Antes de falar sobre a ministra Damares Alves, o chanceler Ernesto Araújo e o presidente Jair Bolsonaro, é importante recordar a lição do pintor René Magritte. Em princípio, parece absurdo evocar um dos mais emblemáticos nomes da arte surrealista para tratar de três dos mais desprezíveis representantes do neofascismo verde-amarelo. Mas absurdo mesmo, na verdade, é Ernesto dizer que os problemas climáticos são conspiração comunista, Damares encontrar Jesus num pé de goiaba e Bolsonaro protestar que é “surreal debocharem da fé da ministra”. Posto isso, enfim, lembremos o verdadeiro surrealismo do mestre Magritte, recordando, entre as suas obras-primas, a menos desconhecida: a imagem do cachimbo seguida da frase “Ceci n’est pas une pipe”.
Como se trata de uma imagem, ela não precisa, é claro, ser traduzida, visto que ninguém precisa saber francês para não ter dúvida de que está realmente vendo um cachimbo. Apesar disso, considerando que um cachimbo é um cachimbo, quem não tem a menor ideia do que significa “Ceci n’est pas une pipe” normalmente não vê nada de mais na obra: para os olhares ignorantes, além de o objeto soar indigno da atenção de um “verdadeiro” artista, nem parece tão “fielmente” retratado assim (afinal, é um quadro, não uma fotografia). Esse público beócio preferiria ter na parede da sala – combinando com o sofá – qualquer tela prosaica comprada de um “artista de fim de semana” numa feira de domingo a ter um Magritte (ainda que fosse um original). Para alguns dos que entendem que a frase, em português, significa “Isto não é um cachimbo” (não por conhecerem a língua do pintor, mas porque a inscrição foi traduzida), o quadro parece ainda mais inusitado: esses “idiotas da objetividade” (ah, Nelson Rodrigues, como as bestas têm proliferado), além de acharem não haver nada de mais na reprodução da imagem de um cachimbo, vociferam que é um enorme disparate o autor negar que aquilo seja realmente um cachimbo. Na sua lógica canhestra do “pão pão, queijo queijo”, um cachimbo é um cachimbo e ponto final: se esses espectadores parvos conhecessem a escritora e colecionadora de arte Gertrud Stein, poderiam até utilizar como argumento a sua célebre “uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Nesse caso, sabendo que a palavra “rosa” não é uma “rosa” de verdade, já que não tem cheiro, espinhos e não pode ser colocada num vaso, deixariam claro, ao menos, que não são (tão) energúmenos. Em outros termos, isso quer dizer que teriam (alguma) consciência de que uma pintura de um cachimbo não poderia, em hipótese alguma, ser confundida com um cachimbo de verdade: ou seja, saberiam que é “o óbvio ululante” (ah, Nelson Rodrigues, quem dera a obviedade fosse mesmo óbvia) que um quadro jamais pode ser fumado. Mas, sendo fato que a realidade não é feita de “se”, um “idiota da objetividade” não poderia conhecer nem Nelson Rodrigues, nem Gertrud Stein, nem Magritte. Por isso e aquilo, então, sem ter condições de perceber “o óbvio ululante”, não conseguindo entender o que teria a ver “uma rosa é uma rosa é uma rosa” com “um cachimbo é um cachimbo é um cachimbo”, obviamente ele não poderia saber que é um “idiota da objetividade”. Aliás, como a idiotia, infelizmente, tem vários graus, os poucos menos estúpidos entre os muitos muito beócios acusariam que os nossos exemplos é que são absurdos, porque uma rosa não teria nada em comum com um cachimbo: os mais imbecis entre os mais energúmenos, é claro, obviamente, sem dúvida tentariam fumar a rosa de Gertrud e colocar o cachimbo de Magritte no vaso. Enfim, depois de toda essa digressão, vamos direto ao xis da questão, para tentar ver o que um cachimbo e uma rosa realmente têm a ver com política. Começando pelo diplomata Ernesto Araújo, o menos limitado dos três (que difícil decisão!), que ao menos conhece a diferença entre uma palavra e uma imagem, não confundindo rosa com cachimbo (será mesmo?). Em sua coluna sem medula e osso “nessa geleia geral” brasileira nem beira (ah, Décio Pignatari, o caldo ficou