Um golpe no escuro

Hugo Bellucco*
EBC

Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante café da manhã com Dias Toffoli, Presidente do STFl; Davi Alcolumbre, Presidente do Senado; Rodrigo Maia, Presidente da Câmara dos Deputados e ministros.

No Brasil contemporâneo as linhas aparentemente dissonantes do ultraliberalismo econômico e do conservadorismo protofascista continuam atadas por cima das cisões no varejo e de algumas debandadas e expurgos pontuais: Maia ama Guedes, que ama Moro, que ama Wientraub, que ama Salles, que ama Bolsonaro, que ama Guedes, que ama, claro, toda a quadrilha. Estão do mesmo lado nesse combate bifronte em que a desregulamentação dos direitos trabalhistas, o ataque aos serviços públicos, o programa de privatizações desenfreadas, o silenciamento dos movimentos sociais, a ofensiva contra a seguridade, a destruição do meio ambiente e a ameaça à autodeterminação dos povos se retroalimentam e insuflam o extremismo ideológico de extrema direita, armamentista e pró-americano. Este, o projeto antissocial, empresarial-miliciano, infelizmente é mais sólido e enraizado do que as trapalhadas e rusgas de superfície protagonizadas pelos seus fantoches parecem fazer crer. Parte da esquerda comete um erro gigantesco e paralisante ao subestimar o poder e a solidez dessa aliança.

A ascensão conservadora ainda em curso é a flor pestilenta de uma democracia recente e desmemoriada. Para o sucesso da empreitada sinistra de 2018 foi preciso reativar um velho fantasma. O anticomunismo revive, ativo, como se voltasse de uma hibernação nas catacumbas da guerra fria, ou como se saltasse, sem mediações, de um velho livro de Stanislaw Ponte Preta. Como lhe é característico, apela para a “família” e o medo, enquanto suas fileiras estão cheias de tarados e psicopatas; não suporta a diversidade, mas conta com a ajuda involuntária de uma parcela frívola da militância culturalista e pós-moderna; é patriota, mas entreguista; confunde-se agora com a ética protestante, mas pode ser católico, liberal, sionista, fascista, caipira e tecnocrata; exibe uma máscara de seriedade, mas é grotesco; odeia a democracia, mas elege uma legião e recebe muitos votos. Alimenta-se das fantasias regressivas da história.

Por dentro dessa mitologia profundamente ideológica que se apresenta como missão purgatória contra a esquerda, contra a “corrupção” e contra as políticas públicas compensatórias dos últimos vinte anos, vai se consolidando o casamento sem escrúpulos do liberalismo selvagem com um tipo novo de conservadorismo militarista. A fábrica de ficções e de irracionalismo que se alastra incrivelmente e para além do debate político propriamente dito trabalha para isso e contou, no último pleito, com o aval dos altos poderes judiciários e dos grandes monopólios jornalísticos. Com níveis diferentes de adesão e afinidade ideológica, o campo da extrema direita em ascensão ainda não tem um partido sólido nacionalmente articulado, mas ao mesmo tempo tem vários. Já trouxe à luz o seu “mito”, desloca a pauta política e cultural para o seu campo, arma-se literalmente e toma iniciativas autônomas de ação direta.

A recepção das práticas propagadas pelo boslonarismo constituiu, em grande parte, uma espécie de apoio reativo e relativamente superficial, mas que mobiliza camadas profundas de ressentimento, de moralismo e de medo, mais ativos entre frações aburguesadas da chamada “classe média”. Trata-se de um enigma que ainda está para ser decifrado, mais do que a personagem central em si mesma, rasa e unidimensional. Por outro lado, um dos sentidos dessa “nova política” em andamento é realizar plenamente o desmonte do Estado anunciado pelo neoliberalismo na década de 1990, mas que Fernando Henrique Cardoso não conduziu até o fim. O custo social desse projeto de longo prazo é muito alto. Precisa, para realizar-se plenamente, extirpar toda contenção e contrapeso historicamente acumulados, mesmo que tênues. Não é casual que os protagonistas do assalto à previdência defendam-na como se fossem síndicos, como se uma sociedade complexa de um país continental fosse um condomínio de apartamentos, possivelmente um condomínio na Barra da Tijuca. A chantagem monumental em curso necessita de doses cavalares de falsificação, ocultamento e fraude.

Ao lado das políticas de austeridade fiscal que já estavam na mesa com Joaquim Levy durante o último governo do PT, as ações diretas dos grupos civis exaltados por uma visão de mundo de direita cresceram à sombra das instituições da nova república. Nas corporações militares, consolidou-se e continua bastante sedimentada a ideologia do extermínio e do justiçamento, partilhada e francamente legitimada por agentes estatais e políticos conservadores de todas as esferas. Para insuflar esse bloco, a campanha de ódio à esquerda, aos direitos humanos e às minorias (que muitas vezes são maiorias) se beneficia do domínio territorial dos chefes armados e articulados em mandatos e postos no Estado. Esses elementos relativamente dispersos estão em processo de unificação programática. Junto com o fundamentalismo evangélico, devem ser uma presença política anda mais ostensiva nos próximos anos, seja qual for o desfecho da crise.

Quando o fastio pela política é sequestrado pela política da classe dominante camuflada de antipolítica, figuras como Witzel, Doria e Bolsonaro em postos de comando passam a ser a legião. Esses recentes fenômenos eleitorais são expressões emblemáticas e já não mais excêntricas da crise permanente de um sistema que não é feito para funcionar de acordo com suas próprias regras formais. Há que se considerar que uma parte significativa da classe trabalhadora ainda apoia o governo eleito. Quase sem espaços coletivos propiciatórios para a transformação da consciência adquirida da exploração diária em revolta construtiva, o ressentimento, o egoísmo e o medo também ganham espaço na consciência aflita de uma parte da juventude, sobre quem paira o assédio interessado em torná-los agentes da violência contra a sua própria integridade.

Nesse contexto decisivo e arriscado que o país atravessa, o admirável empenho crítico da esquerda socialista precisa levar a uma tentativa eficaz de avanço na formulação, em linguagem clara e sintética, de um programa básico, um conjunto de pontos fundamentais dirigidos para o corpo a corpo imediato com a classe trabalhadora, sem a qual a resistência não poderá nos livrar do horror.

*Hugo Bellucco é historiador e professor de história na rede municipal de Duque de Caxias.