Itsvan Meszaros: a humanidade sob o signo da incontrolabilidade do Capital

Sóstenes Brilhante, de Salvador, BA

Falar em crise se tornou, paradoxalmente, um senso comum de nossa época. Vivemos em crise. Uma crise permanente por si mesmo parece ferir o… senso comum. Afinal como podemos estar mergulhados numa crise permanente? Não fere o próprio conceito marxiano de crise alegar que estamos em uma crise permanente? Ou o caráter permanente da crise é o resultado das determinações intimas do sociometabolismo vigente na atual etapa histórica do Capital?

Um bom exemplo de como parecemos ficar num “mundo sem evasão possível” (Victor Serge), e portanto a isto corresponde o conceito de crise permanente, seria uma analise estética de algumas obras cinematográficas hollywoodianas recentes. Se o leitor tiver tempo se debruce sobre grandes produções como Jogos Vorazes, Divergente, Blade Runner 2049, Maze Runner ( A cura Mortal) e tantos outros. Nestes filmes em um cenário distópico e pos-apocaliptico (seja por conflitos armamentistas ou desastres ecológicos ou virais) um resto de humanidade luta contra regimes totalitários de cunho fascista, mas o que fica é a impressão de que para alem de uma luta desesperada contra o opressor não há uma alternativa de futuro a vista. Aqui como escreveu certa feita Frederic Jameson se torna mais fácil “imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.

A reflexão sobre a crise atual deve partir de uma diagnostico radical, no sentido legitimamente marxiano de radical, é preciso tomar pela raiz o fundamento desta crise que vivemos e compreende-la como uma crise estrutural endêmica e permanente, ou para sermos benjaminianos é preciso observarmos a “catástrofe permanente do Progresso” do Capital sob o globo terrestre.

Esta crise tem diversas dimensões que afetam por exemplo a esfera elementar da reprodução social ( no sentido que lhes dao o Manifesto por um Feminismo dos 99%), do cuidado, que afeta as relaçoes da vida cotidiana como um todo, que afeta o trabalho como fundamento social da vida coletiva em suas diversas esferas ( reprodutivo e produtivo) e como mediaçao intransponivel entre o homem e a natureza conforme colocado por Marx e Lukacs ( Marx,2013; Lukacs, 2012).

Uma crise que no que diz respeito a relaçao sociometabolica do homem com a natureza tem corroído os seus fundamentos mais elementares e ativou, aquilo que James Oconor, chama de “segunda contradicao”.Esta crise é uma crise da própria civilizacao capitalista, e se ela como diria Walter Benjamin “é também um documento da barbarie” e “estado de exceção permanente para os oprimidos”, o que nos resta quando as tendencias mais agressivas e destrutivas desta ordem são ativadas? Devemos nos lembrar, nestes termos de racismo,homofobia, machismo, de guerra as drogas (aos pobres e negros), de necropolítica como diria Achille Mbembe,que “no fim do capitalismo, tentando sobreviver, há Hitler” no dizer de Aime Cesaire. Ou seja há a barbarie permanente e rotinizada.

Itsvan Meszaros tratou longamente dos dilemas a humanidade e a natureza advindos de uma crise que poe a nu os “limites absolutos do sociometabolismo do capital” e que para ele desafiam o caráter irreversível e intranscendivel do “tempo histórico”.Os limites do tempo histórico, e da natureza estão sendo permanentemente transgredidos pelo Capital na sua logica autoexpansionista para a qual as mulheres, os homens e a própria natureza não passam de mera “carcaça do tempo” (Marx), e por isso invertendo o dizer apologético dos arautos do Capital , não há uma “destruição produtiva ( esta a qual Benjamin bem diagnosticou como barbárie, catástrofe e exceção permanente para as classes subalternas) mas sim uma produção destruidora, dos seres humanos, da vida e da própria vida na Terra.

O sentido desta crise, na qual a imensa maioria da raça humana está sentido os efeitos socio-ecológicos crescentes, foram destrinçados na obra monumental do filósofo marxista Itsvan Meszaros, que nos lembrou repetidamente do “desafio e do fardo do tempo histórico”.

Neste artigo pretendemos refletir sobre o momento atual, aquele que se abre com a crise das “hipotecas” nos EUA em 2008 e se estende a nossos dias, tendo por base a concepção do filosofo magiar sobre a crise estrutural do Capital, enquanto ativação dos limites absolutos do mesmo, e que se assenta no caráter incontrolável, irreformável e perdulario que pressupõe o Capital enquanto sistema orgânico no qual “todo pressuposto já está posto como parte de uma totalidade orgânica” (Marx) e portanto só pode ser transcendido na sua totalidade histórica e não reformado pouco a pouco de acordo com a sabedoria veleitaria do reformismo de todo tipo e matiz.

