicas na área. No entanto, a roupagem que esses interesses burgueses vestiram para difundir seus projetos de classe foi a da defesa da educação. “Todos pela Educação!” foi mote de campanhas publicitárias, subtítulo de políticas públicas e denominação da grande articulação empresarial que incidiu sobre o setor. Do slogan “todos pela educação” como símbolo do esforço para construção de consenso em torno das propostas privatistas da classe dominante, para a associação entre “é Brasil!” e a destruição da faixa “em defesa da Educação” – ou para os aplausos ao chega de universidades!” – houve um salto. No abismo.

O “espetáculo” a que estamos assistindo, nas declarações do presidente da república e dos ministros da educação, assim como nas manifestações em apoio às suas propostas, é muito diferente de todos os ataques que sofremos nas últimas décadas. Sim, os interesses privatistas continuam aí e os magnatas do ensino privado continuam rondando como abutres o cheiro de carniça que farejam no desmonte das instituições públicas. As ações dos conglomerados educacionais subiram quando o MEC anunciou os cortes, a irmã de Guedes preside uma associação de privadas da educação, sabemos bem disso tudo. O capital continuará a lucrar, ninguém duvida. A questão é que Bolsonaro e os bolsonaristas não tem como principal motivação para atacarem a educação pública o interesse econômico privatista imediato. Suas metas são simplesmente negativas: a destruição das universidades públicas; a completa sujeição da escola pública ao obscurantismo anticientífico; a censura ideológica contra qualquer forma de pensamento crítico e o fim das mínimas garantias de direitos e de exercício de uma sociabilidade menos opressiva para mulheres, população LGBTI+, negros e negras, que as instituições educacionais públicas ainda promovem. Esse é o programa e é isso que motiva o apoio de manifestações como a do dia 26 de maio.

Quando um ministro escarneia do trabalho desenvolvido pelos(as) educadores(as); quando outro ministro despreza uma pesquisa científica em nome da sua opinião pessoal; quando um advogado da união quer que os tribunais autorizem a polícia a vigiar o conteúdo das aulas nas universidades; quando uma parcela expressiva da população apoia um governo desse tipo; quando milhares de pessoas estão dispostas a ir às ruas para rasgar faixas em defesa da educação, é difícil não pensar que estamos a um passo da queima de livros em praça pública, do banimento do pensamento e dos(as) pensadores(as) que resistem a se dobrar, do sepultamento da ciência. Enfim, ainda que o governo Bolsonaro seja um poço de contradições e disputas internas, cuja resultante não podemos predizer sem grandes riscos de erro, é difícil não perceber o significado desse ataque obscurantista à educação pública e à produção de conhecimento: o fascismo (chamem de “neo”, “proto”, como quiserem) já chuta nossas portas, com força.

Ele não será contido pelas negociações palacianas e parlamentares ou pelos “pactos” entre os poderes dos de cima. As eleições que o levaram ao governo não são a via privilegiada para lhe caçar o poder, pois ele não respeita suas regras tradicionais. Os burgueses que conjuraram tais demônios para acelerar a espoliação de quem vive do próprio trabalho podem tapar as narinas para seu cheiro de enxofre, mas não farão mais que jogar biscoitos aos cães raivosos na esperança de que abanem os rabos em sinal de fidelidade. Continuam apostando que lhes servirão como instrumento para as tão esperadas “reformas”, mesmo que fora das coleiras possam ser um risco contra os próprios calcanhares.

A responsabilidade de derrotar o governo Bolsonaro só pode ser nossa, desde as ruas. Começou em 15 de maio, continua neste dia 30, segundo dia nacional de luta em defesa da educação, e seguirá em 14 de junho, na greve geral contra a reforma da previdência e os cortes na educação. A luta não acabará com esses momentos de resistência, mas eles possuem o potencial de dar início a uma mudança mais qualitativa na correlação de forças sociais hoje tão hostil aos interesses da maioria trabalhadora da população. Não é pouca responsabilidade. Eles querem destruir nosso presente e inviabilizar qualquer futuro. Estejamos à altura.