Pular para o conteúdo
MOVIMENTO

Entidades Sindicais: A versão brasileira de ‘The Walking Dead’

Juliana Benício e Paulo Yamamoto*
Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer
Ao vivo é muito pior
(Apenas um rapaz latino-americano – Belchior – 1976)

O autor do presente texto participou de um trio que escreveu certo artigo chamando a atenção para a estranheza dos nossos dias, nos quais, sob o pretexto de combater a pobreza, distribui-se ainda mais pobreza. Foi dito: “De fato, estranhos são os nossos tempos em que a pobreza é combatida retirando-se Direitos Sociais; em que o aumento da violência social decorrente é enfrentada meramente com a ampliação do poder de repressão estatal; em que vítimas de desastres ambientais são “socorridas” com benesses para as empresas que causaram os danos”.

As leitoras e os leitores podem estar se perguntando o que o nome que demos ao presente texto tem a ver com a passagem acima transcrita ou, até mesmo, qual a relação existente entre a segunda e a primeira parte do título. Na tentativa de responder, precisamos partir do reconhecimento de que a união de trabalhadoras e trabalhadores para defenderem seus interesses enquanto categoria profissional sempre foi combatida por aquelas e aqueles dos quais se resguardam.

O Brasil, seguindo a linha dos países de industrialização mais antiga, persegue institucionalmente a organização de trabalhadoras e trabalhadores desde que surgiu. Inicialmente, a criminalização era escancarada. Sob o pretexto da proteção à liberdade de trabalho, impedia-se a organização coletiva das trabalhadoras e trabalhadores.

O código penal de 1890 considerava criminosa a conduta de realizar atos inerentes à efetivação do objeto das entidades sindicais, tais como provocar a suspensão de trabalho para impor aos patrões aumento ou diminuição de serviço ou salário (art. 206). Era, portanto, considerada uma criminosa ou um criminoso aquela e aquele que dirigiam ou participavam de uma greve, exigindo melhores condições de trabalho[1].

Na sequência, normas balizadoras das uniões da classe obreira começaram a surgir, “legalizando” as entidades sindicais, ditando a forma de organização das mulheres e homens que vendem sua força de trabalho, encapsulando seus instrumentos de luta. A transparência na redação do primeiro decreto que visa a estruturar e a ordenar a gestão das organizações da classe trabalhadora não deixa dúvidas acerca do caráter dessa “legalização”: “A organização desses syndicatos é livre de quaesquer restrições ou onus, bastando, para obterem os favores da lei […]”.

Foi o começo de uma tormenta cujo ápice de violência teve como marco as leis 13.429 e 13.467, de 2017. Aquela conhecida por supostamente ter autorizado a terceirização das atividades-fim, esta por ter acabado com a contribuição sindical criada em 1939 pela lei orgânica da sindicalização profissional. Se a instituição desse tributo serviu para docilizar as entidades sindicais no período em que eram conformadas pelo direito, seu fim abrupto tem um objetivo mais agressivo: devorar as entidades sindicais, desde as que conseguem ser combativas, apesar de todos os “favores da lei”, às mais cooptadas.

Aos 68 anos de idade, faleceu, portanto, uma das graças que a lei concedia às entidades sindicais. Não defendemos o recebimento da contribuição compulsória, inclusive, já ajuizamos algumas ações em favor de sindicatos pedindo que o desconto não fosse feito. O problema aqui é o elemento surpresa, próprio das mortes súbitas. Não houve diálogo com a sociedade, não se concedeu um tempo para as entidades sindicais se reorganizarem e reaprenderem a trabalhar sem o financiamento estatal.

As leis 13.429 e 13.467 representam uma violência institucional de grandes proporções, seja pela celeridade com que tramitaram, afastando o povo dos debates acerca das alterações pretendidas; seja pelo seu declarado intento de enfraquecer as trabalhadoras e os trabalhadores frente ao poder econômico; seja por atacarem ferozmente uma das ferramentas democráticas de diálogo e de disputa de que dispõe a classe trabalhadora. Não é demais lembrar que a associação profissional é espécie do direito social (art. 8º da CR/88), gênero este que visa a garantir condições materiais para que mulheres e homens participem dos debates políticos da sociedade em que se inserem.

Os dois dispositivos legais mencionados, na medida em que cortam seu financiamento e dividem ainda mais as categorias profissionais, infectam as entidades sindicais com um vírus que as deixam moribundas, ainda mais dependentes dos favores do legislativo. É aqui que passa a fazer sentido a passagem transcrita inicialmente, acerca da estranheza de nossos dias. Em um país (1) em que a violência cresce desmedidamente; (2) em que persiste a fome, com índices crescentes nos últimos anos; (3) com quase 14 milhões de pessoas desempregadas; utiliza-se um meio violento para colocar em condição de agonia as entidades sindicais, erigidas como essenciais à democracia, instrumentos de garantia da ação de trabalhadoras e trabalhadores na defesa e ampliação da proteção social (concordemos ou não sobre o que elas deveriam ser).

É evidente que a forma eleita para gerir a miséria foi a imposição forçosa de mais miséria.

[1] Destacamos que esse dispositivo nunca entrou em vigor, graças à resistência operária contrária a ele. Essa história está contada no primeiro livro de direito do trabalho da história brasileira, que data de 1907 (Um livro de Evaristo de Moraes, intitulado  “Apontamentos de Direito Operário”). Também isso nos permite perceber que o direito do trabalho não surge como uma dádiva do Estado, nem como um presente de Getúlio Vargas, mas sim como resultado do processo de mobilização e enfrentamento da classe trabalhadora.