 

Sob o signo da Incontrolabilidade

As contradições elementares do Capital, entre produção e controle, produção e consumo e produção e circulação derivam da logica intrínseca deste sistema sociometabólico.

A razão mais geral pela qual é impossível que a ordem sociometabólica do capital enfrente os graves problemas nos quais esta mesma ordem afundou a humanidade é devido ao necessário caráter antagonístico que permeia as relações sociais neste modo de produção do Capital. Pois o Capital por si śo não é uma máquina, dinheiro, riquezas, terra, ciência e etc, apesar de que todas estas coisas materiais só se nos apresentem enquanto manifestações fetichistas do Capital, o Capital em si é um modo de controle sociohierarquico da produção e reprodução social, e que portanto reproduz-se em todos só espaços como uma hierarquia autoritária e perversa a serviço de objetivos autoexpansionista que ignoram e o devem fazê-lo, as necessidades reais dos seres humanos envolvidos e os limites intransponíveis da natureza.

Conforme Meszaros, o Capital é um sistema sociometabólico secundário, que interpõe suas mediações materiais e institucionais alienadas, as mediações primaria e insuperáveis da relação humanidade-natureza. Apenas um exemplo nos permite visualizar estes aspectos, extensamente tratados em Para Além do Capital (Meszaros,2002) e (Meszaros,2007).

A mediação das relações de reprodução biológica que são a mais elementar das mediações sociometabólicas recebem sob o jugo do Capital a forma alienada da família patriarcal capitalista caracterizada pela subordinação hierárquica da mulher e dos filhos ao homem, a mulher deve para além de sua subalterna inserção no mercado de trabalho da imensa maioria proletária, deve cumprir as funções de “reprodução social” (Arruza, 2019) relativas a vida humana e sua conservação e cuidado, ficando este trabalho essencial tido por secundário e sendo convenientemente expurgado dos custos da força de trabalho, ou seja o capital através da mediação da divisão sexual do trabalho captura uma incalculável ( por ser um trabalho impassível de ser quantificado em muito dos seus cuidados e afetos por exemplo) quantidade de trabalho excedente. Neste sentido é que Roswitha Scholz demonstra como a mulher é constituída como o “negativo do valor”, e toda uma esfera vital da vida social é apagada tendo o efeito geral de rebaixar o valor da força de trabalho ( os trabalhadores e trabalhadores da esfera “produtiva”) e aviltar a condição das trabalhadoras domésticas , retirando lhes a condição de trabalhadoras.

            O “valor é o homem”, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objetivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objetivo do “trabalhador” abstrato — antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior —, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra. (apud Menegatti )

Nesta ordem portanto a demanda por igualdade substantiva,e não meramente formal, do movimento  de mulheres não pode ser satisfeita ou realizada, pode no máximo ter sua pauta cosmeticamente diluída, como denuncia o Manifesto do Feminismo para os 99%, no feminismo das “empreendedoras e executivas”, que apenas apresentam a imensa maioria trabalhadora do gênero feminino a consolação platônica de ter seu trabalho excedente espoliado por outras mulheres.

Assim o Capital precisa reproduzir as hierarquias e estratificações de classe, sexo, raça e entre nações , como forma de permanentemente justificar e operar toda a maquina do seu modo sociohierarquico de controle social.

Assim Meszaros nos relembra:

Por sua própria natureza, o relacionamento entre capital e trabalho é a manifestação tangível da hierarquia estrutural insuperável e da desigualdade substantiva.Assim, em sua própria constituição, o sistema do capital indiscutivelmente não pode ser mais do que a perpetuação da injustiça fundamental. Portanto, quaisquer tentativas de conciliar este sistema com os princípios da justiça e da igualdade são inevitavelmente absurdas – elas só podem importar no que uma expressão húngara chama de “forjar rodas de ferro da madeira de lenha”. Para criar a visão de suas rodas de ferro forjado, os praticantes dessa arte devem atuar por decreto, estipulando que somente os critérios puramente formais são relevantes, eliminando assim a priori todas as considerações substantivas (inclusive as diferenças materiais entre a madeira e o ferro), de modo que possam afirmar, no final, que uma “igualdade de resultado” (ou seja, uma igualdade significativa) não tem importância alguma sob qualquer aspecto. (Meszaros, 2002)

O regime sociometabólico do Capital se caracteriza por esta contradição insanável entre os que produzem e os que controlam, mas ambas as partes são alienadas em relação ao controle social, porque ambas são apenas formas individuais de “personificar o Capital”,devemos ter em conta que os microcosmos do Capital, as empresas específicas devem impor aos “seus trabalhadores” a logica autoexpansionista do Capital como determinações constrangedoras que se dão também as costas dos capitalistas individuais, via a lei do valor ou “o mercado”.Aqui Marx nos relembra o “mundo nebuloso” da religião, trata-se de uma relação de alienação onde os sujeitos agem como coisas, e as coisas agem como sujeitos.

