Nahuel Moreno ainda é atual. Será?

Ênio Bucchioni*

“O teu raciocínio é similar ao do stalinismo do 3º período”, retrucou Moreno. Ouvi estas palavras em 1975 numa reunião de dirigentes do antigo PRT português, antecessor do atual, MAS. Era a primeira vez que o conhecia pessoalmente.

O ano de 1975 foi tão denso e veloz naquela situação revolucionária de Portugal dos Cravos que apenas ficaram em minha lembrança as questões mais marcantes. Para se ter ideia, os jornais diários tinham colunas onde noticiavam as inúmeras passeatas e manifestações do dia, assim como o horário e o local de cada uma delas. O tema da discussão com Moreno versava sobre uma parte da política prática que tínhamos, especialmente sobre o Partido Socialista português. Os trabalhadores socialistas conformavam a maioria no país. Sem eles era impossível haver revolução. Por isso o alerta sobre o 3º período stalinista.

Dos companheiros dirigentes do PRT, somente eu e Vladimir mantivemos a defesa da linha do PRT. Em poucos minutos Moreno já havia convencido todos os demais. Nós dois defendemos bravamente a política existente. E perdemos a discussão, obviamente. Mas Moreno não nos convenceu naquele dia.

3º período?

A bem da verdade, naquela época eu não tinha a menor ideia do que seria esse tal de 3º período. Tinha 27 anos. Militante socialista desde os 18 anos, com um ano de diretor de Centro Acadêmico, três anos de trabalho de formiga com jovens operários na Vila Yolanda, em Osasco, tive de partir para o exílio quando, pela segunda vez, minha namorada naquela época foi procurada pela Operação Bandeirantes[1]. Tínhamos 22 anos. No Chile, foram mais três anos de aprendizado com a inesquecível revolução derrotada. Prisão outra vez sob Pinochet. Tortura rápida. Três meses no campo de concentração do Estádio Nacional do Chile e expulsão para a Europa, como todos os latino-americanos que por lá estavam exilados. Um ano parado por não saber falar francês. O 25 de abril de 1974 e a Revolução dos Cravos me abriram novamente as portas para a luta pelo socialismo. Tinha 26 anos.

Toda esta vivência prática fez com que me tornasse adulto e responsável precocemente. Ser militante na época de Médici significava a possibilidade de ser preso, torturado, sequestrado ou assassinado. Não se podia errar. Aprendi a ter uma couraça de ferro, administrar o medo e a ter uma confiança total entre os companheiros que estavam ao meu lado. Aprendi a ter confiança plena no futuro da luta de classes no Brasil.

No entanto, como toda a esquerda brasileira daquela época, eu era profundamente inculto no marxismo. Ignorante mesmo. Minha formação era aleatória, já que os livros marxistas eram totalmente escassos no Brasil e lia-se o pouco e variado que aparecia nos sebos.

Só fui entender o que era o 3º período quando cessou a revolução portuguesa e, à espera do passaporte para retornar ao Brasil, fiquei vários e vários meses lendo Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo.

Não posso reclamar do ano que passei na França. Lá participei de um pequeno núcleo de exilados juntamente com um dos maiores revolucionários que a América Latina já revelou: o grande Hugo Blanco. Este, ao viajar para Lisboa para dar várias palestras, em seu retorno me aconselhou a ir para Portugal por causa do idioma. Fui. E lá acabei por conhecer um dos maiores trotskistas do século passado, Moreno.

Lenin, os inteligentes e imbecis

Relembro esta discussão com Moreno na primeira vez que estive com ele pessoalmente – nos anos posteriores houve outras – por vários motivos. Em 2015, no antigo blog Convergência, escrevi, transcrevendo partes do livro de Pierre Broué “El Partido Bolchevique”:

“Mais adiante, Lênin sentencia que o primeiro dos deveres de um revolucionário é criticar os seus próprios dirigentes. A opinião dele quando escreve a Bukharin, segundo Broué, é “que se o partido excluísse os militantes inteligentes, porém pouco disciplinados, e ficasse apenas com os imbecis disciplinados, afundaria”.

A esse respeito, completa Broué,” a história do partido bolchevique, como a de sua fração, são de uma larga sucessão de conflitos ideológicos que Lenin vai superando sucessivamente através de uma prolongada dose de paciência. Da unidade de critérios surge da discussão, quase permanente, que se opera, tanto sobre as questões fundamentais como a propósito da tática a seguir a cada momento”.

Naquela época, a de Lenin, não havia a subserviência da era stalinista, onde o dirigente da esfera superior estava sempre certo e cabia a qualquer militante a obediência irrestrita, o temor e o cale-se.

