Ditadura militar e o futebol brasileiro

Lucas Fagundes, de Porto Alegre, RS

Sempre é difícil falar de futebol. Sem dúvida alguma é o maior esporte do mundo e o que mais apaixona. Nos move. Na última Copa do Mundo, no ano passado, mais de 3,5bi de pessoas assistiram aos jogos, ou seja, mais da metade do mundo para por futebol.

Falar de ditadura também não é fácil. Ainda mais a ditadura militar que aconteceu no Brasil. Por aqui temos saudosistas da mesma se elegendo Presidente da República. Há quem diga que ela não existiu. Esses não podem ir contra os fatos.

Fato foi que mais de 8 mil indígenas foram assassinados pela ditadura militar brasileira, fato é que a ditadura torturou milhares, perseguiu opositores, mulheres grávidas, apontou crianças como terroristas, cassou a liberdade de expressão, enfim. Por 21 anos os militares brasileiros trouxeram Anos de Chumbo, como muitos dizem.

No futebol, a ditadura encontrou espaço de intervenção. Mas com um só objetivo, uso político do mesmo. Entretanto, não se tratava como prioridade debater a situação política do país nos vestiários, concentrações e entrevistas dos jogadores. O Corinthians, por exemplo, teve como presidente durante a ditadura, Wadih Helu, que colaborou com o golpe de 1964 e junto com José Maria Marin, solicitou investigações sobre os perigosíssimos jornalistas da TV Cultura. Resultado final? A tortura e assassinato de Vladmir Herzog, também jornalista da TV Cultura.

O Fluminense, por sua vez, teve como presidente Francisco Horta, que denunciou incansavelmente os desmandos do Almirante Heleno Nunes na presidência da CBD (Confederação Brasileira de Desportos). Todavia, os jogadores em 1977, apoiaram Paulo Maluf para a presidência do clube, por exemplo. É evidente, nesse ponto histórico, que o futebol é composto por diferentes indivíduos das duas classes sociais. Os patrões e os atletas. Os chefes e os empregados. O historiador René Armand Dreifuss confirma que, representantes do Corinthians, Portuguesa, Palmeiras e São Paulo apoiaram a realização do golpe de 1964.

A resistência do futebol brasileiro à ditadura nasce apoiada em dois alicerces: A) o primeiro alicerce são os jogadores. Craques da bola que honraram o seu lado na história. B) O segundo alicerce são as torcidas. Falaremos delas mais tarde.

A ditadura militar no Brasil, que durou 21 anos, começando em 1964 e tendo seu fim em 1985, censurou inclusive os técnicos e atletas no futebol. João Saldanha é um grande exemplo da perseguição política do governo militar de Médici. Além de jornalista era técnico da seleção brasileira, havia montado um dossiê com mais de 3.000 presos políticos da ditadura, além de centena de mortos e torturados. Médici palpitava na escalação da Seleção Brasileira…ou seja, a interferência governamental era tanta que o técnico da seleção era praticamente obrigado a convocar X ou Y, senão acontece o que aconteceu com João Saldanha.

Ao não convocar Dadá Maravilha, para a Copa de 1970, à pedidos de Médici, João Saldanha ainda disse “Ele (Médici) escala o ministério, eu convoco a seleção”. João Saldanha foi demitido da Seleção Canarinho após um empate em 1×1 com o Bangu, o último antes da Copa. Zagallo, bicampeão mundial como jogador em 1958 e 62, assumia a Canarinho.

Dadá Maravilha foi convocado, Zagallo montou o esquadrão do Tri com Pelé no comando e, fomos o primeiro país tricampeão do mundo, em 1970, e Dadá não jogou um minuto sequer.

Evidentemente, houve uma perseguição política ao ex- treinador João Saldanha, comunista assumido e crítico da Ditadura.

Outro exemplo que tivemos de perseguição do Governo Militar com os atletas e treinadores, é o de Reinaldo.

Ex- Centroavante do Atlético Mineiro, que em 1982 deixou de ser convocado para a Copa do Mundo por Telê Santana. O filho de Telê Santana disse que Reinaldo tinha “uma vida boêmia” e “não encostava numa bola faziam seis meses”.

Entretanto, Reinaldo fez seu último jogo em 17/03, a convocação foi feita em abril, apenas um mês depois. Na Revista Placar, em Setembro de 1981, Sócrates, Júnior, Zico e Éder defenderam e convocação de Reinaldo. A matéria também dizia que Telê tinha restrições ao comportamento de Reinaldo. Em 13 de novembro de 1981, Telê Santana disse: “a única coisa que o Reinaldo sabe fazer é jogar futebol. Mas andaram colocando na cabeça dele que ele é intelectual, que ele tem que ajudar os índios, o Lula, o Frei Beto”.