Isto ocorre por que de fato nenhuma empresa ou mesmo os Estados particulares do Capital, e nem mesmo um suposto e inexistente Estado mundial do Capital, poderia contrariar as determinações intrínsecas de autoexpansão e de acumulação calcadas no “valor de troca” , na mercadoria e na expansão . Isto por que como nos relembra Meszaros em outra ocasião,os indivíduos não são meramente oprimidos e explorados por indivíduos de outras classes, mas sim pelas determinações materiais de ordem objetiva que definem os limites dentro dos quais as personificações do “capital e do trabalho podem se mover”.A única forma de romper este círculo infernalmente vicioso é transcendendo os limites das formas sociais do capital, como a mercadoria, o dinheiro, o gênero,a raça, a politica etc.

Apesar de toda a “hibridização” histórica do Capital ao longo do século XX, onde os Estados enquanto “terceiros imparciais” foram chamados a alocar recursos cada vez maiores para garantir a acumulação de capital, vide indústria armamentista, e de outro lado foram cada vez mais encarregados de agir como “capitalista coletivo ideal” e mediar as relações de classe, reforçar os mecanismos de coerção e consenso, estabelecendo reformas e direitos sociais. Tal processo porém estourou diversas vezes nas chamadas “crise da dívida soberana”, nos supostos altos custos “dos direitos sociais”.

O motivo pelo qual é impossível estabelecer um controle coerente e global, tao urgente quanto necessário, sob o sistema mundial do capital, diz respeito a este caráter fragmentado e antagonístico inevitável que caracteriza todos os microcosmos produtivos e sociais ( como a empresa privada e a família exemplificam) aos maiores macrocosmos como Estados e transnacionais monopolistas, em todos estes polos que se digladiam a recalcitrância dos subalterno e oprimidos , os conflitos intestinos por território,recursos e acumulação de capital tornam inviável estabelecer uma forma de planejamento coletivo de longo prazo.

“A sombra da incontrolabilidade, pelas razões discutidas acima em relação a todos os quatro conjuntos de problemas associados aos limites absolutos do sistema do capital, está cada vez mais escura. Sob as condições de sua ascendência histórica, o capital teve condições de administrar os antagonismos internos de seu modo de controle por meio da dinâmica do deslocamento expansionista. Agora estamos diante não apenas dos antigos antagonismos do sistema, mas também da condição agravante de que a dinâmica expansionista do deslocamento tradicional também se tornou problemática e, em última análise, inviável” (idem)

A incapacidade de planejar racionalmente faz com que o capital fira a noção mais elementar de economia, enquanto economicidade de recursos e gestação de tempo disponível para os seres humanos realizarem uma vida autentica. Isto ocorre porque para o capital consumo e destruição são “equivalentes funcionais” (Meszaros, 2008), ao estar orientado radicalmente para a troca, e fetichisticamente “apaixonado por si mesmo” como Narciso o Capital é incapaz de estabelecer parâmetros qualitativos de avaliação de custos humanos, sociais e naturais de sua escalada de produção destruidora. A hipoteca atômica e o aquecimento global são dois dramáticos e eloquentes eventos que demonstram a irracionalidade crescente do capital, recoberta por uma racionalidade formal curtoprazista. (Lowy,2019)

Por fim Meszaros nos relembra o “tempo decapitado do capital” e a crença magica dos que exercem o controle enquanto personificações do Capital de que sempre conseguiram deslocar por mais um tempo suas contradições insolúveis em sua própria base sociometabólica.