bem mais ralo), ele escreveria – com ar de quem inventou a roda – que o problema não é a rosa, desde que ela não seja vermelha, nem o cachimbo, contanto que ele não seja usado (para fumar, é claro). Para concluir sua “exegese”, o “pensador” diria (quem diria, Rodin!) que a questão não é a rosa nem o cachimbo, mas a cor e o fumo. Apesar da ressalva, por via das dúvidas, o “intelectual acéfalo” (isso é um oxímoro: rima com cachimbo, mas não é solução, Drummond) argumentaria que a palavra “rosa” deveria ser proibida porque poderia servir para fazer, subliminarmente, propaganda comunista da revolucionária Rosa Luxemburgo. A imagem do cachimbo também, já que poderia implicitamente ser utilizada para fazer apologia do uso de substâncias ilícitas. Com a certeza que só têm os que não têm dúvidas de que só poderiam estar realmente certos, o chanceler exigiria num “imperativo categórico” (nem que Kant há quem espante os males!) que fossem preventivamente censuradas também as obras de Rosa (não confunda Cordisburgo com Luxemburgo!), uma vez que o colega de Itamaraty tem “rosa” no nome, gostava de fumar e era pai de “Diadorim”: o filho “trans” de nome “Reinaldo” seria obviamente um mau exemplo aos jovens, estimulando comportamentos “pervertidos”. Na mesma toada insana, a pastora Damares, um pouco mais privada (a descarga está quebrada!) de inteligência e cultura e mais delirante que Araújo, concordaria com o ilustre colega de pasto: à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, ela não se contentaria em ficar atrás ou embaixo da baia do embaixador. Para a religiosa fervorosa, rosa é rosa, cachimbo é cachimbo e queijo é queijo: não tem essa história de Guimarães de que “pão ou pães é questão de opiniães”. Na gramática e na matemática da evanjegue na grama, a bíblia seria a real prova dos nove de que só Deus “o que quer aprova” no grande sertão de cada dia, apontando as veredas da verdade na nossa “Via Crúcis”. Lembrando que Jesus era magro, nunca foi Magritte, jamais fumou cachimbo (como várias personagens de Rosa), Damares pregaria aos fiéis da Igreja Neofascista do Messias Jair que o “Milagre da Multiplicação dos Pães” – sendo comprovadamente um notório, notável e inequívoco fato “óbvio ululante” – jamais poderia ser então, evidentemente, uma mera “questão de opiniães”. Em nome de Deus, em defesa da Tradição, da Família e da Propriedade, a ministra “gramilva” jamais permitiria que “Riobaldo” se casasse com “Reinaldo”: aliás, “Diadorim” nunca poderia entrar em juízo para alterar o registro de seu nome de nascença. Na lógica de Damares, do mesmo modo que cachimbo é cachimbo, homem é homem, mulher é mulher e não se fala mais nisso. Se ela soubesse quem foi Gertrud Stein, e que a escritora lésbica era casada com Alice B. Toklas, certamente ficaria ainda mais louca da vida. Mais louca da vida ainda ficaria se lesse “O Casamento” de Nelson Rodrigues: como ela poderia admitir um pai confessar arder de desejo pela filha “vestida de noiva”? Ernesto daria razão a Damares, argumentando que, para agravar a gravidez da situação, “Dr. Sabino” ainda estuprou a sobrinha epilética de treze anos, e que 13 é o número do PT, prova evidente e inconteste de que não é mesmo ficção que comunista realmente come criancinha de verdade. Além de tudo, para piorar ainda mais, como se não tivesse culpa no cartório, o incestuoso devorador ainda acende o indecente cachimbo pedófilo para fazer a indigesta digestão: por isso é que Araújo e Alves condenam Magritte, mesmo que jamais tenham ouvido ou visto “o nome do pai” no enquadro. A pastora que pasta advogaria que, se a sobrinha epilética de treze anos engravidasse depois de ser estuprada, não poderia abortar o filho do “tio Sabino”. Com ar cúmplice de quem sabe o que está alfafalando, levaria a menina para a sua “Igreja Batista Cansada de Guerra” (cuidado, Jorge Amado!) e lhe contaria a sua triste história: “Estava em cima de um pé de goiaba, ia tomar veneno, eu ia morrer. Era muita dor na alma, de todos os abusos que passei. E