Ao longo dos primeiros meses desse ano de 2019, tem chamado atenção as declarações e a conduta do governador da Bahia, o petista Rui Costa. Tão logo encerraram-se as eleições, Rui não esperou nem a virada do ano para expor as contradições entre o seu discurso de compromisso com a democracia e direitos sociais, e a aplicação de uma agenda regressiva, liberal e de arrocho aos trabalhadores. No apagar das luzes de 2018 encaminhou um aumento na alíquota previdenciária do funcionalismo de 11 para 14%. Outro desagradável presente de natal foi o ataque ao Estatuto do magistério superior da Bahia e o fechamento de escolas. Com a chegada de 2019, o compromisso com a resistência democrática deu lugar a um flerte com os projetos e até mesmo, pasmem, a defesa da governabilidade de Bolsonaro.
Logo no dia 01 de janeiro, Rui declarou em entrevista ao Estadão: “Farei o que puder para ajudar o governo federal. Claro que vou fiscalizar para que o Estado da Bahia e o Nordeste não sejam prejudicados”. Na ocasião do lançamento do projeto Anticrime de Sérgio Moro, o governador petista prontamente se posicionou dizendo que: “No geral, o pacote tem o nosso apoio. Tem maior rigidez no combate ao crime organizado, embora não tenha dado tempo de ler todas as vírgulas.” (Correio da Bahia). No que diz respeito a reforma da previdência, Rui se limita a questionar a capitalização: “Se retirar esse item, eu acho que fica mais fácil aprovar a reforma da Previdência, porque os outros pontos, aí é um debate de modulação, é diferente. é discutir pra cada setor qual a idade mais justa, mais correta” (Bahia Notícias)
Sobre os exemplos acima, Rui Costa parece fingir não saber, mas deve entender muito bem que a defesa da governabilidade de Bolsonaro é, no mínimo, uma cumplicidade com a sustentação do seu projeto de poder e a sua agenda de ferozes ataques aos direitos sociais e as liberdades democráticas. Portanto, é evidente que a governabilidade de qualquer governo da direita, e mais ainda de extrema-direita, não pode ser, de maneira alguma, um compromisso da esquerda.
Já sobre o projeto Anticrime de Sérgio Moro, a posição de Rui Costa deixa explícito a sua identificação com uma lógica autoritária de conceber a segurança pública. Chefe do executivo desde 2015, Rui, assim como seu antecessor Jaques Wagner, nada fez para inverter a lógica racista e genocida do sistema. A roda da criminalização da pobreza e genocídio da juventude negra seguiu funcionando plenamente. Em 2015, no seu primeiro ano no governo da Bahia, 299 pessoas foram mortas em decorrência de ações da PM baiana. Foi nesse mesmo ano que ocorreu a terrível Chacina do Cabula, na qual policiais executaram 12 jovens na Vila Moisés. Na época Rui Costa comparou aqueles policiais a artilheiros na cara do gol. Caso aprovado, o novo projeto de Moro deixará esses artilheiros ainda mais à vontade.
Já em relação a reforma da previdência, enquanto os movimentos sociais defendem que direitos não se negociam, mas ainda quando se trata de algo tão caro como a previdência social, Rui assume uma posição de disputar os pontos “bons” e “ruins” do projeto. A carta dos governadores do Nordeste, assinada por Rui, crítica a capitalização e a mudança nas regras para o trabalhador rural, entre outros pontos absurdos do texto da reforma apresentado por Guedes e Bolsonaro. Porém, não expressa oposição frontal a premissa mentirosa que atribui a responsabilidade pela quebra da previdência aos trabalhadores. Tão pouco lança luz sobre o déficit da previdência. Se hoje há um rombo, é porque há um roubo. A dívida das grandes empresas com a previdência soma 56 bilhões de reais, exatamente o tamanho do rombo no ano passado.
