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Colunas

Sobre o corte de bolsas e o desmonte da pós-graduação

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

Junto ao corte de mais de 30% do orçamento de custeio das universidades federais, que claramente pretende inviabilizar a continuidade de seu funcionamento, o governo Bolsonaro coloca em prática uma política de desmonte da pós-graduação cujo principal pilar é o corte das bolsas. A gestão de Abraham Weintraub no Ministério da Educação mantém e aprofunda uma perspectiva de extrema-direita e de ostensiva confrontação ideológica, mas expressa uma mudança de qualidade em relação à gestão de Vélez Rodrigues. O atual ministro, operador do mercado financeiro, é certamente mais capacitado para operar o pretendido processo de desmonte das universidades e da educação pública em geral, o que só não se consumará se a capacidade de resistência e organização da comunidade universitária lhe impor uma retumbante derrota.

Os cortes de bolsas: Fase 1 e Fase 2

No último dia 8, o governo Bolsonaro anunciou o corte de mais de 7.000 bolsas. A maior parte delas – 4.798 bolsas – é constituída de bolsas de mestrado e doutorado, portanto fundamentais no Sistema Nacional de Pós-Graduação. A enganosa linguagem tecnocrática empregada pretendia minimizar o sentido do corte: tratar-se-ia de “bolsas ociosas”, as quais estariam apenas congeladas. Na realidade, não eram bolsas ociosas, e o governo tinha plena consciência de que neste período há o processo de ingresso de novas turmas e seleção de novos bolsistas, que substituem os que recém defenderam suas dissertações e teses, e as bolsas “congeladas” eram justamente as que eram destinadas e estas novas turmas. Além disso, o “congelamento” é mera e indisfarçável chantagem: trata-se de um sequestro, e as bolsas sequestradas só serão libertadas se a reforma (desmonte) da previdência for aprovada.

O corte anunciado em si já seria gravíssimo, mas no dia seguinte descobriu-se que o “congelamento” de 4.798 bolsas representava apenas a “Fase 1” de uma ofensiva que continuaria como novos ataques. Conforme relatado em documento do Fórum Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação (FORPROP), em reunião realizada naquele dia revelava-se a previsão de uma “Fase 2” ainda mais drástica:

O sr. Lucas Resende Salviano, representante da DPB, informou que a ação realizada pela Capes (intitulada Fase 2), considerará o ‘congelamento’ de bolsas à medida que as bolsas fiquem vagas dos atuais usuários, no percentual de 30% no caso de cursos nota 4 nas duas últimas avaliações periódicas, e de 70% no caso de cursos nota 3 nas duas últimas avaliações periódicas, ou que caíram de nota 4 para 3. As referidas avaliações foram realizadas em 2013 (2010-2012) e 2017 (quatriênio 2013-2016”. (1)

Os programas de pós-graduação são avaliados em notas que variam entre 3 e 7. Apenas uma pequena parcela é alocada nos estratos superiores, a ampla maioria tem notas 3 e 4, e todos os cursos novos iniciam suas atividades com nota 3, quase sempre mantando-se neste estrato por mais uma ou duas avaliações. Desta forma, não é difícil avaliar o impacto da destruição prevista para a “fase 2”.

Dividir para destruir

Em resposta aos cortes, uma ampla mobilização de pós-graduandos juntos às demais mobilizações de professores e estudantes da universidades e institutos federais de educação, divulgando as pesquisas em curso, denunciando os impactos dos cortes de bolsas e amplificando o movimento em torno da greve nacional da educação neste 15 de maio.

Neste contexto, nesta terça (14), foi anunciado o descongelamento de uma pequena parte das bolsas congeladas (1.224) (2), o que à primeira vista parece um recuo do governo. Para além do fato de que 75% das bolsas permanecem “congeladas”, e que permanece a previsão da “fase 2”, não é difícil observar nesta medida uma clara tentativa de dividir o movimento e fragilizar as resistências, abrindo caminho ao projeto de destruição da pesquisa e pós-graduação (e a partir daí, das universidades). 