Portanto, divergir de Moreno em 1975 ou de qualquer outro companheiro era totalmente natural para mim. Uma coisa é o respeito e o reconhecimento de que Moreno foi um dos maiores trotskistas da IV Internacional. Outra coisa é não ter opinião própria, mudar de posição apenas porque um dirigente mais velho opinou o contrário. Isso significa fazer seguidismo para agradar. O grande Moreno, a bem da verdade, escreveu e falou várias coisas equivocadas.

A título de resgate do passado, em 1979 a equipe internacional de Moreno foi contra a entrada dos militantes da Convergência Socialista no PT. Houve uma dura discussão contra Spósito, membro da coordenação internacional da nossa corrente numa reunião com nossa coordenação nacional. Perdemos a discussão para Spósito por uma margem pequena. Eu fiquei com a minoria.

No entanto, na próxima reunião da nossa coordenação, Moreno nos enviou uma fita gravada onde mudava de posição e admitia que o PT era ‘el más grande acontecimiento en Brasil’. Imediatamente, de forma acrítica, aqueles que tinham votado contra mudaram imediatamente de posição pois, afinal, Moreno também mudara. Isso se chama seguidismo. Mas, até hoje, vira e mexe há quem escreva, erroneamente, que a ideia de se criar o PT veio de Moreno. Nahuel foi grande e não necessita que se mude a história em seu favor.

Aliás, o próprio Lenin fez várias vezes em vida pedidos de desculpas público por erros que ele mesmo havia feito. Uma das mais famosas e importantes foi a autocrítica sobre a questão da Geórgia em 1922. Autocrítica que tinha um endereço certo: colocar Stalin fora da secretaria geral do partido bolchevique.

Lenin e as divergências internas

Em outras passagens Broué cita Lenin:

“Que os sentimentais se lamentem e deem os seus gemidos: mais conflitos! Mais diferenças internas! Ainda mais polêmicas! Nós responderemos: jamais se formou uma socialdemocracia revolucionária sem o contínuo surgimento de novas lutas”

“Em suas fileiras se acostuma a aprender a ler e cada militante se converte em responsável pelos estudos de um grupo onde se educa e se discute. Os adversários do bolchevismo costumam se burlar desse gosto deles pelos livros que, em determinados momentos, converte o partido numa espécie de “clube de sociologia”; no entanto, a preparação da conferência de Praga contribuiu com toda espécie de garantias para a efetividade da escola de quadros de Longjumeau, integrada por várias dezenas de militantes que escutam e discutem quarenta e cinco lições de Lênin, trinta das quais versam sobre economia política e dez sobre a questão agrária, e além disso, são vistas aulas  de história do partido russo, de história sobre o movimento operário ocidental, de direito, de literatura e técnica jornalística”.

“Desde 1894 Lênin afirmava em sua polêmica com o populista Mikailovsky:

‘É rigorosamente certo que não existe entre os marxistas a completa unanimidade. Esta falta de unanimidade não revela a fraqueza, mas sim a força dos socialdemocratas russos. O consenso daqueles que se satisfazem com a aceitação de “verdades reconfortantes”, esta terna e comovedora unanimidade, foi substituída pelas divergências entre pessoas que necessitam uma explicação da organização econômica real, da organização econômica atual da Rússia. Uma análise de sua verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e do resto de suas superestruturas”.

E, para arrepio dos fanáticos adoradores do regime centralista stalinista ou semi-stalinista, Broué relembra: “Apesar do isolamento em que se encontrava dentro de sua própria fração, Lênin não vacila em votar sozinho, junto com os mencheviques, contra o boicote das eleições, isso na conferência de Kotka no mês de julho de 1907”.

Eu ainda não conhecia profundamente Lenin em 1975 na Revolução dos Cravos e na discussão com Moreno. Creio, no entanto, que mesmo em meu desconhecimento, não decepcionei Lenin, embora Moreno tivesse razão sobre a questão dos trabalhadores do PS português. Quem muda de posição apenas para não discordar dos seus dirigentes nada tem a ver com o leninismo, mas sim com o stalinismo. Só se deve mudar para uma nova posição quando se defende a antiga com unhas e dentes e, ao ser convencido posteriormente, de forma tranquila se convence de que estava equivocado. É uma mudança de qualidade e não a postura de um ‘imbecil’.

Moreno e os estúpidos

Há uma polêmica feita em janeiro de 1975 não muito conhecida até mesmo pelos que até hoje se reivindicam morenistas. Esta discussão, que tenho em meu computador e que utilizarei a seguir, no entanto, foi republicada em Bogotá em 1977.

