É possível derrotar este governo farsante

Luiz Araújo
Andes

A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. (MARX, K., Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, 1852)

Diante do governo Bolsonaro na maioria das vezes a esquerda reage de forma bipolar, vivenciando momentos de ansiedade pessimista (como no período posterior a sua vitória) a euforia (como no dia seguinte as manifestações do 15M). Considero urgente colocarmos alguns elementos mais científicos nas análises para sairmos deste estágio e não cometermos erros avaliativos.

O governo Bolsonaro é, ideologicamente, de extrema-direita. Esta afirmação parte das características de seu discurso, de sua trajetória, dos seus referenciais políticos e também da certa dependência que ele possui do próprio personagem que criou na vida pública. De uma figura marginal na política parlamentar brasileira, devido a um encontro de situações favoráveis, alçou a presidência da república.

Mas, diferente de outras experiências recentes de crescimento eleitoral de personalidades conservadoras, não tem um partido de direita propriamente dito. O PSL é para Bolsonaro o que PRN foi para Fernando Collor, um refúgio necessário para sua candidatura. É composto de novos expoentes da direita, beneficiários diretos do crescimento de sua candidatura, e políticos tão iguais aos de outras pequenas legendas partidárias, acostumados a negociatas e vivendo das migalhas financeiras da grande política no parlamento brasileiro. Não é Erdogan, não é Hitler. Está bem longe disso, mesmo que se veja assim.

É necessário também analisar que classes sociais sustentam ou se sentem representadas por seu governo. Neste caso, a análise é mais complexa por que não foi eleito a partir de uma coalisão social que tivesse nele a expressão de sua política. A burguesia tinha outros candidatos mais orgânicos, mas tais candidaturas não conseguiram emplacar. O desgaste acelerado das principais lideranças burguesas, a maioria envolvida em escândalo de corrupção, aliado ao fato de que o discurso contra a “velha política” e o ódio ao petismo gerou um subproduto de raiva genérica na política, tudo isso afetou o desempenho eleitoral de lideranças mais tradicionais e encontrou no capitão o desaguadouro de milhões de votos.

É verdade que, ao enxergarem a possibilidade do PT voltar a ocupar o Executivo, depois de todo trabalho para derrubar por um golpe parlamentar ancorado em manifestações induzidas e turbinadas pela elite e os meios de comunicação, a elite desembarcou na candidatura de Bolsonaro, da mesma forma que desembarcou em Collor na década de 90. Não por convencimento de que daria certo, mas por necessidade de dar continuidade ao afastamento da esquerda que apesar de suas concessões, no meio de uma profunda crise não deu sinalizações contundentes que faria todas as maldades necessárias para proteger os interesses do empresariado.

Então, neste cenário podemos comparar Bolsonaro com a experiência bonapartista? Não. Está mais para farsa do que para tragédia.

O seu governo possui vários núcleos, sendo que cada um deles expressa os interesses envolvidos na sua vitória. Mas a imagem de núcleos pode dar a ideia de que possuem poderes iguais, o que não é verdade.

O principal núcleo, constituído como necessidade para sua vitória é, sem sombra de dúvida, o conjunto de economistas em torno de Guedes, do Banco Central e do BNDES. Aí está a garantia de que os interesses da classe dominante estarão não só protegidos, como as medidas necessárias e duras deverão ser tomadas. Coloco o verbo “deverão” por que entre as promessas subterrâneas feitas por Bolsonaro ao grande capital e as dificuldades de explicar tais medidas ao seu eleitorado (conquistado por um nacionalismo difuso e ódio ao petismo e aos políticos e ao Estado) existe distância, vide a tentativa de controlar os preços do óleo diesel.

O segundo núcleo, formado pelos procuradores de Curitiba é essencial para duas tarefas. A primeira, ajuda a dar credibilidade de que uma “nova política”, vacinada contra a corrupção, está em vigor, emprestando a credibilidade social de Sérgio Moro e da Operação Lava Jato. E segundo, é um núcleo funcional para aumentar o Estado Penal, outro lado da moeda de um governo ultraliberal. O nó que vivencia este núcleo é de que o governante é oriundo do chamado “baixo clero” da política e possui laços estreitos com o submundo das milícias do Rio de Janeiro e seu partido de aluguel é tão corrupto quando a média dos pequenos partidos de igual perfil.

O terceiro núcleo, construído no esforço de dar força política conservadora é o chamado núcleo militar. Este governo teve a capacidade de trazer os militares de volta ao centro da política, seja pelo discurso protetivo do que foi feito na ditadura militar, seja por emprestar a falsa credibilidade de honestidade administrativa ao colocar militares em postos chave dos ministérios.