quando eu estava em cima do pé de goiaba eu não vi amigo imaginário, eu vi o que eu acreditava. Eu vi Jesus”. A conselheira Damares diria que não importa se o cravo brigou com a rosa debaixo de uma sacada, e a rosa ficou despetalada: do mesmo modo que cachimbo é cachimbo, filho é filho e fim de papo. Ernesto, de acordo, arjumentaria relinchante que o problema de “Diadorim” e Gertrud Stein era não terem encontrado Jesus no meio do caminho (a pedra virou merda, Drummond): para o arauto Araújo, a questão seria que elas (como também Rosa Luxemburgo) nunca subiram num pé de goiaba. Damares encarnaria a prova morta-viva de que goiabas, desde que não sejam vermelhas, realmente têm o poder milagroso de salvar almas atormentadas: se Rosa, ainda menina, tivesse ouvido a pastora, não seria “vermelha”. Araraújo endossaria no planalto a amarga imoral da parábola: a desgraça da revolucionária foi jamais ter trepado gostoso numa goiabeira. Antes ela tivesse encontrado a ministra na Alemanha, em 1919, e se encantado com a sua estória para boi dormir: “Eu demorei anos para admitir que a menininha do pé de goiaba era eu. Mas, quando eu contei foi libertador, eu assumi que eu fui vítima da pedofilia, vítima de dores. Nós temos muitas crianças no brasil hoje em cima do pé de goiaba e muitas mulheres que não conseguiram descer ainda. Eu desci, e desci diferente. A menininha do pé de goiaba está aqui hoje ajudando a salvar crianças”. Se houvesse mesmo pé de goiaba no sertão, certamente “Diadorim” não teria realmente tomado veneno e virado “Reinaldo” de verdade (ainda que fosse de mentira): se “Riobaldo” tivesse comido a goiaba sagrada não teria fumado cachimbo com o diabo. Neste grande desertão sem fé, as goiabas divinas seriam as veredas da Verdade: “Estão me ridicularizando por ter falado isso, mas se vocês não acreditam, problema é de vocês (…). Tem criança que vê duende, que fala com fadas. Eu vi Jesus”. Enfim, entre fadas, duendes e Cristo, quem rumina agora toda essa bóstia pastosa, filosofando na olava alfafa, é o decano decaído da escória sem escola do partido dos “idiotas da objetividade”, o big boss boçal Bolsoasno (como diria o poeta José Paulo Paes, “para bom entendedor, meia palavra: bos-“): “É surreal e extremamente vergonhoso ver setores da grande mídia debocharem do relato da futura ministra Damares Alves sobre a fé em Jesus Cristo, que a livrou de um suicídio desejado por conta de abusos sofridos na infância”. Ah, São Magritte do Surrealismo, coitadas das goiabas que não têm nada a ver com essas infernais “visões do paraíso” (com o perdão de Sérgio Buarque de Holanda pelo profano trocadilho)! Como antídoto contra o suicídio neste dantesco purgatoratório sem fim, voo “ascender” pela antepenúltima vez (erra uma, erram duas, erram três) o seu pé de cachimbo no meio do espinho: com o pé na porta do inferno para dar no pé. Assim me despeço dos hóspedes beócios do inóspito hospício: no precipício, enfim, era uma vez um orifício…
PS1: A imoral da história é mais difícil para quem desdiz que orifício pode nascer ou não ser oráculo. Ou seja, como diz-que-diz o silogístico deitado esfíngico do esfíncter orgasmático de Argos: olho fechado não vê que o buraco é mais embaixo!
PS2: Não é pouca bosta que pensa muita merda e peida tanto pela boca! (Para ressalvar a pátria pútrida dos párias, isto é um provérbio, não um impropério!).
PS3: Como Freud explica, às vezes um cachimbo é só um cachimbo; às vezes um cachimbo é uma pica. Em outra intradução, o gozo pode ser ou não ser uma gozação, na óptica da di/versão do cachimbo em riste no cu ao cubo dos quadrúpedes. Por isso e orifício, não culpe Magritte pela tripla interpenetração de quatro do quadro: afinanal, meu “catso”, quem fode Freud que isto é um chiste, não um lapso. Isto é, a perversão está na cabeça de cima dos cabaços do capitão, que rima com as de baixo calão: “sem tesão não há solução”.
PS4: Enfim, “catch a fire” e sorria: você está sendo fumado!
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