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BRASIL

Em defesa da autonomia universitária

Eduardo*

O jornal O Estado de São Paulo noticiou, nesta segunda-feira (22/04), a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para a apuração de irregularidades na gestão das universidades públicas paulistas. De acordo com o requerimento apresentado por seu proponente, Deputado Wellington Moura (PRB), as referidas instituições de ensino superior recebem um enorme volume de recursos públicos, porém se declaram em crise financeira. A contradição entre esses fatos parece, segundo o deputado, ser produto de má gestão e, especialmente, de irregularidades no cálculo dos salários, fazendo com que alguns deles sejam maiores do que o permitido pelo teto constitucional.

Chama a atenção, todavia, que os deputados signatários do requerimento apontam um suposto aparelhamento ideológico de esquerda como razão fundamental para a CPI. E, por isso, querem também discutir mudanças no modo de escolha dos reitores, na forma de repasse de recursos, bem como a possibilidade da cobrança de mensalidades. Querem, portanto, fazer da CPI um meio para a intervenção sobre as universidades, rompendo com o princípio constitucional da autonomia universitária. Não é tarefa difícil identificar essa movimentação com o amplo conjunto de iniciativas autoritárias que vem dominando o cenário das políticas educacionais desde a eleição de Jair Bolsonaro. As universidades federais foram, nesse sentido, as primeiras a serem afetadas. Ainda em Janeiro o governo anunciou que seus reitores passariam a ser escolhidos pelo Ministro da Educação e não mais por consulta direta – ainda que não-paritária – às comunidades universitárias. De forma semelhante, é por meio da construção de uma imagem fantasmagórica do aparelhamento ideológico de esquerda que o governo justifica sua decisão de efetivamente aparelhar ideologicamente as instituições de ensino. Os projetos de Escola Sem Partido são exemplos mais que evidentes desse mesmo processo.

A campanha eleitoral de 2018 não deixou dúvidas sobre o alinhamento entre João Dória e Jair Bolsonaro. Por isso mesmo, não surpreende que a CPI que se instalará na Assembleia paulista tenha sido proposta e amplamente apoiada por membros da base do governo de Dória. O que causa espanto, na verdade, é que dentre os nomes que subscrevem ao requerimento não haja nenhum membro do PSL de Bolsonaro, mas haja um representante do PT, o Deputado José Américo, e uma representante do PCdoB, a Deputada Leci Brandão. Embora não seja possível dizer que suas assinaturas tenham sido decisivas para a validação do requerimento – que deve ser apoiado por um terço dos deputados –, também não nos parece haver justificativa razoável para a adesão desses parlamentares à proposta de intervenção reacionária sobre as universidades. Consultamos o regimento interno da Alesp para sabermos se a assinatura garantiria a participação na Comissão, o que poderia ser considerado um meio de barrar seus esforços. No entanto, a distribuição das cadeiras é feita de forma proporcional ao tamanho das bancadas partidárias[iv]. Então, consultamos as redes sociais de ambos deputados[v] de forma a buscar qualquer posicionamento público sobre o assunto, porém nada encontramos. Caso venham a se manifestar, suas posições serão incluídas nesse texto.

As questões orçamentárias das universidades estaduais paulistas são amplamente conhecidas e há bastante tempo discutidas pelas respectivas comunidades. Em março de 2017, por exemplo, o Conselho Universitário da Universidade de São Paulo (CO/USP) aprovou um conjunto de medidas, oficialmente chamado de Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira, que continha a demissão de trabalhadores, o congelamento de salários e o corte de benefícios como forma de remediar a crise. Essas medidas sofreram forte oposição dos movimentos sociais da universidade, que deram a elas o apelido de PEC do Fim da USP. O plano da reitoria deixava de reconhecer que a expansão da universidade tornava necessária a equivalente expansão do investimento público. Supersalários e privilégios de certo eram partes do problema, porém as resoluções tomadas pela reitoria aprofundariam a precarização das condições de ensino, aprendizagem e permanência na universidade. O dia da aprovação do plano foi tristemente marcado por ações violentas da Polícia Militar contra manifestações de oposição à reitoria.

Isto é, o financiamento das universidades públicas paulistas é um problema real. Os movimentos sociais universitários de forma alguma se associam com as administrações universitárias quanto aos tipos de soluções que têm sido propostas. Defendemos universidades mais inclusivas, mais democráticas e que, portanto, ofereçam condições efetivas para a formação superior de qualidade, sobretudo das camadas da sociedade que apenas muito recentemente puderam efetivamente acessá-las, como são as populações pretas e periféricas. As reitorias, por outro lado, têm agido de forma a tornar as universidades mais exclusivas e isoladas. As políticas de permanência estudantil vêm sendo drasticamente reduzidas. Creches foram fechadas e hospitais deixaram de oferecer uma série de atendimentos. Em muitos cursos, faltam professores. O quadro de funcionários se tornou insuficiente e, com isso, aumentaram as terceirizações. A pesquisa e a pós-graduação também correm sério risco, já que dependem sobretudo do financiamento de agências de fomento federais como a Capes e o CNPq.

No entanto, tanto Vahan Agopyan, da USP, quanto Marcelo Knobel, da UNICAMP, se posicionaram contrariamente à investida reacionária sobre a autonomia universitária, bem como à possibilidade de cobrança de mensalidades. A autonomia financeira e administrativa e a liberdade de cátedra são requisitos fundamentais também da universidade que defendemos. Portanto, devemos considerar esses reitores nossos aliados circunstanciais nessa batalha ideológica, bem como exigir de Leci Brandão e de Professora Bebel (representante do PT na Comissão), que honrem seus compromissos de defesa da universidade pública. A produção de conhecimento jamais deve se submeter àqueles que detêm o poder, sobretudo em uma sociedade tão profundamente desigual como essa em que vivemos.

 

[iv]    Diz o Regimento Interno em sua Seção III, Das Comissões Parlamentares de Inquérito:

Artigo 34 – A Assembleia Legislativa, mediante requerimento de um terço de seus membros, e observada a ordem cronológica de solicitação, criará Comissão Parlamentar de Inquérito com poderes de vestigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos em lei e neste Regimento, para apuração de fato determinado, por prazo certo e com indicação do número de seus componentes.

  • 1º – Protocolizado por um terço dos membros da Assembleia, o Presidente ordenará a numeração e publicação do requerimento.
  • 2º – Em seguida, se preenchidos os requisitos constitucionais, o Presidente, mediante Ato, criará a Comissão Parlamentar de Inquérito e, ato contínuo, solicitará aos Líderes a indicação dos respectivos membros dos Partidos para, nomeando-os, constituir a Comissão. Caso contrário, com as razões do indeferimento, devolverá o requerimento ao seu primeiro signatário, que poderá, no prazo de 5 sessões, recorrer ao Plenário, ouvida a Comissão de Constituição, Justiça e Redação. Provido o recurso pelo Plenário, a Comissão Parlamentar de Inquérito será constituída.

[v]     De João Américo ; de Leci Brandão.

 

*membro do Coletivo Afronte

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