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BRASIL

A liberdade de pensamento em leito de Procusto

João Miranda, de Marechal Cândido Rondon, PR

Na novela A Metamorfose, Kafka começa a narrativa de uma forma direta. O clímax do enredo é apresentado logo de início, e todos os acontecimentos posteriores são desdobramentos desse primeiro momento. Conta Kafka que, numa certa manhã, Gregor Samsa acorda metamorfoseado num inseto monstruoso e gigantesco.

Muitas e muitos interpretam a obra como não-realista. De fato, parece pouco verossímil alguém numa certa manhã acordar na forma de uma barata gigante. Contudo, a falta de explicação para o que ocorreu com Gregor é o que dá verossimilhança à novela. Afinal, nada mais real, no mundo contemporâneo, do que ser condenado e não saber o porquê da condenação; e, pior, não ter o direito de saber.

Não seria necessária uma lupa para constatar que o governo Bolsonaro segue esse mote. Trata-se de um modus operandi em que concentra todas as decisões em si mesmo; é, neste sentido, completamente centralizador, personalista, sem transparência, sem democracia, sem diálogo, sem interlocução com as pessoas que votaram nele e, muito menos, com as pessoas que fazem oposição a ele.

Não é à toa que o governo faz de tudo para fiscalizar professoras e professores, incentivando colegas de profissão e estudantes a vigiar e filmar aquelas e aqueles que, supostamente, poderiam estar realizando “doutrinação ideológica e política” e “balbúrdia” em sala de aula. Não é à toa que querem que os livros se mantenham fechados, como foi a campanha sensacionalista contra a obra intitulada difamatoriamente como “Kit Gay”. Não é à toa que querem barrar a liberdade dos cursos de humanas das universidades.

Não é à toa, enfim, que Bolsonaro ataca sempre que pode intelectuais, militantes, ativistas e qualquer um que ouse discordar ou que possa vir a discordar dele. Em suas diversas variações nacionais, o fascismo possui sempre um forte elemento de anti-intelectualismo, de anti-pensamento crítico de oposição. Em geral, os políticos e ideólogos fascistas reprovam o pensamento crítico de oposição por acharem que os mesmos não possuem “função” na sociedade, acusando-os de não contribuírem para o poder e a unidade do estado nacional.

Mais recentemente, segue essa linha o corte de 30% nos orçamentos das universidades. Isso fere a autonomia universitária assegurada constitucionalmente pelo artigo 207 da Carta Magma e prejudica gravemente o futuro de uma geração de brasileiras e brasileiros. A medida, anunciada pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, revela o projeto do governo de destruir a liberdade de pensamento.

A liberdade de pensamento é, dessa forma, colocada no leito de Procusto. Na mitologia grega há uma lenda chamada “Leito de Procusto”, que se tratava de um bandido que sequestrava as pessoas, levando-as para a sua casa. Nela, havia uma cama de ferro, que possuía o exato tamanho de Procusto e para a qual ele obrigava as pessoas a se deitarem. Se os “hóspedes” fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, e os que tinham pequena estatura eram esticados até atingirem o comprimento suficiente.

Bolsonaro e cia fazem isso: aquela ou aquele que não se ajusta exatamente ao tamanho das suas ideias, é forçadamente “ajustado”, nem que isso signifique acordar de manhã transfigurado em um inseto gigante, ou, noutras palavras, nem que isso signifique a condenação sem que a vítima tenha o direito de defesa. Fazem isso para ocultar intenções inconfessáveis, pois sabem que navegam melhor por entre brumas e cerração; pois sabem que se as pessoas de fato entendessem o que esse governo fará com elas, promoveriam a sua derrubada no mesmo instante. O principal motor da sujeição é a ignorância. E isso é a prova mais clara do autoritarismo vigente; é a característica central de todo projeto obscuro.

Obviamente, a maneira como Bolsonaro reorganizou os ministérios reflete isso, fundindo-os em “superministérios”. Bolsonaro justificou essa reorganização com a retórica supostamente em defesa do pragmatismo e da eficiência. Ele diz que quer gente eficiente perto dele, quer reduzir gastos, acabar com a corrupção. Essas justificas para a fusão dos ministérios não passam de inverdades.

Bolsonaro quer sim é centralizar o poder em si mesmo. Sinceramente, nada disso me surpreende. Não esperava algo diferente de alguém como Bolsonaro, que não tem tradição democrática; pelo contrário, ataca o sistema democrático sempre que pode.

A democracia brasileira, que já é extremamente falha, segue assim cada vez mais deturpada neste governo. O fosso existente entre a população e o sistema político a cada dia que passa aumenta ainda mais, pois as poucas pontes construídas até aqui estão sendo rapidamente destruídas.

O mais assustador é que, para qualquer um que ouse fazer oposição, corre o risco de ser atacado, de desaparecer, de morrer. Risco que sempre existiu, especialmente para quem é periférico, quem é mulher, quem é negro, quem pertence à comunidade LGBT. Contudo, o tijolo agora é muito maior e vem direto contra a cabeça de quem traz no bolso muambas, baganas e nem um tostão.

Esse ataque está sendo perpetrado diretamente pelo governo, e também pelos sujeitos protagonistas do movimento bolsonarista, composto pelo núcleo duro de apoiadores mais convictos e radicais, fascistas, que estão longe de agir dentro do universo da divergência política aceitável, como já demonstraram no ano passado matando o mestre de capoeira e militante Romualdo Rosário da Costa, de 63 anos, conhecido como Moa do Katendê, que foi esfaqueado e morto em um bar por um apoiador de Bolsonaro. Esse grupo de eleitores, vale ressaltar, é uma parcela pequena do conjunto de pessoas que votaram no candidato do PSL. 

Neste sentido, não há nuvem de fumaça, como muitos querem crer. Tudo o que é dito, defendido e ressaltado pelo governo, como as posturas extremamente racistas e misóginas, como por exemplo as defendidas pelo presidente e seus lacaios nas redes sociais, acaba reverberando na realidade concreta, com consequências graves.

O terreno para o massacre já está sendo, assim, preparado. Já está também na ordem do dia o acirramento da Lei Anti-terrorismo que criminaliza movimentos sociais, o Projeto Escola Sem Partido e o fim do atual Estatuto do Desarmamento. Além de promover um discurso de ódio, que inflama e instiga os setores mais autoritários e retrógrados da sociedade brasileira, Bolsonaro quer ainda armar a população, dando também carta branca aos policiais para matarem quem quiserem; como fez o exército assassinando o músico e pai de família Evaldo Costa, com 80 tiros disparados contra o seu carro aonde estava com a família.

O risco contra nós é grande. De repente, algo se esgarçou e se tornou inaceitável para uma parte da sociedade. E este algo inaceitável marca e determina um inimigo: a esquerda brasileira. De repente, nós de esquerda passamos a ser vistos por uma parcela considerável da população como baratas gigantescas horrorosas. Assim como Gregor Samsa, podem nos condenar ao leito de Procusto sem termos o direito de saber o porquê.

Contudo, está muito enganado quem crê que recuaremos. Engana-se quem imagina que ficaremos de braços cruzados em casa lambendo as feridas.

Já estamos nos estruturando para mobilizar o conjunto da classe trabalhadora profunda e legitimamente insatisfeita com o sistema político, organizando-os, de modo que entendam que fazem parte da resistência e construam conosco a força necessária para barrar os rojões.

De pé, a lutar, o povo vai triunfar em um vermelho amanhecer. Bem unido façamos, nesta luta final, uma terra sem amos.

 

João Miranda é professor de História