Trata-se do “Memorandum Para la respuesta del PST (a) al SU”. Nahuel Moreno (Tomado de Boletín de Polémica Internacional Nº 11, Bogotá, 1977), em seu segundo capítulo, cujo título é “En circunstâncias determinadas y precisas. Los trotskistas tienen la obligación de defender la democracia burguesa y sus instituciones frente al fascismo y la reacción bonapartista.”

Cito algumas partes importantes do raciocínio de Moreno. A tradução é de minha autoria.

“Nosso partido considera que é um grave erro ultra esquerdista ignorar as diferenças que existem entre os distintos regimes burgueses, dissolvendo esses regimes concretos e suas diferenças concretas na caracterização histórica sociológica de que todos eles são burgueses, e, portanto, exploradores de classe.”

Embora essa afirmação seja óbvia, há quem não faça distinção entre o regime da época dos governos Lula/Dilma e o de Temer; entre Dilma e Bolsonaro; entre Bruening e Hitler; entre Pinheiro de Azevedo e Mario Soares em Portugal dos Cravos.

“Todos esses regimes são burgueses e exploradores, e quem não reconhece isso é um reformista. Porém, quem não vê as colossais diferenças entre eles é um ultra esquerdista estúpido”

Nada a acrescentar, à exceção de que a quantidade de estúpidos entre os dirigentes da esquerda no Brasil aumentou qualitativamente nos últimos quatro anos.

Defender a democracia-burguesa. Sim ou não?

“Os marxistas devem ser muito cuidadosos em precisar essas diferenças. Porém, do fato que existam essas diferenças não se depreende uma única política revolucionária: defender a forma burguesa “superior”, “democrática” contra a forma “inferior” fascista ou bonapartista.

Há ocasiões em que os revolucionários deverão enfrentar a reação com a palavra de ordem da defesa dos elementos da democracia operária existentes; porém em outras ocasiões deverão fazê-lo com a palavra de ordem da defesa ou reconquista da democracia-burguesa.

Tudo depende da consciência de nossa classe e da existência efetiva de um perigo imediato de golpe fascista ou bonapartista.”

Essa parte é importantíssima para a análise e a política prática. Cabe aqui a indagação: no Brasil 2018 era óbvio que se deveria defender as liberdades democráticas frente ao avanço dos ataques bonapartistas do Judiciário “lavajatista”, como, para dar apenas um exemplo, na alteração da Constituição para prender Lula em segunda instância e, por consequência, impedir Lula de se tornar novamente presidente do país.

Existe, após a eleição de Bolsonaro um perigo imediato de tentativa de golpe bonapartista? Será que esse golpe não estaria em curso? E se sim, segundo Moreno, seria necessário defender ou reconquistar o regime democrático-burguês? São estas as questões principais colocadas na ordem do dia para o conjunto da esquerda brasileira? Moreno estaria equivocado em sua teoria de 1977 ou o Brasil 2019 nada tem de parecido com o retratado no texto de Nahuel?

Aqui entra uma outra discussão já feita por mim em outros textos. Em geral, as classes dominantes não mais fazem golpes como antigamente, como o de 1964, o de Pinochet e tantos outros mais. Isso ocorre porque, em princípio, na América Latina não é mais necessário colocar militares com tanques e metralhadoras nas ruas. O mundo mudou para pior desde as restaurações capitalistas na antiga URSS, no Leste Europeu e na China. A correlação de forças mundial garante, na imensa maioria dos países, uma dominação política e ideológica bem mais tranquila.

Hoje os golpes das burguesias são mais refinados. São executados através das “leis” do Judiciário, através dos Parlamentos onde possuem imensa maioria. Esses golpes podem ser executados gradualmente, ao longo de meses ou mesmo anos, como no Brasil desde 2015.

As Forças Armadas, coniventes, dão o apoio a estes golpes sem a necessidade de saírem dos quartéis. Isso aconteceu na América Latina em Honduras, no Paraguai e no Brasil.

Agrega-se a este panorama a submissão de imensas parcelas da esquerda às instituições do Estado burguês, seja ao Judiciário, seja às eleições e seu calendário, seja ao Parlamento. Algumas organizações analisam que não houve golpe, já que não houve tanques na rua como em 1964. Outras, como o golpe veio e ainda continua vindo em suaves prestações mensais e anuais, ficam aguardando o desgaste dos golpistas constitucionais e parlamentares para dar um forte contragolpe… Nas próximas eleições.

