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Colunas

Os inimigos da liberdade saíram às ruas

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Sangue frio e olho vivo. No passado domingo, os inimigos da liberdade saíram às ruas. Já é possível retirar duas conclusões rápidas sobre as manifestações de apoio a Bolsonaro.

Primeiro, foram ações de uma franja mais ressentida e enfurecida da contrarrevolução, mas sem conseguir arrastar setores de massa da classe média. No domingo, a mágoa da classe média com o Brasil em estagnação e decadência saiu às ruas vestida de amarelo. A ansiedade, a angústia, a insegurança diante do futuro continua radicalizando setores sociais intermédios que fantasiam que a sua vida deveria ser mais segura, como se vivessem na Europa, ou nos EUA, que passaram a visitar em excursões. O que move esta multidão zangada é uma visão do mundo. Compartilham a percepção ingênua de que o problema do Brasil é a roubalheira. Mas é muito mais do que o mal estar com a corrupção. É o cada um por si, todos contra todos.

É uma nostalgia romantizada de ordem e autoridade em cidades em que o abismo social da desigualdade permanecia segregado e invisível nas favelas e periferias. É um medo social profundo diante do perigo de empobrecimento em uma sociedade em que o dinheiro define o estatuto do privilégio. É uma hostilidade ofendida contra os impostos que pagam e os serviços públicos que não recebem. É uma uma aflição triste e uma amargura invejosa.  Cobiçam o modo de vida dos, realmente, muito ricos. Têm muita pena de si mesmos. Desprezam a condição da maioria pobre..

É o ódio contra a auto-organização orgulhosa dos LGBT’s, o rancor contra o movimento negro que legitima as campanhas que criminalizam o rascismo, o horror diante do feminismo que arrebata a nova geração de mulheres jovens. Tudo isso associado à repulsa e desrespeito que têm pelos sindicatos e movimentos populares, a aversão e desdém que têm pela esquerda.  Têm muita pena de si mesmos,

O bolsonarismo errou ao convocá-las sob a bandeira bonapartista, embora tenham tentado, nos últimos dias, se reposicionar, atabalhoadamente.

A condução errática, ziguezagueante de Bolsonaro – convoca, mas não vai – teve um efeito desagregador de sua base. Não conseguiu o impacto que necessitava para desafiar o centrão com a bandeira de “todo o poder ao capitão”. Em consequência, dividiu a extrema-direita. A “operação abafa e enquadramento” de Bolsonaro, a partir de amanhã, terá mais dificuldades. Segundo, o outro lado: esta divisão na extrema-direita levou a ala neofascista a sair sozinha nas ruas, pela primeira vez. Arriscaram. Saíram sob suas próprias bandeiras. Isso foi uma mudança de qualidade. A primeira conclusão é mais importante que a segunda. Muito mais importante. Mas não anula a segunda.

Foi derrota parcial. Eram muito menos numerosos que a grandiosa mobilização de jovens em defesa da Educação pública. Perderam a hegemonia nas ruas que haviam conquistado em 2015/16. Mas não era uma iniciativa “frontal”. Desde o início era um movimento “lateral”. Se reposicionaram nos últimos dias. Uma corrente neofascista dura está, todavia, em construção.

Estão no governo e na disputa pelo poder. Portanto, também acumularam forças.

Os neofascistas pensam que são o partido dos que não têm partido. Na verdade, são o embrião do partido que quer destruir todos os partidos.

São os inimigos da liberdade.