E o principal núcleo é o entorno do presidente, um núcleo formado pelos filhos e por apoiadores de extrema direita. Estes, alçados ao novo status de poder, começaram a se enxergar como parte da elite conservadora mundial e como cavaleiros numa cruzada mundial contra as forças do mal (comunismo ou o que considerem de esquerda). Mas são mais do que isso, é um clã acostumado a conviver com as negociatas características do baixo clero, fazem negócios e encontraram boas oportunidades chegando ao Palácio do Planalto. Exemplo disso é que quebrar o monopólio da produção de armas é ideologia armamentista, mas é oportunidade de negócios para o clã na relação deste com as indústrias de Israel.

Qual o maior problema do governo Bolsonaro? Ele é escravo de um personagem e de um discurso que é contraditório com os compromissos assumidos com a elite econômica. Esta quer as reformas aprovadas, mais privatizações, mais retirada de direitos trabalhistas e controle rigoroso dos sindicatos e dos partidos de esquerda. Sonha que Bolsonaro é um Erdogan, mas é apenas um bufão que eles colocaram na presidência. Consideravam que ocupada a presidência, o lado exótico (cruzada ideológica e ataque desmedido a velha política) seriam controlados. Não é o que tem acontecido até o momento.

O governo ainda não conseguiu compor uma base de apoio no Congresso simplesmente por que não aceita dividir o poder com os aliados, os quais em nada diferem do seu perfil, mas que colocam em contradição com o personagem eleitoral criado por Bolsonaro. O “mito” afirmou que não distribuiria cargos e ele acreditou no seu personagem. Assim, vive de avanços e recuos nessa relação e se tornou refém do Centrão e de Rodrigo Maia.

Percebendo a fraqueza política do governo o presidente da Câmara se autoproclamou primeiro ministro, enfrentou o uso da justiça no caso da prisão de seu sogro e segue sendo o fiador das reformas junto ao empresariado. Mas não tem a caneta e não pode tudo.

Bolsonaro mantém ministros destinados a travar a guerra ideológica em áreas com potencial mobilizador. E, ao não apresentar nenhum plano econômico de recuperação de empregos e renda, é obrigado a cortar gastos sociais em áreas sensíveis. Esta combinação tem levado a retomada das mobilizações mais amplas do que o espectro alcançável pelos sindicatos e movimentos de esquerda, como foi o dia 15 de maio. Em menos de cinco meses tivemos uma retomada de manifestações massivas e uma queda de aceitação do governo, especialmente nos segmentos que migraram para sua candidatura na reta final da campanha, ou seja, os pobres.

A postura da grande mídia é de impaciência com a incapacidade do governo de implementar as reformas que os bancos advogam. E pressionam o governo tomando uma atitude positiva diante das manifestações das universidades, o que contribuiu para que as mesmas furassem a bolha da militância de esquerda e mantém no noticiário os escândalos envolvendo laranjas do PSL e caso Queiroz. É uma relação de “morde e assopra”, mas que mostra uma inquietação no andar de cima sobre a viabilidade do governo cumprir as tarefas esperadas pela elite.

Bolsonaro, como expressão de uma nova direita ideológica, está se mostrando uma fraude. É um bufão que sempre esteve no submundo do baixo clero da política brasileira, com fortes vínculos com milicianos, com filhos enrolados até o pescoço com negócios ilícitos no Rio (inclusive no das Pedras), mas é o que a burguesia tem para o momento. Mas, ao mesmo tempo, é imprevisível, por que encarnou um personagem e não consegue sair dele.

A disseminação de um texto que ataca as corporações, parlamento, STF e sugere como saída a renúncia ou uma ruptura golpista serviu para acender a luz amarela na elite. Ajudaram a eleger um governo cujo núcleo que realmente governa, ou seja, o clã familiar, é ingovernável e está se tornando ingovernável.

A aposta de Bolsonaro é que dia 26 de maio, tendo como alavanca somente as suas próprias redes sociais, colocará milhões de pessoas nas ruas em defesa de seu governo. Sem apoio da grande mídia e sem resultados econômicos promissores (muito pelo contrário, o país flerta novamente com a recessão sem que o governo tome nenhuma providência) é pouco provável que apelos e chamados para fazer uma cruzada contra o Centrão e o STF surta algum efeito.

O humor do eleitorado está sempre diretamente ligado a melhoria das vidas das pessoas concretas. Os indicadores econômicos são dramáticos, com uma real possibilidade de recessão, aumento do desemprego, custo de vida em alta e uma persistência de um clima de violência e insegurança nas cidades. Além disso, a guerra comercial entre EUA e China tornam as bolsas mais instáveis nesses últimos meses. A lua de mel entre eleitorado e governo está se encurtando na área que poderia dar um fôlego neste início de mandato.

E fracassando esta iniciativa? Sem apoio do Centrão não terá reforma da previdência. Sem cargos e participação efetiva no governo não tem motivos para que parlamentares resistam a pressão das ruas contra uma proposta impopular. Nem a articulação do Maia é suficiente para animar deputados.