Reinaldo já tinha, em 1978, afrontado o regime militar. Socialista convicto, em plena Copa do mundo na Argentina, o Rei comemorou seu primeiro gol na competição, contra a Suécia, com o braço direito erguido e o punho cerrado. O próprio atacante já assumiu que o gesto tinha inspiração nos conhecidos Pantera Negras e também, os atletas americanos John Carlos e Tommie Smith que nas Olímpiadas de 1968 protestaram contra o racismo.

Precisamos evidenciar que Geisel, antes da viagem do time brasileiro à Copa, cumprimentou Reinaldo e disse: “Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz”. A cúpula militar que dirigia a CBD orientou Reinaldo que não fizesse a sua comemoração, eles a achavam “muito revolucionária”.

Reinaldo fez o gol e comemorou. Sem temer o governo militar brasileiro e o governo militar argentino também. O Rei foi sacado do time e não atuou nenhuma partida mais daquela Copa, que terminou com a Argentina se sagrando campeã!

A polêmica, já em 1981, em torno de Reinaldo era o estereótipo de comunista, maconheiro e gay. Como se um dependesse do outro. Reinaldo, após o fim da carreira teve problemas com as drogas e, não foi a maconha. Nunca se declarou homossexual.

Socialista sempre foi, com honradez e lucidez.

Reinaldo tinha uma forte amizade com Tutti Maravilha, radialista gay que, em plena ditadura e no mesmo ano disse que “as acusações (de que ele e Reinaldo eram um casal) nascem num país de caretas, de uma sociedade careta, cheia de falsos moralistas”. Fato é que Telê Santana, assim como Coutinho em 1978, fez coro e colaborou com o Regime Miliar quando perseguiu Reinaldo e não o convocou para a Copa de 1982.

Dr. Sócrates, quando perguntado sobre os motivos da não ida do Rei, disse que “bebia numa noite o que o Rei bebe em um ano, não tem essa de boemia”. Importante tanto pra Copa de 1982 e para que aquela seleção encantasse o mundo, quanto para resistir à Ditadura Militar.

Antes, durante e após a Copa. Sócrates foi o percursor junto com Casagrande, Wladmir e Zenon do Movimento Democracia Corinthiana, em 1982, que dos campos até as arquibancadas revolucionou o modo de pensar dentro do Corinthians, e durante dois anos foi visto um modelo de autogestão dentro do clube. Funcionários. Dirigentes, atletas, comissão técnica, torcedores, todos tinham o mesmo poder de decisão na hora das contratações, dos gastos com o time, das divisões salariais e etc. Para além disso, foi uma voz que, dentro das torcidas organizadas, ecoava para o Brasil inteiro pedindo democracia e Diretas Já.

Não podemos deixar de falar da Coligay. A primeira torcida LGBT do Brasil nascia em 1977.

Em meio ao Governo Militar de Figueiredo, a torcida organizada do Grêmio de Porto Alegre, RS, apareceu no Estádio Olímpico pela primeira vez em 10 de abril de 1977. Há quem diga que a Coligay têm pé quente. Encerrou um jejum de 8 anos sem títulos estaduais em 1977, viu Campeonato Brasileiro em 1981 e, encerrou suas atividades após a conquista da Libertadores e do Mundial em 1983.

Resistiu à ditadura durante 6 anos, esteve nos estádios e combateu as ideias machistas e homofóbicas dentro do espaço futebolístico, algo que ainda hoje segue muito presente.

Os seus integrantes faziam aulas de caratê como meio de autodefesa. Inspirou, logo após, em 1979 a criação da FlaGay, torcida também LGBT, mas do Flamengo.

É importante que se diga que a maioria dos clubes durante boa parte do regime militar foi completamente conivente com o regime. A receita dos clubes, praticamente na sua totalidade, vinha do Governo. Foi uma marca do Governo Militar trocar benesses com os clubes, como estádios. Mais de 50 estádios com mais de 20 mil torcedores foram construídos entre 1964 e 1985 fora das capitas do Sul e Sudeste. Ou seja, para além desses mais de 50 estádios, ainda temos dois exemplos importantes no Sul e Sudeste.

Beira-Rio e Morumbi. Internacional e São Paulo. Os dois estádios dos gigantes brasileiros foram erguidos na ditadura, por mais que a maioria das obras fossem públicas, os clubes silenciavam e não denunciaram a ditadura, pelo menos até a década de 80. Com uma só exceção.

No auge dos Anos de Chumbo, em 1972, dois anos após o show na Copa de 1970, Zagallo convocou a seleção para disputar uma Mini Copa do Mundo, durante eventos de comemoração dos 150 anos de independência do Brasil e, não convocou Everaldo. Lateral esquerdo do Grêmio, o único gaúcho que tinha sido campeão em 1970 com a amarelinha. Bastou a ausência para um desafio.

