A arte de julgar
Fui desafiado a escrever quinzenalmente uma coluna para o Portal Esquerda Online sobre poesia, música, literatura e produções artísticas em geral. Como gosto do debate de ideias, aceitei prontamente o desafio. Primeiramente, preciso apresentar o chão onde sustento os meus pés. Sou poeta, cantor, compositor, artista gráfico, historiador e mestrando em antropologia social, e é sobre estes palcos que construirei minhas análises e opiniões sobre os temas desta coluna. Escrever sobre aquilo do que faço parte coloca sobre a mim a dura e necessária tarefa de refletir sobre o que construo cotidianamente. Isso quer dizer que a prática pode mudar a teoria, a vida (experiência) está sempre por modificar os parâmetros de análise. Nesse primeiro momento, resolvi recorrer a algumas abordagens teóricas, por entender necessário introduzir algumas questões que considerarei na minha análise.
Antes de tudo, acho importante localizar rapidamente o conceito de cultura como tudo aquilo que selecionamos para dar sentido a nossas vidas a partir da nossa experiência (vivência). “Das piruetas do balé clássico aos fatos mais óbvios, todo o comportamento humano está mediado culturalmente. A cultura reúne a vida cotidiana e o esotérico, o mundano e o excepcional, o ridículo e o sublime. A cultura é onipresente, nem superior nem inferior”. (ROSADO, p.47, 1989) A cultura é mediada por nossa experiência no mundo e por isso, está em constante transformação.
Definida o entendimento de cultura, partiremos para a definição de Arte. A palavra tem origem latina, “ars” e quer dizer técnica ou habilidade. Se formos para o dicionário Houaiss, arte está descrita como a “produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana”. E aqui entramos num ponto chave para a compreensão da definição. Esse entendimento exposto no dicionário não vem do acaso. Na antiguidade, a arte se referia a produção consciente de obras que buscavam concretizar o ideal de beleza e as capacidades de criação humana.
No início, não havia distinção entra o belo da arte e o belo da natureza. Foi com a filosofia idealista germânica que o belo da arte começou a ser sobrepor ao belo da natureza. A ideia de beleza artística ganhou mais notoriedade do que a da natureza, pois, segundo os filósofos da época, nela estaria imbuído o “Espírito” da produção humana. Essas discussões pavimentaram o caminho para a formação do conceito de estética enquanto fundamento da filosofia da arte.
Bem, pulando uma longa história de polêmicas em torno dessa discussão, cujo não propomos nos debruçar nesse momento, a concepção de arte como campo de produção das criações humanas voltadas para a concretização de um ideal de beleza foi produto de um discurso dominante e institucionalizado no século XVIII, representando os interesses de um segmento da sociedade. A arte, sobretudo Ocidental, sempre esteve atrelada aos interesses das elites dominantes que estabeleceram as “regras” necessárias para considerar um objeto artístico ou não.
A distinção entre cultura erudita e popular nasce daí, no entanto, esse é tema para outro texto. O que anteriormente aplicava-se a todas as atividades manuais realizadas segundo regras, com mestria – da arte de fazer imagens à arte do tecelão ou do apicultor, passou a designar apenas aquilo que se enquadrasse aos padrões estabelecidos por esse ideal. Se considerarmos que a concepção de arte é fruto de um pensamento de determinada cultura/sociedade, podemos afirmar que existem obras de arte produzidas em distintas tradições culturais e tempos históricos, logo, possuem diversas maneiras de serem entendidas como tal. A Antiguidade, o Romantismo, o Iluminismo, a sociedade Industrial projetaram distintas concepções sobre esse ideal ao longo da história da humanidade.
Acredito que a análise de uma obra de arte deve envolver o contexto e suas dimensões sociais, políticas e econômicas, pois as “categorias de percepção, ingenuamente consideradas como universais e eternas, que os amadores de arte de nossas sociedades aplicam à obra de arte, são categorias históricas”. (BOURDIEU, p.348, 1988) Isso não implica a inexistência da autonomia e capacidade de cada um estabelecer afetividade por determinada obra.
Todavia, é imprescindível compreender os mecanismos que estão em volta das produções artísticas e a forma como operam sobre o pensamento social. A maioria das produções artísticas ocidentais não foram produzidas para serem exclusivamente apreciadas pelo público, mas para atender propósitos instrumentais. Pinturas religiosas para funções litúrgicas, estátuas para dignificar espaços públicos e conservam determinadas memórias, representavam assim interesses de algum setor da sociedade. (GELL, 2001)
Por isso, neste pequeno espaço concedido pelo Portal Esquerda Online procurarei abordar a arte e suas expressões (música, poesia, pintura, literatura, cinema, etc.) a partir das suas intencionalidades. Uma música pode ter diversos objetivos: fazer dançar, chorar, refletir e criticar determinado tema, nos encantar pela beleza da sua composição instrumental ou da sua letra, etc. E assim, estendo o exemplo para todos os segmentos artísticos. O que não se encaixe na minha visão e apreciação, não significa que não pode fazer sentido para o outro. Tento assim escapar dos perigos impostos das determinações do que seria “bom” ou “ruim”.
Uma anedota antes de encerrar esse texto, o poeta inglês Wilfried Blunt comentou em seus diários sobre uma exposição que incluía Cézanne, Van Gogh e Matisse, onde avaliou o que viu como “rude puerilidade que rabisca indecências na parede de um sanitário”, ou “obras da ociosidade e de uma impotente estupidez”. Bem, não preciso aqui descrever o lugar que a história reservou para esses pintores.
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