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BRASIL

A PEC 06/2019 não é reforma da Previdência! É destruição bárbara da Seguridade Social!

Ivanete Boschetti*, do Rio de Janeiro, RJ
Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

A proposta de “reforma” da Previdência Social (PEC 06/2019) apresentada pelo Governo Federal, diferentemente do que vem sendo alegado, é, na verdade, uma contrarreforma, perversamente injusta, destruidora de direitos, agudizadora da desigualdade social, agravadora da pobreza e da miséria, redutora de rendimento dos mais pobres, impulsionadora das mais perversas formas de exploração da classe trabalhadora. Sob o “canto da sereia” de uma “nova” previdência igualitária, onde “todos” pagarão igualmente e receberão os mesmos benefícios, se esconde um golpe de foice na seguridade social e nos direitos duramente conquistados na Constituição de 1988, após anos de autoritarismo e ausência de direitos políticos e sociais.

A Seguridade Social instaurada em 1988 realizou uma verdadeira Reforma Social, ampliando a previdência social iniciada tímida e restritamente em 1923, com benefícios vinculados ao salário mínimo, assentados na integralidade dos proventos, progressividade das contribuições e aposentadorias por tempo de trabalho e/ou idade, o que considera o desgaste provocado pelas degradantes condições de vida e de trabalho que atingem a maioria da classe trabalhadora. Também instituiu um sistema público universal de saúde (o único da América Latina), desvinculando a saúde das contribuições previdenciárias, e gerida centralmente até então pelo INAMPS (Instituto Nacional da Assistência Médica da Previdência Social), o que possibilitaria a cada cidadão e cidadã acessar os serviços de saúde sem prévia contribuição direta. Em articulação com a previdência Social e a Saúde, a Seguridade Social instituiu, pela primeira vez na história do país, o direito à proteção assistencial para pessoas em situação de necessidade. Além da criação de programas e projetos assistenciais regulamentados posteriormente como serviços socioassistenciais pelo SUAS (Sistema Único de Saúde) em 2005, a Constituição Federal transformou a RMV (Renda mensal Vitalícia de meio salário mínimo existente desde 1974 e destinada aos maiores de 70 anos e “inválidos” definitivamente incapacitados ao trabalho) em BPC (Benefício de Prestação Continuada). O novo BPC está vinculado ao valor a um salário mínimo, reduziu a idade para 65 anos, atenuou os critérios da incapacidade ao trabalho para pessoas com deficiência, mas manteve o aceso condicionado à condição de miserabilidade (medida pela renda individual familiar abaixo de ¼ do SM).

Estas conquistas sociais resultaram da luta democrática pela ampliação de direitos e do compromisso social e solidário de parcela da sociedade brasileira (inclusive parlamentares da direita organizados no famoso Centrão, cuja base articulava parlamentares que hoje gravitam em torno do DEM, do PSDB, do PMDB e outros partidos então inexistentes, como PSD, PP, PR) com o enfrentamento das históricas e trágicas situações de desemprego, desigualdade, miséria e pobreza que assolam mais de 40 milhões de pessoas (quase ¼ da população). Para sustentar financeiramente o gigantismo desse solidário e até então inexistente sistema de proteção social, a Constituição Federal criou os necessários e suficientes mecanismos de financiamento por repartição (para a previdência), assentados na contribuição dos/as trabalhadores/as, de empregadores e do Governo, e ampliação da base de financiamento por meio de impostos diretos e indiretos capazes de sustentar a Seguridade Social e seu objetivo de ampliação dos direitos sociais.

Ao longo de 31 anos, a seguridade social já foi atacada, desfigurada e seus direitos foram reduzidos nos Governos FHC, Lula e Dilma. Mas nunca foi completamente destruída. Os principais e recorrentes argumentos de sustentação das sucessivas contrarreformas destruidoras de direitos são a existência de um suposto déficit (diferença negativa entre arrecadação e despesa) na previdência social, a redução da taxa de fecundidade e o aumento da expectativa de sobrevida, que teriam como impacto a redução das receitas e o aumento das despesas. Essas questões, contudo, já estavam postas em 1988, acrescidas do grave número de trabalhadores/as desempregados/as e em relações precarizadas de trabalho, que oscilam historicamente entre 49% e 51% da população economicamente ativa (acima de 16 anos em condições de trabalhar). Se o orçamento da seguridade social previsto no artigo 195 da Constituição Federal fosse utilizado integralmente para os direitos da saúde, assistência social e previdência social não haveria nenhum déficit. Muitos e sérios estudos (Ver ANFIP e Revista ADVIR/ASDUERJ) comprovam que o suposto déficit decorre, na verdade, da não implementação do orçamento da seguridade social, das sucessivas usurpações dos recursos por meio da Desvinculação da Receitas da União (DRU) para pagamento de juros e amortizações da dívida pública, de despudoradas renúncias tributárias ao grande capital e das sonegações fiscais não fiscalizadas pelo Governo.

O verdadeiro objetivo da PEC 06/2019 não é, portanto, “garantir a sustentabilidade do sistema”. Seu objetivo central é destruir a seguridade social pública e os direitos por meio de sua desconstitucionalização, e criar novos nichos de acumulação, pelas diversas e perversas medidas da contrarreforma, sustentadas na seguinte lógica: 1) reduzir os valores da aposentadoria pública, ampliar a idade (sobretudo das mulheres) e o tempo de contribuição, vincular idade e contribuição, de modo a retardar o acesso (ou mesmo desestimular a inserção na previdência pública) e, assim, impelir os/as trabalhadores/as a pagar sistemas privados de capitalização, com nítido favorecimento aos bancos, às seguradoras e aos fundos de pensão, aos quais o ministro Paulo Guedes tem histórica ligação; b) reduzir o montante da assistência social (BPC) às pessoas com deficiência e idosos, e tornar mais rígidos os critérios de acesso, o que agravará a situação de miserabilidade e pobreza desses segmentos já atingidos pelas mais drásticas condições de vida; e c) estrangular e asfixiar ainda mais a saúde pública, com a separação das fontes de financiamento e desvinculação de seu orçamento da seguridade social, o que provocará a destruição do sistema público e impulsionará os planos privados de saúde.

Somada à contrarreforma trabalhista (Lei 13.467/2017) que alterou a CLT e retirou direitos do trabalho e à emenda constitucional que estabeleceu o teto de gastos públicos por 20 anos (EC 95/2016), essa proposta retrocede aos dramáticos e autoritários anos 1970, desconstitucionaliza e desfigura estruturalmente a Seguridade Social, engendra um ataque sem precedente aos direitos conquistados, e garante um feroz avanço do capital sobre o trabalho, cujo principal sentido é lançar os/as trabalhadores/as sem direitos à exploração devastadora do capital. A luta da classe trabalhadora organizada é o único caminho possível para frear esse tornado antissocial!

 

*Ivanete Boschett é assistente social e professora titular na Escola de Serviço Social da UFRJ. Doutora em Sociologia pela EHESS/ Paris. Fundadora e vice líder do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas em Política Social GEMS/PPGSS/UFRJ. Foi vice presidente e presidente do CFESS (2005-2011) e presidente da Abepss (1998-2000).

Texto publicado inicialmente no Boletim da ADUA/UFAM, com alterações nessa versão.