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Espanha: eleição decisiva e novos desafios

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

A eleição realizada no último domingo na Espanha foi cercada de grande expectativa. O pleito foi antecipado em virtude da retirada de apoio ao governo do PSOE por parte da esquerda independentista catalã (Esquerra Republicana de Catalunya – ERC). O desgaste do governo de Pedro Sánchez (Partido Socialista Obrero Español – PSOE) gerava expectativa de possível retomada do governo pela direita.

Desde a primeira eleição depois de efetivada a transição, com o estabelecimento de uma monarquia parlamentar, em 1977, o sistema político espanhol estruturou-se com forte concentração bipartidária, opondo centro-esquerda (PSOE) e direita (inicialmente União do Centro Democrático, e depois Partido Popular). (1) Ao longo dos últimos anos, o desgaste do bipartidarismo fazia-se nítido, o que se expressou, à esquerda, com a constituição do Podemos, e à direita, com a formação do Ciudadanos (partido conservador que se apresenta como “não ideológico”)(2) . Os críticos dos partidos dominantes apontavam, com justiça, a semelhança das políticas econômicas e sociais de ambos, inclusive inventando ironicamente a  sigla PPSOE. Na eleição de 2016, os dois partidos dominantes tiveram sua votação diminuída, passando de 296 cadeiras (dentre 350) para 220. Portanto, os demais partidos somados passaram de 54 para 130 deputados, um crescimento de quase 150%.

Em 2018, a eleição regionais na Andaluzia trouxeram duas surpresas: a primeira derrota do PSOE naquela região governada pelos “socialistas” desde 1977 (3), e a emergência do partido fascista VOX, que fez 11% dos votos e elegeu 12 parlamentares (de 109 que constituem o Parlamento andaluz). Isto permitiu que os fascistas fossem decisivos para a constituição de um governo de direita naquela região, pactuando com o PP e Ciudadanos, e inclusive apresentando inúmeras exigências. Dentre estas, além de políticas econômicas neoliberais e corte em gastos sociais, destacavam-se a exigência da anulação da lei da promoção da igualdade de gênero, da lei anti-homofobia e da lei da Memória Histórica (aprovada em 2007 e que dentre outras medidas, proibia a exaltação de símbolos franquistas).

O resultado obtido pelo VOX na Andaluzia, trazendo a direita fascista ao centro do debate, propiciou a expansão de sua estrutura partidária e a adesão de algumas lideranças provenientes do PP. Com isto, criou-se a expectativa de que o VOX poderia eleger entre 40 e 50 parlamentares, aparecendo sempre acima de 10% nas pesquisas eleitorais.

28 de abril: derrota da direita, vitória do PSOE

Os resultados contrariaram as expectativas de derrota do PSOE e embora tenham confirmado o ingresso do VOX no parlamento, sua votação ficou bem abaixo das expectativas. Mesmo com a emergência do VOX e avanço do Ciudadanos, a direita em seu conjunto recuou, com a impressionante derrocada do PP, que depois cair de 186 deputados (2011) para 137 (2016), desabaria agora para 66 parlamentares (nitidamente o pior resultado de sua história). Dos 71 postos perdidos pelo PP, 57 permaneceram no campo da direita: Ciudadanos passou de 32 para 57, e VOX ingressou no Parlamento com 24 deputados.

O ingresso dos fascistas no Parlamento é certamente muito preocupante, ainda que sua votação tenha ficado abaixo das expectativas criadas. O violento discurso anti-imigração, a recusa militante aos direitos das mulheres e homossexuais e uma versão espanhola do “Escola sem Partido” foram capazes de produzir expressiva mobilização reacionária, que se expressaram em mais de 2,6 milhões de votos. Em termos de proposta econômico-social, o VOX em nada se diferencia da defesa das políticas de austeridade impostas pelo PP (e, de forma mais atenuada, igualmente pelo PSOE).

O dado mais surpreendente foi o expressivo resultado do PSOE, que passou de 85 para 123 cadeiras. Em parte, este avanço foi impulsionado pela forte diminuição da abstenção, que caiu 34% (2016) para 24% (em um contexto de voto não-obrigatório) e baixo número de brancos e nulos (que juntos não chegaram a 2% dos votantes). A possibilidade de vitória da direita e o aparecimento do fascismo levaram de volta às urnas eleitores centristas que antes haviam se abstido.

A soma dos dois maiores partidos seguiu caindo, passando de 220 para 189 cadeiras, mas com uma radical inversão da proporção em benefício do PSOE, o que garante condições bastante confortáveis aos “socialistas” para negociarem a constituição do próximo governo.