Grêmio e Internacional colocaram os dois elencos à disposição para disputar um amistoso contra a Seleção Brasileira. Trato feito. A Seleção Brasileira com Rivelino, Paulo César Caju, Jairzinho e Piazza, viajava ao Rio Grande do Sul, para enfrentar 11 dentro de campo e mais de 100 mil gaúchos nas arquibancadas do Beira-Rio. A movimentação foi tanta na cidade que torcedores chegavam de barco ao estádio, pelo Rio Guaíba.

O amistoso acabou em 3×3 e demonstrou um símbolo de resistência às imposições do CBD e do Governo Militar, naquela altura ainda comandado por Médici.

Exigir Diretas Já foi um dos movimentos percursores para que aparecessem diversas outras torcidas organizadas de resistência. Temos diversos exemplos como a Fla Diretas que, no começo da década de 80 foi criada por militantes do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro.

Os flamenguistas que iam ao Maracanã toda semana eram divididos entre estudantes da UFF, da UERJ, da UFRJ e da PUC, inclusive funcionários do bandejão da PUC também participavam da torcida.

O PCB era tradicionalmente forte no movimento estudantil nessas universidades, também por isso, o grito de Diretas Já era da juventude, dos negros e negras, dos comunistas e daqueles que sabiam os anos que tinham passado.

A ditadura no Brasil não deixou boas lembranças, seja pela corrupção estampada, seja pela perseguição aos opositores ou seja pelo assassinato de milhares. Por isso é nosso dever e, dever daqueles que hoje gerem os clubes de futebol de lembrar do passado.

O Corinthians, por exemplo, no dia 31 de março, postou uma foto, em suas redes sociais, de Walter Casagrande, comentarista do SporTV e um dos precursores da Democracia Corinthiana. Casagrande estava de costas com uma camiseta do lendário time do Corinthians que resistiu à ditadura em 1982. Na torcida, uma estátua de Sócrates com o punho erguido foi levantada e, uma faixa estendida com os dizeres: “Ganhar ou perder, mas sempre com DEMOCRACIA”.

Foi um posicionamento importante do Timão, haja visto que poucos times se pronunciaram sobre os 55 anos do Golpe de 1964, nesse ano. Outro dos grandes times brasileiros que se posicionou foi o Bahia, único do Brasil que mantém um núcleo de ações afirmativas e, conta também com o plano de sócio popular, com mensalidades a R$10,00. O Gigante da Colina, Vasco da Gama, se posicionou contra a ditadura de forma mais discreta, com uma postagem nas redes sociais também.

O Flamengo, time do povo, o que tem a maior torcida do país, não se posicionou. Inclusive, precisamos falar um pouco sobre o Fla, que na decisão da Taça Rio, após se sagrar campeão em cima do Vasco, permitiu que Rodrigo Amorim, deputado eleito pelo PSL e, o mesmo que quebrou a placa de Marielle, comemorasse o título ao lado dos jogadores no gramado.

A diretoria do Fla, não respondeu quando perguntada sobre a presença do deputado. Afirmou que: “o Clube não se posiciona politicamente”. Curioso é que o mesmo Flamengo que não se posiciona politicamente presenteou o mesmo deputado com uma camisa do clube, com o número 17 e o nome do mesmo.

O Palmeiras, por sua vez, convidou Bolsonaro para a entrega da taça do Brasileirão aos jogadores. O Presidente do Inter, Marcelo Medeiros, entregou uma camiseta ao Presidente, Jair Bolsonaro. Com direito a foto e tudo. Nesse momento da história, em que o presidente do Brasil se declara a favor da tortura, diz que em 1964 não houve golpe, fala que prefere um “filho morto, do que gay”, é perigoso demais que os presidentes e os próprios clubes se omitam e, para além disso, parabenizem os representantes das lembranças da ditadura.

É nosso dever enquanto cidadãos, torcedores e admiradores do futebol e da origem popular da prática do esporte lembrar que, em 1964 houve golpe, tivemos 21 anos de repressão aos diferentes e, principalmente perseguições políticas. Não podemos desprezar, por mais que recente e ainda assim muito injusta, a democracia que conquistamos. Chegamos aqui com sangue de muitos e tortura de milhares. Nos cabe a responsabilidade de não regredirmos!

Referências:

https://trivela.com.br/o-que-o-seu-clube-fez-durante-ditadura/

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/01/deportes/1527862375_020869.html

https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/futebol-e-regimes-militares-o-futebol-nas-ditaduras-brasileira-e-argentina.htm

https://oglobo.globo.com/esportes/premiacao-da-taca-rio-tem-sumico-de-witzel-deputado-no-gramado-23564258

https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/joao-saldanha-sai-apos-peitar-medici-nao-convocar-dario-para-copa-de-70-11811737

https://medium.com/puntero-izquierdo/democracia-rubro-negra-quando-a-torcida-do-flamengo-gritou-diretas-já-9c4c94cf64cd

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/01/deportes/1554137880_617605.html