“Com relação à forma como o sistema do capital espezinha o tempo (em perfeita correspondência à desastrosa interferência nas determinações objetivas da causalidade) na vã convicção de que sempre conseguirá se safar, basta que nos lembremos do legado atômico. Mesmo que se queira cultivar a ideia de que os desastres nucleares jamais acontecerão, apesar das dezenas de milhares de armas nucleares (e nada à vista para controlá-las e eliminá-las, com a remoção das causas de sua existência), nem mesmo a maior credulidade poderá minimizar o peso deste legado atômico, pois ele significa que o capital está impondo cegamente a incontáveis gerações – que se estendem no tempo por milhares de anos – a carga de, mais cedo ou mais tarde e com certeza absoluta, ter de lidar com forças e complicações totalmente imprevisíveis. O futuro distante da humanidade terá de ser perigosamente empenhado porque o sistema do capital deverá sempre seguir seu rumo de atuação dentro da mais estreita escala de tempo, desprezando as consequências, mesmo que estas apontem a destruição completa das condições elementares da reprodução sociometabólica.” (Meszaros,idem)

 

Sob a sombra da perdulariedade

Não se pode compreender a atual fase fatal do capitalismo se não compreendermos sua incapacidade cronica de estabelecer um planejamento econômico no sentido genuíno do termo, por planejamento autentico só se pode entender a capacidade de planejar coletiva e democraticamente a relação entre recursos limitados e as necessidades sociais relevantes, desde as primarias até as mais diversas necessidades surgidas do desenvolvimento histórico da personalidade humana.

Acontece porém que o capital tem sua lógica de expansão e crescimento calcada no valor de troca e portanto no critério que coloca o valor de uso, e portanto a verdadeira economicidade das coisas, em último plano. A consequência mais danosa desta lógica, que por outro lado permitiu a multiplicação das necessidades sociais, e cumpriu de modo bárbaro e perverso a função de ampliar as necessidades sociais,é que do ponto de vista estrito da expansão do capital “consumo e destruição” são equivalentes funcionais (Meszaros, 2007).

O paradoxal exemplo da corrida armamentista e do correlato complexo industrial militar, de duas guerras mundiais, e de uma centena ou mais de conflitos localizados ao longo do seculo XX e XXI são demonstrações cabais desta logica. De outro lado a destruição de recursos naturais escassos, ou de ambientes pela utilização de recursos danosos ao meio ambiente, sem a mínima preocupação de criar alternativas reais a eles contra todas as advertências dos cientistas , nos levaram ao atual cenário de colapso ambiental.

Se queremos contrapor uma alternativa societária histórica e ambientalmente viável ao domínio do capital, devemos ter a “sustentabilidade” no seu sentido genuíno, como centro de nossa concepçao de crescimento, como o ecossocialismo defende é preciso outro modelo de desenvolvimento que estabeleça um sociometabolismo que medeie as necessidades do ser social e da preservação do ecossistema.

Meszaros defende que a orientação para o valor de uso, e portanto uma avaliação de natureza qualitativa, é o verdadeiro passo para equilibrar as tao desequilibradas relações mulher-homem/natureza e mulher/homem-ser social. Estabelecer prioridades qualitativas do ponto de do princípio regulador da igualdade substantiva e que tenha como medida de fato a sustentabilidade de longo prazo dos intercâmbios materiais e sociais correlatos. Exatamente por isto somente a conciliação dos interesses socio-coletivos reais com uma vida humanamente significativa e realizada dos indivíduos particulares pode por fim a forma de desenvolvimento conflitual/adversa que caracteriza o “progresso como barbárie” não só na ordem sociometabólica capital mas em todas as sociedades de classe historicamente constituídas.

A perdularidade portanto nos coloca diante da possibilidade objetiva de termos que aceitar “  o fato constrangedor de que pode não haver futuro para a humanidade” se ela continuar operando mediada pela incontrolabilidade orientada ao valor de troca do Capital (Meszaros,2007)

 “A civilização capitalista industrial moderna é um trem suicida que avança, com rapidez crescente, em direção a um abismo: as mudanças climáticas, o aquecimento global. Trata-se de um processo dramático que já começou, e que poderá levar nas próximas décadas a uma catástrofe ecológica sem precedentes na história humana: elevação da temperatura, desertificação das terras, desaparecimento da água potável e da maioria das espécies vivas, multiplicação dos furacões, elevação do nível do mar – até que Londres, Amsterdã, Veneza, Xangai, Rio de Janeiro e demais cidades costeiras fiquem debaixo d’água. A partir de um certo nível de elevação da temperatura, será ainda possível a vida humana neste planeta? Ninguém pode responder com segurança a esta pergunta.” (Lowy,  2019)

 

Sob a sombra da irreformabilidade

A situação em que vivemos se torna imensamente mais grave quando a luz da experiência histórica somos forçados a admitir que não ha sequer a possibilidade de alcançar o “menos pior” constantemente louvado pelos adeptos do “pouco a pouco” e do socialismo “evolucionário” proposto avant la lettre por Eduard Bernstein no entardecer do Seculo XIX.