As lições de como não deve se comportar um governo da esquerda não pararam por aí. As universidades estaduais baianas completaram essa semana 40 dias de greve. A principal causa do movimento paredista de docentes e estudantes é um contigenciamento de verbas da ordem de 110 milhões de reais. Contigenciamento é, na prática, a diferença entre aquilo que está previsto no orçamento e o que de fato é repassado pelo governo as Universidades. No popular, é a tesourada. Qual foi o governo que neste mês de maio se utilizou do mesmo expediente? Isso mesmo, o governo Bolsonaro. O ministro da Educação, Abraham Weintrub, ainda utilizou o governo Rui como exemplo. Para aumentar a vergonha, a base bolsonarista do Congresso denunciou, de forma oportunista é claro, o corte dos salários imposto por Rui Costa aos docentes.
E tem mais, ainda no que diz respeito a educação, Rui Costa declarou num almoço com jornalistas que a cobrança de mensalidade nas Universidades para alunos que tem condições, não deve ser tratada como tabu. Uma pesquisa da Andifes demonstrou que nas Universidades Federais 70,2% dos estudantes tem renda per capita de até 1,5 salário mínimo, e que também 51,2% dos estudantes são negros. Além de desconhecimento sobre a Universidade pública, as declarações de Rui Costa vão na contramão das bandeiras históricas da esquerda brasileira, que sempre defendeu democratização e ampliação do acesso, além da afirmação do caráter público das Universidades. Sugerir o pagamento de taxas ou mensalidades é um flerte mais do que perigoso com o projeto de privatização das Universidades defendido por Bolsonaro, Paulo Guedes e o ministro da educação.
Rui simboliza uma estratégia historicamente esgotada
Se as declarações políticas de Rui Costa, e sua conduta a frente do executivo baiano chamam atenção, também não nos deve passar despercebido a apatia da direção nacional do PT frente as ações do governador baiano. Na última semana a direção nacional de juventude do PT publicou uma nota exemplar criticando duramente as posições do governador a cerca da educação. Exceto esse caso isolado, o silêncio tem sido a tônica tanto do PT baiano, quanto da direção nacional do partido dos trabalhadores. Porque não se pronunciam? Porque permitem que o governador atue com o aparente aval do partido?
Na humilde opinião do autor dessas linhas, isso ocorre porque Rui Costa é a máxima expressão de uma estratégia de poder que, ainda hoje, é alimentada pelo petismo. Uma estrategia de conciliação de classes que possuem interesses distintos, patrão e trabalhador. Uma estratégia que se concretiza em governos que sustentam sua governabilidade com base em alianças palacianas com a velha política. A chapa da reeleição de Rui Costa, por exemplo, contou com 14 partidos. Destes, 9 tinham apoiado o golpe contra Dilma em 2016. O PP, partido do Vice-governador João Leão, e o PSD dos senadores aliados Otto Alencar e Angelo Coronel, contribuíram com 67 votos no impeachment escandaloso de 2016.
A escolha por caminhar ao lado dos mesmos coronéis da velha política tem implicações diretas nas decisões e nos limites do governo. Sob os governos do PT na Bahia, avançou a entrada de capitais estrangeiros na economia, ganhou volume a prática de desonerações e renúncias fiscais para as grandes empresas. De 2015 a 2017 o governo abriu mão de uma receita de 8 bilhões de reais por conta de renúncia fiscal. Esse dinheiro faz falta na hora de fechar as contas. E quem sofre é o funcionalismo público, a agricultura familiar, a saúde, educação e as políticas sociais de promoção de moradia, demarcação de terras e um longo etc.
Com o golpe de 2016 também aprendemos que as classes dominantes nunca estão satisfeitas. Não adianta, como muitas vezes diz o próprio Lula, falar que os bancos ganharam como nunca em seus governos. Eles sempre querem mais e mais, e não possuem nenhuma gratidão, muito menos compromisso “republicano” como gosta de dizer Rui Costa. Fraturaram o regime para impor um golpe parlamentar, e agora estão rasgando toda a Constituição de 88 para tentar impor um novo e regressivo pacto social.