Democracia está ultrapassada no Brasil? Pela esquerda ou pela direita?

 “Se tal perigo não existe, agitar o espantalho do golpe reacionário serve somente para confundir nossa classe. Porém, se tal perigo existe, teria que se buscar no nível de consciência da classe qual é a palavra de ordem para mobilizá-la.

Se a classe, ou algum setor importante dela, chegou à conclusão de que a democracia-burguesa está em putrefação e de que a única saída é a tomada do poder pelo proletariado, a palavra de ordem de defesa da democracia-burguesa é reacionária e impede a mobilização dos trabalhadores….

Porém, se a imensa maioria da nossa classe ainda não é consciente da putrefação da democracia-burguesa, se ainda confia nela, a palavra de ordem para mobilizá-la somente pode ser a defesa da democracia-burguesa.

Disso se depreende uma conclusão: uma palavra de ordem não é reformista, nem revolucionária, nem ultra esquerdista.”

Perguntas que não querem calar: no Brasil, de 2015 a 2019, nossa classe considera a democracia-burguesa ultrapassada? Se sim, pela direita ou pela esquerda e em favor de qual ditadura, a do proletariado ou a dos militares de ultradireita?

Por que razão o governo Bolsonaro investe pesadamente no conflito contra o STF, a Câmara dos Deputados e a imprensa, sendo que estas três instituições são baluartes do regime democrático-burguês?

Caberia defender o Congresso Nacional se Bolsonaro lançar ataques e ameaças de fechamento do Parlamento junto com os bonapartistas da Lava Jato e seus bandos fascistas se eles não votarem a Reforma da Previdência elaborada por Paulo Guedes?

Por que razão o governo Bolsonaro tem mais de 130 oficiais militares, seja como ministros, seja em postos vitais de comando nas mais diversas áreas da administração federal?

Caberia defender a Constituição de 1988 contra as alterações feitas e as que poderão ser realizadas por parte do Judiciário, como quer o sinistro da Justiça Sergio Moro?

Os deputados do PT, PCdoB e PSOL deverão votar a favor ou contra a PEC da bengala ou tanto faz votar ou não votar? O PSL, partido pró fascista, quer revogar esta PEC instituída logo após o golpe contra Dilma, ou seja, voltar a aposentadoria compulsória dos ministros do STF quando cada um deles fizer 70 anos de idade. Assim, Bolsonaro poderia indicar quatro novos ministros a seu bel prazer, e seriam aposentados os que são favoráveis ao Estado de Direito, à maneira deles: Levandowski, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e Celso de Mello.

O deputado federal fascista, Eduardo Bolsonaro, afirmou há alguns meses que bastaria um cabo e um soldado para fechar o STF. Seria o caso de defender o STF contra uma investida deste tipo dos fascistas?

Por que fomos obrigados a votar para os governos estaduais em 2018 em candidatos burgueses como Marcio França em SP e Paes, no RJ? Nunca em minha vida eu tinha votado em um burguês, mas corretamente, penso eu, votei contra o candidato fascistizante, João Dória, que apoiava escancaradamente o nazista Bolsonaro. Muitos na esquerda fizeram o mesmo voto porque, consciente ou inconscientemente, preferiam democratas burgueses nos governos do que fascistas.

O “Ele Não!” desapareceu da consciência de classe?

“O importante é que de qualquer palavra de ordem se pode fazer uma utilização reformista, revolucionária ou ultra esquerdista. A utilização reformista de uma palavra de ordem consiste em colocar um objetivo que está abaixo do nível de consciência das massas… A utilização ultra esquerdista consiste em colocar uma palavra de ordem que está acima do nível de consciência das massas.

A utilização revolucionária de uma palavra de ordem está definida pelo pré-requisito de que se ajuste com precisão ao nível de consciência das massas nesse momento. Porque o objetivo de uma palavra de ordem para a ação – e nisso se diferencia da propaganda em geral e do programa em seu conjunto – é conseguir obter num determinado momento que as massas se mobilizem imediatamente.

É impossível que os trabalhadores se mobilizem por algo que já não querem ou por algo que ainda não chegaram a querer.

A função mais importante das palavras de ordem é, para os revolucionários, obter a mobilização de massas; porque somente a mobilização, através da experiência nela forjada, elevará o movimento de massas a níveis superiores de consciência que, por sua vez, exigirão novas e mais avançadas palavras de ordem.