Contra este Rosa Luxemburgo advertiu que

“Quem se pronuncie a favor da reforma legal, em vez do encontro do poder político e da revolução social, na realidade não escolhe uma via mais agradável, mais lenta e segura, conduzindo ao mesmo fim; mas tem um objetivo diferente; em vez de edificar uma sociedade nova, contenta-se com modificações sociais na sociedade anterior […] Na essência, não visam realizar o socialismo, mas reformar o capitalismo, não procuram abolir o sistema de assalariamento, mas dosar ou atenuar a exploração, numa palavra: querem suprimir os abusos do capitalismo, mas não o capitalismo” (apud,Meszaros 2008 ).

 

Nada fez além de reiterar as palavras de Marx que disse que não se trata de “ melhorar a propriedade senão aboli-la.

A razão objetiva pela qual o sistema é irreformável e o reformismo é uma falácia é que o capital é segundo Meszaros um modo de controle despótico e hierárquico baseado na completa alienação dos produtores em relação ao processo decisório global, o Capital não pode renunciar de forma alguma, ou aceitar “ gestão partilhada” com o trabalho, como pregam as fantasias reformistas de vários tipos, pura e simplesmente por que os objetivos alienados da autoexpansão orientada ao valor de troca devem reduzir as pessoas ao mero papel de “carcaças do tempo”, receptáculos que como os indivíduos na concepção hegeliana de “Astucia da Razão” ou na versão econômica de Adam Smith  a “mão invisível” apenas “operam o processo real”, sendo ¨cavalgados” pela “loucura da razão econômica”.

Rosa Luxemburgo já advertira que nenhuma legislação sapiente, nenhum decreto governamental poderiam elidir o poder real do Capital, por que as normas jurídicas apenas podem regular e regulamentar as relações existentes e não instaurar de per si outras. Com base em Meszaros podemos dizer que nenhuma lei pode restituir o poder aos produtores livremente associados , somente na pratica cotidiana e após uma longa e penosa transição, para a qual deve-se ter sempre por princípio regulador a igualdade substantiva e a autogestão democrática da produção e reprodução da  vida material, revolucionando de “ cabo a rabo todo o seu modo de ser “ nas palavras de Marx.

O Capital, o Estado e o trabalho assalariado não podem ser demovidos de suas posições estruturais pouco a pouco, de forma cumulativa , isto por que o Capital é uma força extraparlamentar incomensurável e atua também como fração majoritária do Parlamento e constrange quaisquer “Poder Judiciário” supostamente isento entre as partes.

            “a ‘separação dos poderes’ sob a dominação do capital significa somente uma coisa: a separação institucionalizada e legalmente imposta entre o poder e o trabalho e seu exercício contra os interesses do trabalho” (idem )

Com a ativação dos limites estruturais do capital, assunto extensamente tratado por Meszaros em sua opus magnum ( Para Alem do Capital, Rumo a uma Teoria da Transição), o reformismo se traveste em “piorismo” , e de abolir o capitalismo de pouco a pouco ele passa a apresentar as classes trabalhadoras e setores oprimidos a mera “chantagem do menos pior”, dando sua contribuição fundamental a que as massas se afastem da politica, da democracia eleitoral para a qual conforme Domenico Losurdo elas tanto lutaram para conquistar. Meszaaros denomina este processo de crise da politica que é um dos aspectos da crise do Capital.

            “o capital atingiu um estágio em que mesmo as antigas “concessões” tiveram de ser anuladas pela ordem imperante, com a ajuda de impiedosa legislação parlamentar (ativamente apoiada pela socialdemocracia reformista), por já não poderem cumprir sua antiga função expansionista. A virtual morte do “Estado de Bem-Estar” até nos países capitalistas mais avançados, em vez de sua prometida difusão por todo o mundo, é testemunha eloquente desse pensamento desalentador.” (MÉSZÁROS, 2004, p. 37-8).