O avanço dos “socialistas” se deu em grande medida às custas da esquerda: o Podemos perdeu 40% de seus mandatos, passando de 71 para 42 cadeiras. A derrota do Podemos se deve em parte ao voto útil (pois parte de seu eleitorado parece ter optado por votar no PSOE para impedir a constituição de uma maioria da direita), mas também a conflitos públicos pela direção, defecções, ambiguidades programáticas e contradições de suas políticas. A debilidade da esquerda torna-se mais grave em um contexto de emergência da ameaça fascista.

Ao contrário do Podemos, a esquerda independentista colheu resultados muito favoráveis no País Basco e na Catalunha. No primeiro, o Bildu (única força efetivamente anticapitalista representada no Parlamento espanhol), dobrou sua bancada, passando a quatro cadeiras, com 16,7% dos votos no País Basco. A ERC, por sua vez, mesmo com suas principais lideranças perseguidas e encarceradas em represália à proclamação de independência, consolidou-se como principal força política da Catalunha, com 24,6% dos votos, passando de 9 para 15 deputados. A permanência do impasse na Catalunha apresenta-se como grande desafio aos “socialistas”, até aqui nada dispostos a qualquer negociação efetiva.

Novos desafios em uma conjuntura de crise

Apesar do expressivo resultado eleitoral, o PSOE não terá vida fácil. Para além da necessidade de enfrentar o desafio independentista, os “socialistas” terão que lidar com um desemprego elevadíssimo (sobretudo na juventude) e crescente e com a estagnação da economia. As imposições da União Europeia e os compromissos do próprio PSOE com políticas austeritárias deixam muito pouco espaço para ação e é difícil vislumbrar a melhora da situação econômico-social no curto e médio prazo. Como pode-se imaginar, a permanência da crise e a manutenção da subordinação aos ditames dos interesses do capital financeiro serão utilizados pelo VOX em sua agitação contra o governo “socialista”.

Em termos institucionais, o PSOE necessita do apoio de outros 53 deputados para alcançar maioria e constituir um novo governo. Uma aliança com Ciudadanos seria suficiente, e há forte pressão empresarial e midiática para que isto se dê. Este cenário, no entanto, está praticamente descartado, em vista do repúdio da maior parte do eleitorado do PSOE ao “novo” partido, que recentemente pactuou com os fascistas para a constituição do governo conservador na Andaluzia.

A outra alternativa seria uma aliança com o Podemos, que já se mostrou disposto a concretizá-la apresentando poucas exigências. Neste caso, seria necessário também o apoio de alguns partidos regionais (independentistas ou não) para atingir as 176 cadeiras necessárias, ou ao menos sua abstenção. Uma terceira possibilidade, que também vem sendo defendida por grupos empresariais e midiáticos, seria a abstenção do PP e de Ciudadanos, o que possibilitaria que o PSOE pudesse atingir maioria sem ter que pactuar com a esquerda, governando sozinho e sem assumir compromissos.

Qualquer destas alternativas estabelece uma situação difícil para a esquerda, ao menos no que se refere ao Podemos, sua principal força. Caso o Podemos participe do governo, é muito improvável que tenha forças para impedir que o PSOE siga colocando em prática políticas neoliberais, e neste caso a direita tradicional (PP), “nova” (Ciudadanos) e fascista (VOX) se credenciariam como principais vozes de expressão do previsível descontentamento popular. Se ficar fora do governo, o Podemos terá que se reinventar e mobilizar efetivamente suas bases para que possa se credenciar como alternativa e antítese da ameaça fascista.

 

NOTAS

1 – O processo de transição espanhola foi marcado pelo conservadorismo, estruturando-se em acordos que permitiram a preservação da monarquia e parte do legado do franquismo, o que possibilitou inclusive a sobrevivência política de saudosistas da ditadura e a preservação de espaços de memória do franquismo, como o Valle de los Caídos. Ainda que até recentemente inexistisse uma direita fascista com representação parlamentar, muitos franquistas tiveram espaço no interior do Partido Popular.

2 – Ciudadanos apresenta-se como um partido “novo” e distinto em relação aos partidos tradicionais, além de supostamente superar a dicotomia esquerda-direita. Na realidade, é um partido que expressa os interesses do “mercado” (ou seja, do capital financeiro) e defende radicais políticas neoliberais sob um vocabulário marcado por termos como inovação, modernidade e gestão. Trata-se, portanto, de organização muito semelhante ao brasileiro NOVO de João Amoedo e Romeu Zema.

3 – Grafamos o termo “socialistas” sempre entre aspas quando se refere ao PSOE, já que efetivamente sua política não tem nada de socialista.

 

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