No Brasil de 2019 parece ser que o conjunto da esquerda esqueceu rapidamente o poderoso movimento das Mulheres contra Bolsonaro e contra o fascismo, ocorrido há pouco mais de 5 meses. Movimento que viralizou pela internet, com três milhões e novecentas mil adesões de mulheres e que, em seguida, colocou cerca de um milhão e meio de pessoas nas ruas com a simples palavra de ordem: Ele Não!

No entanto, passados apenas cinco meses parece ser que o Ele Não! e Contra o Fascismo! desapareceram da consciência do movimento de massas, pois o conjunto da esquerda – PT, PCdoB, PSOL – não chamam as massas a se mobilizarem pelo Fora Bolsonaro!

O Ele Não! de ontem significa o Fora Bolsonaro! de hoje. Se ontem o Ele Não! era para barrar o projeto ultradireitista de Bolsonaro e evitar sua eleição, hoje, após uma torrente de medidas reacionárias feitas pelo seu governo, sua atualização é o Fora Bolsonaro! do governo. Ou será que a consciência daquelas milhões de pessoas regrediu após esses meses de experiência com esse governo?

Agora, o conjunto da esquerda – PT, PSOL, PC do B – quer chamar apenas a população para a mobilização contra a Reforma da Previdência, coisa que já está na consciência do movimento de massas desde 2017. Não há dúvidas quanto à importância desta campanha. Mas por que fazer só esta campanha, isolada de todos os demais conflitos da luta de classes que levam inexoravelmente a chamar o povo para o Fora Bolsonaro e seu governo?

Nos atos de 31 de março contra o golpe de 1964 encontrei-me casualmente com um dos máximos dirigentes de um dos partidos reformistas atuantes em nosso país. Conheço-o desde sua primeira eleição para deputado estadual em 1986. Fizemos dobradinha com ele, sendo Gradella o nosso candidato a deputado federal pelo PT naquela época. Ambos foram eleitos.

Esse importante dirigente, ao ser perguntado sobre por que não chamar o Ele Não! em 2019, respondeu-me que em outubro aquela gigantesca manifestação tinha traços marcantes de luta contra as opressões, o que não é o caso agora. Mais ainda, disse-me que o importante é que o governo Bolsonaro está se desgastando bastante e é isso que temos de fazer. Desgastá-lo? Durante quanto tempo, 4 anos?

Imaginei, na hora, que esse desgaste é a estratégia única e central dos partidos reformistas para obter muitos e muitos votos nas eleições de 2020 e 2022. Esse é o perfil da imensa maioria da esquerda brasileira hoje. Infelizmente!

Hoje, a luta política contra o governo Bolsonaro se restringe praticamente aos parlamentares. Faz-me lembrar o “Que Fazer?” de Lenin, onde este criticava duramente os economistas reformistas que opinavam que a luta econômica era para os trabalhadores e a luta política para os dirigentes da antiga socialdemocracia. Essa disjunção é uma das essências do reformista pacifista e eleitoreiro.

Moreno: como identificar o reformismo?

Se a utilização das palavras de ordem é relativa ao nível de consciência das massas, o que não é relativo, mas absoluto, é o método a ser utilizado para materializar o objetivo ou a palavra de ordem colocada. Aí sim, a diferença entre os revolucionários e os reformistas é absoluta e permanente: os revolucionários colocam sempre a mobilização revolucionária das massas; os reformistas colocam as vias eleitorais, parlamentares de colaboração de classe. Pode ocorrer, e tem ocorrido frequentemente, que reformistas e revolucionários coincidam com o objetivo imediato colocado, isto é, na palavra de orem. Porém sempre diferem em relação ao método. É um erro muito comum confundi a palavra de ordem com o método. Erro em que caem nossos críticos quando ao colocarmos nossa circunstancial defesa de democracia-burguesa eles parecem deduzir que renunciamos à ação extraparlamentar dos trabalhadores. E isso não é assim; não há uma relação mecânica entre a palavra de ordem colocada e o método de luta. O stalinismo [e o reformismo em geral] não abandonou as palavras de orem socialistas, mas propões concretizá-las através dos métodos eleitorais burgueses. Os revolucionários, em determinadas circunstâncias, devem apelar para palavras de ordem democráticas, burguesas, porém isso não nos impede de colocar em prática o método revolucionário da mobilização para concretizá-la. E precisamente por isso somos revolucionários.”

Assim são os reformistas. Muitos discursos no Parlamento, muitas notas, manifestos, muitíssimas declarações por escrito, mas nada de mobilizar politicamente as massas.

Desde setembro de 2016 venho denunciando a existência de elementos bonapartistas no país; desde janeiro de 2017 venho apontando que o regime político já era pré ou semi-bonapartista; desde a eleição do fascista Bolsonaro afirmei que o projeto dele é instituir o bonapartismo.