O esgarçamento do Estado de bem estar social, da promessa da “cidadania salarial” nas palavras do sociologo Ruy Braga (2017) é um aspecto extremamente doloroso e que leva a um impasse o movimento organizado da classe trabalhadora com sua histórica cisão entre seu braço politico e seu braço sindical. Mesmo a constituição de uma democracia blindada no centro e na periferia, como forma de imunizar o núcleo do aparato estatal a luta das classes subalternas , seguindo o antidemocratismo aristocrático das diversas versoes do credo liberal ( desde o anticomunista raivoso Hayek, até o ordoliberalismo soft alemao) se mostrou incapaz de garantir que o Estado fosse impermeável a lutas populares. Como resultado o “estado de exceção permanente” em que as classes subalternas sempre viveram vem a luz e a tona diuturnamente e o espectro do fascismo surge como alternativa a crise seja da direita tradicional seja das diversas versões centrais e periféricas do reformismo socialdemocrata/keynesiano/desenvolvimentista .

 

Istvan Meszaros e o significado incontornável da crise atual

Durante um certo período foi consenso entre os membros do maisntrean da esquerda reformista apresentar a morte prematura do neoliberalismo e a volta de formas ecléticas de estatismo desenvolvimentista, aclamava se a ascensão da esquerda latinoamericana como exemplo a seguir,o Brasil era tido como modelo em sua versão socialliberal de “reformismo quase sem reformas”, um reformismo anêmico,conquistas localizadas e até um suposto “socialismo do século XXI” na Venezuela acalentavam os sonhos dourados do reformismo de que “outro vago mundo era possível”.

A vacuidade e miséria pratica e teórica desta concepção começou a esboroar com o recrudescimento da austeridade, a crise dos governos progressistas na América Latina, a falência do Syrza na Grécia, o desencanto com partidos como o Podemos na Espanha e um longo etc.No bojo desta crise e do recrudescimento do neoliberalismo acentuam uma crise social profunda.

            “A capitulação dos partidos tradicionais da esquerda – que seguiram o beco sem saída da linha de menor resistência durante a maior parte das suas existências – não resolveu uma única contradição do sistema do capital. Pelo contrário, a acomodação cada vez mais comprometedora e a capitulação final, não só do reformismo trabalhista, mas também dos partidos políticos outrora radicais, são a manifestação do aprofundamento das contradições do sistema. Estas contradições reduziram progressivamente e finalmente eliminaram – no interesse da preservação do modo de controle do capital sob as condições da crise estrutural do sistema – a margem de oposição e a conquista de ganhos, ainda que limitados, para o trabalho.” (idem)

No bojo desta crise gostaria de destacar o recrudescimento do encarceramento em massa, da necropolitica e do crescimento da direita protofascista.O autoritarismo,o racismo, a “crise da imigração” , o esgarçamento do tecido social pelas politicas de “desolidarizacao” social promovidas pelo neoliberalismo que se impôs como uma “nova razão do mundo”, levou ao ressentimento de amplas camadas das camadas medias e da própria classe trabalhadora, fazendo com que discursos protofascistas veiculados por movimentos e indivíduos como Trump e Bolsonaro produzam um ‘neoliberal para chamar de seu” (Poggi, 2018 )

Tanto o neoliberalismo como o neo-fascismo são expressão do fato de vivermos uma etapa de decadência histórica (Arcary,2015) , uma decadência histórica de uma forma sociometabólica é perceptível quando o mesmo não consegue mais deslocar suas contradições, apesar dos imensos esforços e injeções de recursos que lhe são administrados. Haja vide a intervenção estatal praticamente universal no processo de acumulação de capital, como por exemplo a demanda garantida e crescente do complexo industrial militar, a injeção de recursos bilionários para “sanear os bancos grandes demais para falir” nos EUA e na zona do Euro.

Do ponto de vista da classe trabalhadora os últimos cinquenta ou sessenta anos pode ser ser descrito de acordo com a ideia de Meszaros de “tendencia a equalizacao da taxa de exploracao”, em que a superexploração do trabalho de característica periférica como explica Ruy Mauro Marini ( 2016) tem se alastrado ao centro do sistema e a corrosão gradual , lenta porem segura, do welfare state europeu é prova cabal. Ora se a superexploração se estende ao centro é necessário as burguesias dominantes e dominadas da periferia reintensifica-la, gerando ajustes brutais nas condições de vida da classe trabalhadora que já é racial , sexual  e economicamente segmentada e explorada.

O programa atual de austeridade é o resultado da falência do sociometabolismo do capital em sua capacidade de garantir ao menos “ a vida de seus escravos”, agora largas frações no centro e da periferia , notadamente desta a brutalidade é já desde sempre uma característica imanente no trato com as populações racializadas e colonizadas, devem se tornar descartáveis e elimináveis.