E o povo? Este sempre desprezado e ausente da contabilidade política da elite. Considero que como coletivo, ou seja, como classe em si, o povo trabalhador esteve ausente da luta pelo impeachment, se deixando representar pela classe média enfurecida e anti-petista. Também não esteve presente de forma significativa na resistência ao golpe, insatisfeito com a queda de seu poder aquisitivo e desconfiado do que Dilma oferecia. Na campanha se dividiu entre o voto em um sucessor do seu benfeitor dos tempos de bonança e um capitão que prometia varrer a corrupção e renovar a política. Por enquanto migra nas pesquisas para a desconfiança com a falta de mudanças na sua vida concreta. Por enquanto continua assistindo a cena.

No momento quem ocupa a cena são os estudantes, mobilizados pelo ataque feito pelo MEC nas verbas educacionais, os quais tendem a continuar devido ao agravamento da crise econômica e queda da arrecadação. Essa participação, que no dia 15 passou da casa do milhão, mesmo que temática e reativa, mostrou um potencial de mobilização que inverteu a situação política anterior, onde as ruas haviam sido sequestradas por manifestações conservadoras. Foram manifestações com participação espontânea de milhares, mas dirigidas pela esquerda, organizadas e com pauta definida. E que, diante das incertezas do governo, tiveram apoio da mídia.

Nos próximos dias teremos dois testes importantes. No dia 30, nas manifestações convocadas pelos estudantes, se o potencial de participação se confirmar, teremos um cenário mais estável de retomada das lutas sociais no país, com condições de infringir derrotas a um governo sem base parlamentar formada e de relações tumultuadas com a mídia. E pode tornar a greve geral do dia 14 de junho um marco importante na história do país, capaz de barrar a reforma da previdência e aprofundar a jogar a crise do governo em outro patamar.

O presidente falou pela primeira vez na palavra impeachment, realçando a teoria da conspiração do vice, parte da disputa permanente deste com o comando dos filhos diletos do titular da faixa presidencial.

Podemos ter um combo até o final do semestre. Algo que junte mobilização forte dia 30 de maio e 14 de junho, continuidade da desarticulação com o Centrão, fracasso das manifestações conservadoras do dia 26 de maio e vazamento dos dados do sigilo bancário do filho e de mais de 80 pessoas do seu entorno. Neste cenário pode entrar de forma séria na pauta da elite um encurtamento do mandato do Bolsonaro, motivos não faltam, mas ainda não é o cenário mais provável.

No momento, nossa prioridade deve ser colocar todas as nossas energias para dar vida longa as manifestações estudantis, vincular esta luta com a batalha da previdência, garantindo a continuidade da mais férrea unidade na ação no campo da esquerda. Nossa tarefa, repito, é organizar o andar de baixo, canalizar a insatisfação e transformar este potencial em rebeldia, para estragar a festa da elite.

Mas, para que isso aconteça, faz-se necessário manter o rumo de condução do partido, consolidar e enraizar a aliança com os movimentos sociais que iniciamos durante o período eleitoral e, principalmente, ter o partido como protagonista na organização da resistência. É preciso aprofundar experiências bem-sucedidas como os territórios sem medo, diminuir a fragmentação presente na atuação partidária nas frentes de massa e evitar sectarismos.

É preciso ter unidade no seio da esquerda, mas é também necessário disputar que tipo de oposição necessitamos neste momento. Nada de concessões e diminuição de danos no debate da reforma da previdência. A hora é de mobilizar para derrotar o governo e sua principal proposta. Nada de alimentar ilusões ou meias palavras sobre o papel de Sérgio Moro no governo e denunciar o acobertamento das denúncias contra a família Bolsonaro, a falta de empenho para prender os mandantes do assassinato de Marielle Franco e Anderson e, principalmente, combater o aumento do Estado Penal presente no pacote anti-preto apresentado pelo governo.

E, acontecendo o combo acima descrito, discutir a oportunidade do encurtamento do mandato presidencial, mesmo que isso possa juntar nossos interesses com os da elite. De longe, o vice-presidente evoluiu do lugar dos lunáticos para um reserva mais centrado e cioso da tarefa que as elites precisam, aguardando pacientemente a chance de entrar no campo, não para melhorar a vida do povo, pelo contrário, para dar estabilidade ao regime e promover as reformas que resolvam a crise pela ótica do andar de cima. O combate ao governo não deve separar seus representantes. Discutir encurtamento de mandato só terá sentido se for para termos novas eleições, livres dos fake news e com a apresentação de um projeto claro de mudanças radicais em nosso país.

Ocupar as ruas, organizar a rebeldia. Essa é nossa missão.

 

*Luiz Araújo é professor da UnB e ex-presidente nacional do PSOL

**Este artigo reflete a opinião do autor e, não necessariamente, a linha editorial do Esquerda Online