Mas a resistência política do conjunto da esquerda é feita do modo que Moreno escreveu: discursos no Congresso, notas, editoriais, vídeos, textos, mas nada de chamar as massas para a mobilização nas ruas em Unidade de Ação pelas mais amplas liberdades democráticas.

Moreno: é preciso distinguir entre 8, 10 ou 12 horas?

“Para um marxista, esta relatividade da política e das palavras de ordem imediatas para a ação é permanente. Vejamos um exemplo.

Nós não estamos a favor, em geral, pela jornada de 10 horas de trabalho. Toda a tradição do movimento operário postula as 8 horas, e a concepção marxista propõe a redução da jornada de trabalho ao mínimo necessário para a sobrevivência e o desenvolvimento da humanidade.

Porém, em determinadas circunstâncias, muito comuns nos países atrasados, defendemos momentaneamente as 10 horas frente à tentativa dos patrões de impor 12 horas, ou ante o fato que as 12 horas já foram impostas.

Obviamente sabemos distinguir muito bem 10 horas de 12 horas. O que pensaria um operário que vê sua jornada de trabalho de 10 horas ser ameaçada, ou então está lutando para conquistá-la, se o trotskista disse a ele que não há diferenças entre ambas porque tanto 10 como 12 horas de trabalho dão uma mais-valia colossal?

E se esse trotskista dissesse a ele que lutar pelas 10 horas é oportunista porque tem-se que lutar pelas 8 horas ou pela jornada mínima para a sobrevivência e desenvolvimento da humanidade?

E, seguindo esse raciocínio, esse trotskista se negasse a apoiar a luta do operário pela defesa das 10 horas frente a das 12 horas?

Fica claro que, nesse caso, a linha divisória com o oportunismo não passa pelo objetivo da luta, que é comum – a jornada e 10 horas- senão pelo método: os oportunistas negociam; os revolucionários mobilizam.”

O exemplo hipotético de Moreno é totalmente esclarecedor da diferença entre objetivos imediatos e o método para alcançá-los. A pergunta que fica para todos nós é como fazer a defesa da fragilíssima democracia burguesa conquistada pelas gerações anteriores no Brasil ou lutar por sua recuperação, ampliando-a, como lutar pelas mais amplas liberdades democráticas e com quais métodos.

Ambas estão ameaçadas pelos bonapartistas de toga incrustados em todas as esferas do Judiciário, desde a Lava jato até o STF, bem como pelos assassinatos e ameaças dos fascistas milicianos albergados nos gabinetes dos Bolsonaros seja no Rio de Janeiro, seja em Brasília.

A pergunta que não quer calar é, por mais importante que seja a luta contra a Reforma da Previdência, não é hora de colocar o povo nas ruas na mais ampla Unidade de Ação para destruir os bonapartistas e os fascistas?

Por que o conjunto da esquerda não coloca o povo nas ruas com o centro na palavra de ordem “Fora Bolsonaro e seu governo!”? Alguém acredita que apenas os discursos no Parlamento poderão deter os avanços imensos que os bonapartistas e os fascistas estão protagonizando no país?

Será que alguém acredita que basta apenas o conjunto da esquerda ‘desgastar’ o governo Bolsonaro durante os 4 anos de seu mandato para ‘vencermos’ as eleições em 2020 e 2022, se é que haverá eleições?

Moreno e a Unidade de Ação com os reformistas e burgueses liberais na Itália contra o golpe fascista

“A relatividade de nossas palavras de ordem se aprofunda, porque estamos defendendo uma instituição que não é de nossa classe – a democracia burguesa- contra outra pior- o fascismo ou bonapartismo.

Por isso, nossa defesa não é permanente nem constante, senão que apenas episódica, até que nossa classe se eleve por cima dessa ‘instituição’ ou ‘consciência’ burguesa, para uma ‘instituição’ e ‘consciência’ revolucionárias, de classe.

Os reformistas e burgueses liberais querem defender a democracia-burguesa com métodos parlamentares e nós, revolucionários, queremos defendê-la com métodos operários e socialistas: a mobilização revolucionária das massas.

Não pode ser de outra forma. Suponhamos que no dia de amanhã o fascismo prepara um golpe na Itália. Lá, as massas seguem o PC e o OS, e estes não querem fazer a revolução operária, mas apenas manter a democracia-burguesa.