Meszaros aponta o desemprego estrutural como um dos limites absolutos do Capital que foram ativados na crise de meados dos anos 70  e que ao lado da chamada “revolucao tecnoinformacional” culminaram no transformar de imensas massas humanas que não param de crescer em massas descartaveis.Essa potencial contradiçao entre a tecnologia orientada pelo capital e a minima manutencao da vida de milhoes, leva ao desenvolvimento e agigantamento do sistema penal, sob a batuta da “guerra as drogas”, a guerra as drogas valendo se do carater estrutural do sistema penal ( a contradiçao entre as missoes declaradas deste complexo, e suas funçoes reais conforme Vera Regina Pereira de Andrade (      ) ) é um agente da necropolitica (Mbembe,      ) uma das faces daquilo que com Alves (20 ) chamamos de sociometabolismo da barbarie.

Sabemos conforme Rusche que cada modo de produção desenvolve uma aparelho repressivo com funções funcionais a sua logica de acumulação subjacente, e isto inclui inclusive variações histórico-geográficas, como a diferença dos sistemas de encarceramento no centro e na periferia.A fase atual parece estar minando esta diferença e cada vez mais a função repressiva involui de disciplinar os corpos rebeldes para o uso produtivo, para a função de encarcera-los em depósitos subhumanos e no limite elimina-los através de praticas policiais e militares genocidas, Marielle Franco descreveu como as favelas são areas de controle racializado da população negra brasileira que atualizam o Brasil como apartheid sócio-racial (Fernandes,    ) o que demonstra a impossibilidade pratica do sistema satisfazer minimamente as necessidades reais de bilhões de seres humanos, os condenando a uma vida carente de significado pleno e as eliminando quando elas ousam protestar contra a barbarie.

A erosão dos direitos sociais, conquistados como uma forma de submeter a luta operaria a “língua do capital” (Edelman)  é uma demonstração prática da impossibilidade históricas das massas seguirem indefinidamente vivendo sob o Capital, a demanda por igualdade substantiva que emana do antagonista estrutural do Capital, o trabalho, e nos setores oprimidos da classe (mulheres, populações racializadas, negros, imigrantes, latinos árabes etc, população LGBTQI) não encontra escoadouro dentro da logica do Capital.

Disto temos a crise e erosão da democracia burguesa, que vai perdendo até sua aparência de igualdade  e inclusão social, e dai perdendo sua capacidade de criar o consenso ativo e passivo dos subalternos (Demier, 2017).

Diante de um conjunto de crise de longa duração, a crise da civilização capitalista torna atualíssimo o chamado de Meszaros a superar a cisão entre braco sindical e braço politico do trabalho, só a partir da adoção de uma estrategia de “ofensiva socialista” que tenha por horizonte estratégico a superação do horizonte “da economia politica” e portanto supere todo gradualismo e reformismo historicamente fracassados, e que coloque como estrategia a superação da divisão social do trabalho do capital, Do Estado e do trabalho assalariado e de todas as formas correlatas e necessárias a esta dominação como a mercadoria, a raça, o gênero e etc.

Obviamente que um debate sobre a transição não pode se resumir a afirmação genérica de alguns princípios abstratos, é preciso construir um verdadeiro Programa de Transição, no espírito da tradição revolucionaria tao bem encampada por Leon Trotsky, um programa que leve em conta a profundidade da crise do sociometabolismo vigente, colocando no centro as necessidades de preservação ambiental e a superação da miséria, da fome, da pobreza, da alienação, da violência estatal contra os subalternos etc.

 

Trata se de um desafio colossal que deve emergir das lutas de resistência, mas que só pode chegara conclusão se orientado por um horizonte de longo prazo, este horizonte só pode ser o do comunismo como sociedade dos “produtores livremente associados”.

No entanto, todo o arcabouço material e social de nossa existência está em longo estado de decomposição, e como na metáfora goethiana preferida de Meszaros, precisamos reformar toda a “estrutura da casa” mas “conosco dentro”.

Isto significa que precisamos de um programa que aponte as mediações materiais e institucionais adequadas para a transição efetiva do sociometabolismo da barbárie a uma forma plena de sociometabolismo. No entanto tais medidas devem por sua vez ter em mente que “ as classes não são oprimidas apenas por outras classes” ( Meszaros 2002) elas devem enfrentar constrangimento s de natureza objetiva como a existência limitada de recursos naturais e socialmente produzidos e as demandas reais de grupos que foram fragmentados pela própria existência secular da sociedade de classes, raças e gêneros hierarquicamente estruturados, a reprodução das desigualdades de gênero e raça para ser evitada deveria pelo menos por certo período na transição implicar certo sacrificio de outros setores da classe trabalhadora historicamente melhor colocados ( homens brancos cisgeneros por exemplo).