As bolsas hoje descongeladas são pertencentes a programas com avaliação “de excelência”, ou seja, programas que em duas avaliações seguidas estão no topo, com notas 6 e 7. O objetivo do governo Bolsonaro, com isto, é separar uma pequena parcela do conjunto do sistema. Esta parcela contemplada na medida de hoje em geral se situa nas maiores universidades, nos grandes centros, com pesquisadores mais conhecidos e portanto tem melhores condições para fazer ouvir seu protesto. É um canto da sereia, que infelizmente encontra muitos colaboracionistas dispostos a ouvir. Como não lembrar que nos anos 1990, em alguns “centros de excelência” encontrávamos colegas dispostos a apoiar o projeto de Paulo Renato / FHC, quando pretendiam colocar em prática as recomendações do Banco Mundial que propunha concentrar o investimento em algumas poucas e “excelentes” universidades? O restante seria reduzido e instituições não universitárias, restritas ao ensino, verdadeiros colegiões de terceiro grau…

Fase 2: liquidação do Sistema Nacional de Pós-Graduação

O que significaria a implementação da “Fase 2”? Objetivamente a liquidação do Sistema Nacional de Pós-Graduação, ainda que com a manutenção, de forma isolada e fragmentária, de alguns pretensos centros de excelência (que muito provavelmente se degradariam rapidamente, desvinculados de um sistema nacional). Os programas com nota 3 e 4 constituem são não apenas a maior parte do Sistema Nacional de Pós-Graduação, são eles que efetivam seu enraizamento, são eles que efetivam a implementação efetivamente nacional da pesquisa e da pós-graduação, abarcando as distintas realidades regionais.

Não é possível defender a pós-graduação de forma fragmentária. É necessário defendê-la em seu conjunto. Estar no topo não é resultado apenas de “mérito”, mas também é expressão da concordância com diretrizes muitas vezes altamente discutíveis, é muitas vezes tornado possível pela ocupação de posições institucionais e regionais mais favoráveis e reflete a condição de contar com estrutura inexistente na maioria das universidades. Interpretar os resultados da avaliação da pós-graduação em uma perspectiva meritocrática é falso e enganoso. Basta lembrar que muitos estados sequer contam com fundações de apoio à pesquisa, e parte dos que as possuem enfrentam amplo sucateamento das mesmas.

Para dimensionar o impacto dos cortes previstos na “fase 2”, uso como exemplo a universidade onde trabalho, a Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Trata-se de uma universidade situada fora dos grandes centros, com caráter multicampi e fortemente enraizada em um contexto regional. Há vinte anos, esta universidade contava com apenas um Programa de Pós-Graduação, então recém criado. Hoje conta com 38 programas, em todas as áreas do conhecimento e distribuídos em todos seus cinco campi. Parte expressiva deles (14) contam com cursos de Doutoramento. Portanto é uma universidade que teve uma expansão impressionante, resultado de enormes esforços coletivos e que se efetivou enfrentando condições muito longe das ideais.

Como uma universidade com esta característica, que vem alcançando excelentes resultados que se evidenciam da acelerada expansão da pós-graduação, seria atingida na “fase 2”? É possível dimensionar isto avaliando a avaliação de seus programas, e não deve nos surpreender observar que uma universidade distante dos grandes centros e com pós-graduação de implantação recente não tenha ainda nenhum curso com nota 6 e 7. Esta é a situação atual da Unioeste. Dos 38 programas, 6 possuem nota 5, e portanto estariam em tese livres dos cortes previstos para a “fase 2”. Outros 13 tem conceito 4 e perderiam 30% das bolsas, enquanto metade dos programas (19), com conceito 3, perderia 70% das bolsas. Na média ponderada, isto significa que esta universidade perderia, com a implementação da “fase 2”, 45% do total de suas bolsas.

Reverter os cortes com a luta

Não há outra alternativa para a defesa da pós-graduação, para a defesa das universidades, para a defesa da educação. Não é possível cavar espaços no interior da lógica dos cortes, para preservar pontualmente alguns programas ou algumas bolsas. É imprescindível defender o Sistema Nacional de Pós-Graduação em sua integridade, as universidades públicas como um todo, o ensino público em sua integridade, lutar pela reversão integral e incondicional de todo o “congelamento” realizado e previsto. Para derrotar os cortes e defender a educação, é necessário derrotar o governo Bolsonaro. A greve nacional da educação deste dia 15 de maio é uma etapa fundamental desta luta, como o será a greve geral de 14 de junho.

 

NOTAS

1 – http://www.comunica.ufu.br/sites/comunica.ufu.br/files/conteudo/noticia/anexo_breve_relato_da_rreuniao_com_as_diretorias_da_capes_sobre_os_cortes.pdf

2 – https://oglobo.globo.com/sociedade/capes-desbloqueia-12-mil-bolsas-que-estavam-suspensas-apos-cortes-23661457