O que vamos dizer aos 90% dos operários italianos que querem lutar para defender a república burguesa? Ficamos de braços cruzados até que entendam a necessidade da ditadura do proletariado? Diremos a eles: “façamos um acordo para defender o direito de greve e as organizações operárias, porém se vocês saírem às ruas para defender a república burguesa nós não estaremos juntos nas passeatas e barricadas porque somos contra o Estado burguês?” Nenhuma destas respostas serve.

Teremos que dizer: “o fascismo ficou forte com a crise da democracia-burguesa e porque não conseguimos implantar um governo operário que nós, trotskistas, defendemos; porém, enquanto discutimos esta posição trotskista que vocês não compartem, nós, que sabemos que a democracia-burguesa é muito superior ao fascismo, propomos lutar junto com   vocês nas ruas formando milícias operárias armadas por aquilo que vocês acreditam, a república democrática, e pelo qual estão dispostos a lutar e que nós consideramos uma forma superior de governo burguês, mas, afinal, burguês e explorador.

E acrescentamos: “ apesar de ,nesse momento, coincidirmos com vossos dirigentes socialistas e comunistas e com os burgueses liberais que também defendem a república democrática, isso não quer dizer que confiamos neles; eles querem ‘lutar’ com discursos no Parlamento, e nós com a mobilização nas ruas e com as milícias operárias; o nosso método, o dos trotskistas, é o correto.

Se, em vez disso, colocamos para o operário italiano: “Sentemos e discutamos qual liberdade defendemos juntos”, esse operário nos mandaria passear e pensaria: “não entendo esses trotskistas que querem fazer perder o meu tempo discutindo ‘qual liberdade queremos’, quando o fascismo significa para mim a liquidação da república democrática que eu quero e, com ela, de todas as liberdades democráticas.”

E, o que é mais importante, pois só assim conseguiremos obter nosso objetivo fundamental; que esse operário se mobilize de forma revolucionária, que arme as suas milícias, não importa que a princípio o faça para defender a república democrática e não para tomar o poder. O importante é que faça isso, porque se não se mobiliza nem se arme, se não faz toda essa experiência, se não vê nas ruas a traição de suas direções reformistas e da burguesia liberal na defesa da democracia-burguesa, todo nosso “diálogo” , isto é, nossa propaganda será em vão, cairá em ouvidos surdos.

Porém, se faz a experiência, a inconsequência de seus dirigentes na defesa da democracia o levará a romper com eles e estará com os ouvidos abertos para escutar a esses ‘trotskistas’ que, sem estar de acordo com a república democrática, lutaram a seu lado e foram os seus mais consequentes defensores. Somente por essa via, a da experiência adquirida nas mobilizações e a presença nelas do partido revolucionário e sua propaganda, esse operário elevará a sua consciência de que deve tomar o poder.”

Este excelente texto de Nahuel Moreno, num exemplo hipotético para 1977, chama à mobilização de massas em unidade de ação contra o golpe fascista pois, sejam os reformistas PC e PS italianos, sejam os liberais burgueses, nenhum deles quer o fascismo. Sabem que serão todos destruídos se o golpe vingar.

No Brasil de 2018/2019, é incompreensível que os partidos que se reivindicam da classe trabalhadora – PT, PSOL, PCdoB – não se unam para chamar publicamente uma imensa Unidade de Ação com todos os setores sociais e políticos que são contra um regime bonapartista ou fascista.

É incompreensível que não façam uma reunião em conjunto com MST, MTST, CUT e demais centrais sindicais, UNE, movimento estudantil, de Mulheres, Negros, LGBTs, dos professores, servidores públicos, setores democráticos e/ou nacionalistas do PDT, PSB, MDB, Rede, artistas e intelectuais para tentar definir um calendário nacional de mobilizações em cada cidade do país. Poderiam também definir uma pauta com alguns poucos pontos, a serem detalhados mais amplamente pelos interessados:

– Luta pelas mais amplas liberdades democráticas;

– Luta pelos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores, demais setores oprimidos e da juventude

– Luta contra as privatizações, pela soberania nacional, contra qualquer intervenção militar na Venezuela

– Luta contra os bonapartistas e fascistas, centrando no Ele Não!

Cada integrante desta poderosa Unidade de Ação teria total liberdade política e organizativa para, na luta em comum nas ruas, expor nas falas, cartazes, panfletos, bandeiras e faixas o que cada um prioriza no amplo leque de liberdades democráticas reivindicadas.

À esquerda caberia pautar, em todos os atos de rua, a liberdade para seus militantes, com o Lula Livre como símbolo maior, bem como prisão para os mandantes da execução de Marielle e Anderson.

Do mesmo modo, seria importante chamar a luta contra a Reforma da Previdência no tocante aos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e assim sucessivamente.