De outro lado para manter o sentido do processo e não recair nas “transições interrompidas” que falharam em se manter no rumo estratégico do socialismo e ou cristalizaram “sociedades pós-capitalista do capital” onde apesar de amplas conquistas em bem estar e desenvolvimento ( como URSS e Cuba) os processos revolucionários acabaram atolados no “esterco das contradições” como diria Hegel.

 

Isto porque é preciso não falhar em estabelecer um crescente grau de participação e gestão coletiva da produção e reprodução da vida material, impedindo que a inercia material e institucional reestabeleça sob que forma seja o controle sociometabólico do capital (através do controle, regulação e extração do excedente pelo Estado pos-capitalista cada vez mais alienado do controle do trabalho e tendendo ao desenvolvimento de burocracias restauracionistas que usurpam o processo no beneficio de sua própria cristalização em classe burguesa como ocorreu na URSS ).

 

Este desafio central foi apontado por Meszaros ao apontar a necessidade do controle social coletivo da gestão produtiva e social da sociedade em transição. Sabendo que a fase politica cumpre um papel ambivalente e perigoso, visto que sendo vitalmente necessário a tomada do poder do Estado, esta medida é largamente insuficiente para reconfigurar radical e globalmente o sociometabolismo no sentido estratégico do comunismo como fase superior da transição socialista.

 

Isto por que o Estado como face complementar do controle do capital não pode de por si ser capaz de desmantelar a estrutura de controle hierárquico e alienante do Capital sob as funções usurpadas do corpo social. A experiencia soviética de transição interrompida demonstra que na ausência ,por qualquer motivo que seja, da capacidade de num crescente transferir aos produtores o controle e regulação do sociometabolismo, o vácuo deixado leva a cristalização e retorno da divisão sociohierarquica alienada do trabalho e que no caso soviético se cristalizou conforme Meszaros numa forma de controle anômalo “pos-capitalista do capital” de extração politicamente regulada do excedente.

 

Apesar de varias conquistas sociais e econômicas a  sociedade soviética cristalizou uma burocracia cujo interesse de longo prazo, como apontou Trotsky já na década de 30 seria a restauração do Capital o que ficou demonstrado pela sabotagem deliberada da burocracia sob comando de Gorbachev da economia de transição interrompida e sua opção politica, visto que economicamente a situação soviética era tudo menos catastrófica (Kenny e Keeran, 2004), de iniciar uma transição restauracionista do capitalismo como modalidade de controle do capital. Isto estava lastreado no interesse da burocracia em se cristalizar como classe dominante coisa impossível na sociedade de transição em que ela exercia controle e tutela como “personificação anômala do capital” numa sociedade que iniciara uma transição socialista.

 

A única alternativa viável do ponto de vista socialista seria iniciar um processo de retomada politica do controle sociometabólico pelos trabalhadores, coisa que a burocracia obviamente rechaçava. Hoje estamos munidos desta experiência histórica que nos possibilita evitar muitos erros e apontar para única alternativa humanamente justa e socioambientalmente viável que é a Grande Transicao ao Socialismo que deve enfrentar os dilemas ambientais, energéticos, sociais que constrangem a humanidade trabalhadora.

 

Estamos atravessando hoje uma crise cuja saída progressiva, saídas que aprofundem a barbárie e regressão social só b controle do capital são sim possíveis, como advertia Lenin “ não existem em absoluto situações sem saída”.Mas com certeza elas não interessam a maioria esmagadora da vida na Terra ( sejam animais, plantas e seres humanos!). Pois como afirma Meszaros :

 

 

“Assim, a necessidade de uma transição para uma ordem social controlável e conscientemente controlada pelos indivíduos, como defende o projeto socialista, continua na agenda histórica, apesar de todos os fracassos e decepções. Naturalmente, esta transição exige um mudança de era – um esforço sustentado de ir além de todas as formas de dominação estruturalmente arraigadas – que não pode ser imaginada sem uma reestruturação radical das formas e dos instrumentos existentes de reprodução sociometabólica, em contraste com a tentativa de acomodar os objetivos socialistas às restrições paralisantes das condições herdadas, como aconteceu no passado. Pois a raison d’être do projeto socialista é reter a consciência dos objetivos estratégicos de transformação, mesmo sob as condições mais adversas, quando o poder da inércia puxa na direção oposta: a da ”linha de menor resistência”, que leva à revitalização da incontrolável força controladora do capital.” (Meszaros,idem)

 

                                    Referencias Bibliográficas

 

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