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Colunas

Hands Off Venezuela

Elaine Behring

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), e o Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI). Tem publicações na área de política social, orçamento público, fundo público e serviço social.

Em 2017, os caminhos do trabalho acadêmico de pesquisa me levaram à Venezuela, num projeto integrado entre universidades do Chile, Brasil e este país, que já naquele momento se encontrava no olho do furacão, sob a pressão imperialista norte-americana e a preocupação com os desdobramentos do Golpe de Estado ocorrido no Brasil e derrotas eleitorais de governos de centro, com tonalidades diferentes entre si quanto a tendências mais à esquerda ou direita, a exemplo da Argentina e Chile, e com a exceção do Uruguai e Bolívia. Se não temos maiores afinidades com os projetos de Kirchner, Lula/Dilma e Bachelet, isso não significa dizer que na política externa, sua existência não tenha configurado uma situação mais confortável para Venezuela e Cuba, do ponto de vista geopolítico. Naquele momento escrevi as linhas que seguem, que reproduzo aqui brevemente e com alguma edição, numa rede social:

“Tenho andado pelas ruas de Maracaibo, a segunda maior cidade da Venezuela, muito importante pela indústria do petróleo. Em nenhum lugar por onde passei senti grandes tensões, mesmo na Universidad Autonoma de Zulia, que tem conhecida hegemonia da direita. Não havia até ontem manifestações de rua contra o governo Maduro, e hoje há algumas pouco massivas em Caracas. Escutei garçons, motoristas de taxi, professores. Alguns sinalizam que Maduro não é Chavez. Outros querem manter certa neutralidade impossível, mas reconhecem em geral avanços para as maiorias, que é o que mantém o processo bolivariano forte há 17 anos apesar das inúmeras tentativas pacíficas ou violentas de interromper tudo. Um tudo que não é pouco para os trabalhadores da Venezuela: a estatização do petróleo, inúmeras e inovadoras políticas públicas por meio das “missiones”. Mas é muito para uma burguesia antinacional e antipública. Sobre o tema da Assembleia Nacional, a direita insistiu em dar posse a deputados impugnados por irregularidades nas eleições, o que a colocou em desacato frente à Constituição. E, por isso, suas decisões não têm validade enquanto este impasse não for solucionado. Não está em curso um Golpe de Estado na Venezuela, por parte de Maduro [como a imprensa dizia em 2017]. A Constituição Venezuelana tem cinco poderes e não três como a nossa, sendo que quatro deles estão dando suporte à decisão do Superior Tribunal de Justiça. A direita hoje com maioria na Assembleia aposta no impasse para gerar pressão internacional sobre a Venezuela. Não caiamos na balela da mídia. Não façamos coro com a direita venezuelana, minoritária socialmente, apesar de uma maioria parlamentar, fruto do duro desgaste pela guerra econômica que está fazendo, tirando a comida da mesa dos trabalhadores(as), por meio do desabastecimento. É para frente que se anda, hacia el socialismo! Precisamos fortalecer a transição venezuelana sem deixar de sinalizar seus dilemas e contradições, mas com solidariedade de classe, trabalhadores e trabalhadoras que somos.”

De 2017 para o momento atual em que escrevo essas linhas, a situação venezuelana vem ganhando contornos dramáticos e decisivos para a América Latina e a geopolítica econômica internacional. Agora, o presidente da Assembleia, Juan Guaidó, se auto intitula presidente interino do país e acusa o governo eleito de Maduro de usurpação, com o apoio explícito do imperialismo norte-americano e europeu, e seus sub títeres, a exemplo do governo de extrema direita brasileiro e de Macri (em franca decadência entre os seus) na Argentina. Tudo isso pela suposta defesa da democracia, sendo que Maduro foi eleito e os demais poderes lhe dão suporte. As mídias burguesas insistem na tese de que Maduro é um ditador. E em nome disso, sustentaram nos últimos dois anos e sem falar das anteriores (para uma boa compreensão da Venezuela, o filme A Revolução Não Será Televisionada, de Kim BartleyDonnacha O’Briain, 2003, é imprescindível !) duas tentativas de golpe de Estado na Venezuela. Na primeira alegaram “ajuda humanitária”. A segunda, ocorrida neste 30 de abril de 2019, ao que tudo indica foi derrotada pelo povo trabalhador na rua, em grande manifestação de apoio a Maduro no Palácio de Miraflores, em Caracas. Houve, também, apoio em outras cidades do país. Mas, o fato central é que não conseguem “rachar” as forças armadas, apesar de algumas poucas dissensões. Contudo, conseguiram libertar López, que estava em prisão domiciliar, após organizar guarimbas, que, longe de serem movimentos de oposição democrática, se constituíram em violência física contra a população, impedindo as pessoas de saírem de suas casas e provocando mortes  e ferimentos nos que precisavam furar os bloqueios, e que não foram noticiadas por aqui. Para informação do leitor as guarimbas da direita esticavam de um lado a outro da rua fios cortantes e invisíveis que chegaram a degolar pessoas. Por essas mortes López foi julgado, condenado e preso.