Moreno, 1976: No queremos la unidad de acción para acompañar nuestro cortejo

Bandos em 1974, fascistas na Argentina assassinaram três militantes do antigo e saudoso PST, Partido Socialista dos Trabalhadores.

Em outro texto histórico, Moreno disse nessa ocasião:

“Frente a esse perigo, frente a esta escalada que vem desde há muito tempo, estamos aqui gritando pela Unidade de Ação. O que preocupa profundamente ao nosso Partido é se essa Unidade e Ação é para acompanhar o cortejo até o cemitério ou se vai ser uma Unidade de ação na rua para derrotar e esmagar a besta fascista. Não queremos a Unidade de ação para acompanhar o nosso cortejo. Queremos essa Unidade para esmagar o fascismo e para fazer o desfile da vitória sobre ele. Nos consideramos indispensável essa Unidade de Ação frente aos inimigos fascistas.

Os bandos fascistas atuaram até o momento e seguirão atuando. Eles não fazem distinção entre a Juventude Peronista, o Partido Comunista ou o PST. Seu objetivo é tratar de quebrar a todas as nossas organizações.

Chegou o momento em que devemos tirar uma conclusão muito importante que vem do Chile, que vem da experiência mundial:

Não se derrota o fascismo pela via das eleições!”

Por que Moreno chama à Unidade de ação e não à Frente Única?

Porque ele chama à unidade para a luta em comum com organizações que não são da nossa classe, como a juventude peronista. Contra os bonapartistas e fascistas, como ele já tinha afirmado no primeiro texto que apresentei, chamam-se os reformistas de nossa classe bem como os liberais burgueses. Simples assim.

O que é mais importante é que ele não chama estas organizações para ficarem apenas lamentando a execução de companheiros nossos. Chama-os para lutar, para a mobilização, para esmagar os fascistas nas ruas e em cada lugar de trabalho, de estudo ou de moradia.

Aqui, no Brasil de 2018/2019, uma grande parte da esquerda fica apenas na denúncia dos atos governo do presidente fascista, fica apenas  se lamentando pela morte de mais um negro, pelo autoexílio de mais um companheiro,  pela morte de mais uma mulher que foi vítima de feminicídio, pelo assassinato de mais um LGBT, reclamando que Moro e a Lava Jato atuam fora da lei, que querem rasgar a Constituição de 1988, que Lula está preso injustamente, que Marielle foi brutalmente executada, de que Queiroz é um larápio, etc.

Tudo isso é verdadeiro, mas essas lamentações sem fim refletem apenas a passividade infinita da esquerda no combate aos bonapartistas e aos grupos fascistas.

Comemora-se um ano da prisão de Lula em 2018. Em 2019 serão comemorados dois anos? E depois? 3, 4, 5?

Comemora-se e relembra-se do um ano da execução de Marielle, e os mandantes seguem impunes. Em 2019 serão comemorados dois anos? E depois 3, 4, 5?

Parece ser que não houve o Ele Não! e o grito contra o fascismo em outubro. Parece que o PT de Haddad não conquistou 46 milhões de votos. Parece ser que não houve centenas de milhares de pessoas xingando Bolsonaro no Carnaval. Parece que a batalha contra nossos inimigos de classes está de antemão perdida.

Parece que a nossa esquerda está presa politicamente na redoma do Congresso Nacional.

Por fim, tenho muito orgulho de ter trabalhado muitos anos no mesmo partido que Moreno. Ele nos legou preciosíssimas lições. Também tenho muito orgulho de, em determinadas ocasiões e em determinadas discussões políticas, seja a nível mundial, seja nacional, ter discordado de suas posições.

Porém, no assunto específico tratado neste artigo, Moreno é simplesmente certeiro. Neste sentido, sou morenista. Mas será que os demais morenistas concordarão comigo neste tema? A conferir.

[1] A Operação Bandeirantes (Oban) foi uma operação de combate a organizações que faziam oposição política ao regime militar na área da Grande São Paulo, que buscava identificar, localizar e capturar militantes considerados “subversivos” pelo regime militar.

 

*Sobrevivente das ditaduras brasileira e chilena, Ênio Bucchioni contribuiu para a formação da Convergência Socialista e do PSTU, além da fundação do PSOL, do qual ainda é militante. Atualmente, participa de uma corrente interna do PSOL, chamada Resistência.

 

* Esse artigo representa as posições do autor e não necessariamente a opinião do Portal Esquerda Online. Somos uma publicação aberta ao debate e polêmicas da esquerda socialista.