É preciso escolher um lado
Ou se escolhe o lado de quem defende os direitos sociais e as liberdades democráticas, ou se coloca ao lado de quem acha que se deve deixar Bolsonaro governar. As duas coisas não dá. Um governo de extrema-direita como Bolsonaro possui uma missão estratégica: A derrota histórica da classe trabalhadora e do conjunto dos explorados e oprimidos. Justamente por isso, enfrentar esse governo exige da esquerda a busca pela frente única da classe trabalhadora. Uma busca real e sincera, comprometida por organizar uma defesa coesa e forte para resistir os ataques.
O desprezo a democracia nutrido pelo bolsonarismo, a sua aversão a livre expressão, a ciência , a cultura e as artes, exige a conformação de uma ampla resistência democrática para evitar uma regressão a barbárie. Aliás, a barbárie já está diante de nós, mostrando suas garras. Basta observarmos o crescimento do genocídio, o hiperencarceramento, o machismo e a lgbtfobia. Por isso além da unidade da classe trabalhadora, forjar uma resistência democrática também é uma tarefa para fazer frente a esse governo.
Que contribuição o governo Rui Costa, com o aval da direção do PT, tem dado para essas duas tarefas tão urgentes? Passados cinco meses de governo Bolsonaro, o governador do maior Estado administrado pelo PT nos dá todo o direito de acreditar que ele prefere não tomar parte nessa luta. E quando não se toma parte numa luta entre oprimidos e opressores, você acaba se juntando a esses contra os primeiros.
A dialética da superação do velho pelo novo
A máxima unidade pra lutar, e a mais ampla aliança democrática possível para resistir, não tem sinal de igual com requentar velhas estratégias. Não dá pra simplesmente dar uma nova demão de tinta vermelha na parede, e ignorar as infiltrações que ameaçam sua estrutura. É na dialética da unidade na luta, mas também da reflexão crítica dos limites de estratégias como a do lulopetismo, que um novo caminho precisar ser trilhado. Recai sobre nossos ombros a exigência de construir algo novo.
Rui Costa não é, infelizmente, um ponto fora da curva. Ele é a máxima expressão da estratégia que nos trouxe até aqui. Uma estratégia de conciliação com a velha política, gestada pelo núcleo político da direção petista, e que produziu uma esquerda institucionalizada de olhos e ouvidos fechados para as bandeiras históricas que mexem com a vida e o destino dos 99% da população. Quando nós da esquerda apontamos as nossas diferenças, não é um exercício de vaidade, e muito menos uma ameaça a unidade pra lutar. É uma obrigação com o presente de luta, e um compromisso com o futuro. Quem se levantou contra o golpe, a prisão de Lula, o assassinato de Marielle, que entoou o Ele Não, se empenhou no vira voto, e foi pra rua no recente 15M defender a educação, espera e nos cobra um horizonte diferente.
O PSOL carrega uma partícula dessa responsabilidade de superação da estratégia histórica petista.
A Aliança com o MTST, com as lideranças indígenas, os coletivos de mídia independente e demais movimentos sociais é um passo nesse sentido. É preciso uma alternativa de esquerda que não se satisfaça apenas com viabilidade eleitoral, e que tenha uma sede insaciável por um projeto de transformação social. Uma esquerda reconectada com os chãos: O da fábrica, das comunidades urbanas e do campo, das salas de aula, das ruas!
É por isso que os debates realizados por Guilherme Boulos junto com os coletivos da juventude sem medo atraíram alguns milhares de pessoas.Gente identificada com a ideia de retomar um perfil de esquerda conectado com o trabalho na base, com a luta direta. Uma nova geração ingressou na vida política em um momento muito difícil para o país. Que estejamos a altura de construir junto com ela um novo caminho, uma síntese superadora na forma de um programa e uma estratégia para uma verdadeira transformação social.
“No presente a mente, o corpo é diferente. E o passado é uma roupa, que não nos serve mais”
Belchior, velha roupa colorida.
*Jean é historiador e membro da direção Estadual do PSOL-BA.
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