Ô Brasília, tenho curiosidade de conhecer mais esse avião, mas, infelizmente, nunca consegui sair do circuito convencional das atividades políticas. As letras do GOG ainda são a minha reflexão mais apurada sobre o dia-a-dia de quem habita essa loucura implantada no meio do Cerrado. Enquanto isso, desbravo as peculiaridades da capital nacional como posso.
Esses dias me surpreendi com uma passagem dos Condenados da Terra (1), em que Franz Fanon cita Brasília. Ao discutir a descentralização do poder para pensar o desenvolvimento regional equilibrado nas nações pós-coloniais, o revolucionário negro cita a capital como um exemplo da necessidade de “desacralizar a capital e mostrar às massas deserdadas que é para elas que se decide trabalhar”. Para ele, “o interior deveria ser privilegiado” e “Em último caso, não haveria nenhum inconveniente em que o governo se estabelecesse fora da capital”.
O martinicano via, corretamente, as capitais comerciais como uma herança colonial. Também estava implícita nessa lógica uma política coerente com a sua visão sobre o sujeito revolucionário em Argélia e nos países dominados pelo colonialismo, que seriam as massas camponesas, o lumpemproletariado urbano, os sujeitos que viviam, ao mesmo tempo, submersos no mar de sangue e espoliação imperialista e fora do alcance da estratégia e tática das organizações revolucionárias convencionais.
Só que a construção de Brasília significou o contrário: o centro econômico do Brasil – eixo sul/sudeste – nunca se desfez, tampouco o poder político se descentralizou, do contrário, concentrou mais riqueza e densidade demográfica, especialmente no entorno de São Paulo, onde os grandes conglomerados econômicos elaboram as decisões políticas e encaminham através de seus agentes no Distrito Federal. Sabiamente, ele já identificava que Brasília nascia como “nova capital tão monstruosa como a primeira”, mesmo com os traços ousados do arquiteto, como disse Djavan. “O único interesse dessa realização é que hoje existe uma estrada através da selva”, complementa.
Fanon também afirmou que a “arrogância do Rio de Janeiro era um insulto ao povo brasileiro”, referindo-se, presumo eu, a elite carioca, marcadamente anti-povo. Ele não tinha como prever o grau de decadência política e moral que as gerações futuras desse grupo social alcançariam, tampouco poderia imaginar que a “monstruosidade” identificada como traço constituinte da antiga capital daria lugar ao laboratório das piores experiências de controle neocolonial racista do país. De todo modo, penso que sua análise sobre a gênese das elites nos países de origem colonial ajuda a compreender tal dinâmica.
O manifesto político e teórico foi escrito com a mente e o coração noutro contexto, em 1961. Porém, atualmente, de Brasília ao Rio de Janeiro, o ar que se respira é de crise e conspiração, sob os mandos e desmandos de governos subordinados por inteiro à metrópole moderna. A violência como forma de dominação foi reconfigurada e segue presente em todos âmbitos da sociedade, da ação cada vez mais letal da “gendarmeria” carioca aos ditames racistas dos “professores de moral” que residem em Brasília.
O mais instigante é que o parágrafo que motivou a minha reflexão inicia com a emblemática frase “A hora de uma crise nova crise nacional não está longe”, perfeitamente condizente com os dias atuais.
NOTAS
1 – Os condenados da Terra, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. A citação referida está na página 153 dessa edição.
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