Houve neste dia 30 de abril de 2019  enfrentamentos de rua, mortos e feridos em cenas largamente difundidas pelas mídias, que nos partem o coração. Quem conhece um pouco a Venezuela, lembra da alegria, da música e das artesanias indígenas coloridas dos povos Wayuu e outros. É interessante notar que quando estivemos nas ruas contra a EC 95 em 2016 em Brasília, ou na ALERJ contra os criminosos governos do Rio de Janeiro e em defesa da UERJ e da CEDAE públicas, ou mesmo em defesa dos nossos salários, os governos soltaram os brucutus e motos sobre nossas manifestações. A violência foi inédita desde os tempos da ditadura militar, com avanço da cavalaria sobre as pessoas, bombas de gás lançadas de helicópteros, e balas de borracha, sendo que nenhum grande jornal qualificou essas atitudes como de ditadores, como vem fazendo em relação à Venezuela. Aqui a violência que vem de cima, estatal, não é condenada. Pelo contrário, as manifestações foram em geral acusadas de vandalismo. Talvez seja a “eterna contradição humana” como dizia Machado de Assis em seu famoso conto sobre Deus e o Diabo. Ou quiçá seja o momento de lembrar Drummond, para quem “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se na pedra” (Nosso Tempo). Estamos diante de um momento decisivo da luta de classes na Venezuela, com desdobramentos duradouros para nuestra América.

Da visita a Maracaibo em 2017, alguns registros merecem ainda ser feitos. Entramos em um supermercado vazio de pessoas, com prateleiras relativamente cheias de mercadorias, com preços impensáveis para a maioria da população em função de uma inflação corrosiva e induzida pelos produtores, com sua política de “boi no pasto”, tal como ocorreu no Plano Cruzado, em 1985/86, no Brasil. Era a evidência da sabotagem da burguesia venezuelana contra o processo bolivariano, diminuindo ostensiva e intencionalmente o acesso à alimentação. A Venezuela, rica em petróleo, não é um país miserável e dependente da “ajuda humanitária”, tanto quanto o Chile de Salvador Allende, entre 1971 e 1973, rico em cobre e outros minerais, que foi também fustigado pela mesma política: erodir a legitimidade do projeto socialista eleito pela via democrática, pelo agravamento da fome, das necessidades do estômago. Desta forma entendemos que a crise alimentar e de emprego vem sendo induzida, tendo em vista a derrubada do projeto bolivariano, ainda que a maioria da população o tenha escolhido pelo voto. Aqui reside uma questão que me parece central quanto aos limites do bolivarianismo: a dificuldade de, nesses 19 anos, assegurar uma diversificação e coletivização maior da produção no país, que pudesse enfrentar de fato a sabotagem. Ademais, a economia política fundada no petróleo e nas energias fósseis tem um potencial destrutivo do meio ambiente, para o qual um governo de transição deveria estar atento. Os níveis de poluição do lago em Maracaibo, ao lado das grandes refinarias da estatal PDVSA, são elevadíssimos.  No entanto, é compreensível que, num mundo ainda movido pelo petróleo, as maiores reservas do planeta estejam na mira das disputas interimperialistas e a Venezuela tenha dificuldade de se libertar desta fonte de divisas. Porém, o fato é que jantando num restaurante do bairro burguês de Maracaibo, observamos que ali nada faltava, inclusive frequentadores locais de setores de camadas médias que apoiam Guaidó.

O que quero enfatizar é que a crise vem sendo sistematicamente produzida na Venezuela, por esta típica burguesia antipopular, antinacional e antipública que viceja na América Latina de veias abertas ao imperialismo, como nos ensinou Eduardo Galeano. Se o governo Maduro tem seus limites, a responsabilidade principal pelos acontecimentos não está aí localizada.  Vimos um grande esforço do governo e das missiones que contam com participação popular de coletivos, de cadastrar famílias para receberem alimentos. Estivemos hospedadas num antigo hotel estatizado – e onde as dificuldades com alimentos e serviços são visíveis – e que se transforma em clube nos finais de semana, aberto gratuitamente à população da cidade. Estivemos numa escola de formação das forças de segurança pública (polícia, corpo de bombeiros, etc), com uma concepção inteiramente nova de seu trabalho e conectada aos bairros e à população. Conhecemos as missiones no campo da política social, que trazem consigo iniciativas autônomas de participação popular e uma perspectiva de educação popular e preservação do meio ambiente. Observamos uma espécie de sedimento intelectual e moral do processo bolivariano nas mais profundas tradições de pensamento e luta continentais: em Simon Bolívar, ademais uma referência de libertação e luta anticolonial em toda a América Latina, da violenta colonização hispânica; em Ezequiel Zamora, um liberal romântico defensor da reforma agrária;  e Simon Rodríguez, de quem Chávez herdou a máxima “ou inventamos ou erramos”.

São muitos os limites do bolivarianismo numa transição tão conturbada para a perspectiva do socialismo, que muitos em suas fileiras defendem, por vezes de forma difusa. E considerando ainda que o Estado burguês seja uma máquina trituradora de projetos de esquerda. Na Venezuela há uma tentativa real de tornar o poder popular um poder de fato, dos “de baixo”, o que incomoda terrivelmente o andar de cima local e do imperialismo Norte-Americano. A tarefa dos que lutam desde os communards franceses de 1871 pela humanidade, é defender a Venezuela.