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MUNDO

A Revolução Sudanesa e o Brasil

Rennan Lemos*

Há poucos dias, o povo sudanês depôs o ditador Omar al-Bashir, depois de meses ocupando pacificamente as ruas da capital Khartum e de outras cidades no Sudão. Após a queda de Bashir, uma junta militar, composta por antigos pilares de sustentação do regime autoritário islâmico, tomou o poder. O militares haviam prometido devolver o poder aos civis em um prazo de 2 anos. Essa estratégia é bem conhecida por nós brasileiros, afinal, foi assim que vivemos por 21 anos a nossa própria ditadura militar. Mas os sudaneses não se enganaram e continuam ocupando as ruas de Khartum, exigindo a saída dos militares do poder e a instauração de um governo civil democrático.

O melhor lugar para se informar sobre a situação no Sudão é o Twitter, especialmente porque a mídia brasileira não dá a devida importância ao que acontece em África, ainda mais em tempos de Bolsonaro. Diversos ativistas e jornalistas sudaneses radicados em outros países estão relatando o que se passa no país. Tais pessoas não eram bem-vindas no Sudão de Bashir, mas muitos destes retornaram ao Sudão após anos fora do país. Igualmente, intelectuais locais e manifestantes tuitam regularmente sobre o que acontece no Sudão, sendo então possível acompanhar quase em tempo real os eventos. O Twitter da Associação de Profissionais (em árabe, viva o Google Tradutor integrado ao Twitter) é uma fonte importante de informações sobre a Revolução Sudanesa. A Associação de Profissionais é uma espécie de entidade de classe que está na linha de frente dos protestos e é responsável por organizar as manifestações desde o início.

Igualmente na linha de frente, estão jovens — engenheiros, advogados, médicos — de todas as classes sociais, estudantes secundaristas e universitários. As mulheres sudanesas também têm ocupado posições de destaque e liderança nesse processo. As mulheres trazem consigo o papel de representantes de tradições locais outrora silenciadas por um projeto que pretendia transformar o Sudão em um país islâmico, suprimindo a milenar diversidade étnica e cultural do país africano. Muitos desses jovens foram brutalmente assassinados pela repressão, que atirava nos manifestantes à queima roupa, ou empregava atiradores de elites posicionados no topo dos prédios de Khartum para abater aqueles que estavam nas ruas. Outros tantos foram enviados para centros de tortura e estão desaparecidos, algo muito semelhante ao que aconteceu no nosso país e cujo fantasma ainda nos assombra. As mortes, os desaparecimentos, a tortura e o toque de recolher só serviram para alimentar a Revolução, e a queda de Bashir não é nem de longe o fim dessa saga em direção a uma nova sociedade.

Hoje, informações sobre o processo de negociação entre a oposição e a junta militar que ocupa o governo dito provisório chegam até nós dizendo que as partes chegaram a um (des)acordo sobre um governo provisório misto—o desentendimento reside no fato de que a oposição civil exige a maioria das cadeiras no comitê, enquanto os militares demandam a mesma coisa. Ao mesmo tempo, a Associação de Profissionais conclama todos os sudaneses à união, e convoca diversos setores da sociedade, especialmente estudantes secundaristas em seus uniformes, para se juntar à vigília instaurada em frente ao quartel general do governo provisório desde a queda de Bashir, exigindo a saída dos militares do poder.

Um breve histórico

Omar al-Bashir tomou o poder em 1989 com um golpe de Estado que derrubou o então primeiro ministro e líder religioso Sadiq al-Mahdi, após a abertura de negociações com rebeldes no sul. Após o golpe, Bashir foi eleito 3 vezes, em meio a diversas alegações de fraude. Bashir é acusado pela Corte Criminal Internacional de genocídio em Darfur. Atualmente, ele se encontra preso na notória prisão de Kobar em Khartum, local para onde diversos oponentes de seu regime, presos políticos, foram enviados.

Os protestos que derrubaram Bashir começaram em dezembro do ano passado, movidos pelo aumento do preço do pão e pela piora na qualidade de vida. Era comum ver filas quilométricas de carros e caminhões em postos de gasolina na esperança de haver combustível, ou de pessoas em caixas eletrônicos em busca de dinheiro em espécie, geralmente indisponível. Enquanto isso, mais de 130 milhões de dólares em espécie foram encontrados na residência de Bashir no momento de sua prisão.

Do silêncio à música

Os anos de Bashir foram marcados pela guerra, pela perseguição aos adversários, pela repressão política e pelo declínio econômico—sobretudo após a independência do Sudão do Sul em 2011. Esse tempo também foi marcado pelo silenciamento das manifestações culturais e da diversidade étnica.

O Sudão sempre foi um país muito musical e de uma diversidade cultural muito grande. Quando Bashir tomou o poder, os músicos do país tornaram-se alvos da repressão. Festas, apresentações de música ao vivo e celebrações em geral foram proibidas. Mas a beleza da cultura reside justamente na sua capacidade de adaptação e de sobreviver em meio à repressão, vide as tradicionais celebrações sufis todas as sextas-feiras em Omdurman, no cemitério onde se localiza a tumba do Sheik Hamad al-Nil—a beleza da mistura da religião e cultura muçulmanas e dos encantos e tradições de África.

A Revolução trouxe de volta ao Sudão a música, a festa, a cultura, muitas vezes através de figuras femininas, também tradicionalmente silenciadas nos anos de Bashir. Ainda não chegou a hora de celebrar por completo, pois ainda há lutas para serem travadas.

É uma pena que a mídia venha escondendo do povo brasileiro o que está acontecendo no Sudão, nosso país-irmão africano (para quem não sabe, negros muçulmanos escravizados, originários do Sudão, foram trazidos para o Brasil no século XIX). Talvez isso aconteça pelo simples desinteresse das classes médias brancas pelo que acontece em África. Mas sobretudo talvez não pareça interessante aos que atualmente governam nosso país veicular notícias de um povo que se organizou e foi as ruas fazer com que ouvissem sua voz e sentissem sua força. São mensagens perigosas para quem tem medo de quem pensa e para quem ameaça cortar gastos com cursos de filosofia e sociologia.

 

*Rennan Lemos é doutorando em arqueologia pela Universidade de Cambridge, e participa de escavações no Sudão desde 2018.

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