O consumo de drogas, a dependência química e a repressão ao tráfico de certo são temas controversos na contemporaneidade e temos observado iniciativas radicalmente distintas no contexto internacional. Enquanto em alguns lugares, como no Uruguai e em diversos estados norte-americanos, avança-se no sentido da legalização sobretudo da maconha; em outros, como nas Filipinas, a guerra às drogas foi intensificada ao ponto extremo da execução sumária de supostos traficantes. No Brasil, duas leis determinam a atitude governamental em relação a esses temas: a Política Nacional sobre Drogas[i] e o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas[ii]. Na primeira, são dispostos os objetivos e diretrizes das políticas públicas de redução do consumo e da oferta de entorpecentes, bem como de tratamento dos usuários e dos dependentes desses tipos de substâncias. No segundo, são prescritas as medidas de prevenção do uso indevido e de repressão à produção e ao tráfico de drogas.
No último dia 11 de Abril, Jair Bolsonaro assinou o decreto 9.761, em que é estabelecido um novo texto para a Política Nacional sobre Drogas, substituindo a versão[iii] que vinha sendo adotada desde 2002. De acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria[iv] e o Conselho Federal de Medicina[v], as novas diretrizes coadunam-se com o progresso obtido pelas ciências médicas no tratamento da dependência química, além de respeitarem a posição majoritariamente contrária da sociedade brasileira em relação às iniciativas de legalização das drogas. A medida tomada pelo governo conservador foi, todavia, duramente criticada por entidades e associações tais como o Conselho Federal de Psicologia[vi] e as Frentes de Luta Antimanicomial[vii]. Segundo elas, a novidade dessa Política está, na verdade, apenas no retrocesso em relação à forma de tratamento do consumo e dos consumidores de substâncias químicas, pois incentiva mecanismos de estigmatização social e o retorno à lógica manicomial, ferindo a dignidade humana.
Mas o que de fato mudou? E como devemos, afinal, nos posicionar diante disso?
Redução de Danos versus Abstinência
A Política Nacional sobre Drogas estabelecida em 2002, por meio de um decreto assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, incluía a Redução de Danos como uma alternativa terapêutica ao consumo e à dependência de drogas. De acordo com a Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), a “redução de danos (RD) é um conjunto de práticas e políticas de saúde pública cujo objetivo é reduzir os danos relacionados ao uso de drogas por pessoas que não podem, não conseguem ou não querem parar de consumi-las”. Entre as medidas preconizadas estão, por exemplo, as terapias de substituição, em que são oferecidas drogas de menor potencial ofensivo aos dependentes, e oferta de espaços de uso seguro como forma de evitar a proliferação de doenças e a overdose.
Considerada um dos métodos mais avançados de tratamento da dependência de entorpecentes por ser norteada pelo cuidado em liberdade e pelo respeito à autonomia e por buscar construir formas de cuidado junto ao usuário de drogas e ao seu contexto, a Redução de Danos foi eliminada pela nova Política de Bolsonaro. A Abstinência passa a ser a única meta buscada pela intervenção estatal. Mais precisamente, isso significa que a interrupção completa e imediata do consumo de drogas se torna uma pré-condição para que os indivíduos – sejam eles dependentes ou simples usuários – se tornem elegíveis à assistência estatal ou então se torna uma imposição absoluta sobre aqueles que o Estado decide intervir compulsoriamente.
Para entendermos ainda melhor a natureza qualitativa dessa mudança, é importante conhecer os pressupostos do paradigma da Abstinência: o binômio médico-religioso. O primeiro termo implica a consideração do consumo de drogas e da dependência enquanto doença e seu tratamento, enquanto processos de cura. A intervenção de tipo médico focaliza estritamente o indivíduo, isto é, como seres dissociados de seus contextos sociais e dos contextos socioculturais do consumo de drogas. Nesse sentido, o indivíduo doente é tido como um objeto da intervenção médica-psiquiátrica. Já a droga é tida como vetor da doença e sua erradicação é o único objetivo apropriado. Por consequência, o indivíduo deve se abster integralmente do consumo ao mesmo tempo em que a sociedade deve ser protegida das drogas. A proibição das drogas é, dessa forma, uma decorrência necessário do pressuposto médico: ela se refere à tarefa de contenção de uma espécie de epidemia.
O segundo termo compartilha com o primeiro do seu foco sobre o indivíduo fora de seu contexto. No entanto, agora o consumo de drogas é entendido como uma forma de doença moral. Tanto o usuário, quanto o dependente são sujeitos desprovidos de valores, moralmente frágeis, socialmente desajustados. Laços familiares desagregados são geralmente entendidos enquanto preditores do desvio no sentido da drogadição. Reconstituir, nos seus objetos, os valores da decência é o objetivo da intervenção. A integração em uma comunidade é o caminho adequado para tanto. A moral religiosa, por suposto, é tida como a única moralidade possível. A Abstinência é uma espécie de reconhecimento do indivíduo em relação a suas falhas morais, bem como de sua disposição em se reintegrar-se à vida correta. Nesse sentido, as formas de prevenção do consumo de drogas passam pela proteção e reforço dos vínculos familiares e religiosos. A proibição das drogas é, também, uma decorrência necessária do pressuposto religioso. Qualquer iniciativa de legalização é entendida como espécies de legitimação da degeneração moral do corpo social.
O Plano aprovado por Bolsonaro reitera expressamente tais postulados. Leiamos apenas o seguinte trecho:
4.1.3. As ações preventivas devem ser pautadas em princípios éticos e de pluralidade cultural, orientadas para a promoção de valores voltados à saúde física, mental e social, individual e coletiva, ao bem-estar, à integração socioeconômica, à formação e fortalecimento de vínculos familiares, sociais e interpessoais, à promoção de habilidades sociais e para a vida, da espiritualidade, à valorização das relações familiares e à promoção dos fatores de proteção ao uso do tabaco e seus derivados, do álcool e de outras drogas, considerados os diferentes modelos, em uma visão holística do ser humano, com vistas à promoção e à manutenção da abstinência.
Portanto, pela ideia de Abstinência não devemos simplesmente entender o não-consumo de drogas como diretriz de saúde pública. O seu conteúdo moral a faz completamente incompatível com os princípios de uma sociedade democrática, que reconhece e respeita o pluralismo religioso, a laicidade do Estado e a autonomia dos indivíduos. No entanto, alguns podem considerar essa Política defensável em função apenas da perspectiva médica. Somos obrigados, então, a apontar o ingênuo idealismo que sustenta essa perspectiva. Drogas sempre foram e, provavelmente, para sempre serão consumidas. Se tomarmos a definição ampla desse termo, e incluirmos na conta o que chamamos de medicamentos e outros itens como o café e os diversos tipos de chá, veremos até mesmo que a interrupção total do consumo de drogas não é sequer possível ou desejável.
A política de Redução de Danos não é, por sua vez, incompatível com a ideia de que os indivíduos devem preferencialmente abster-se do consumo de drogas altamente nocivas; ela procura oferecer alternativas de mais baixa exigência ao dependente (como a terapia de substituição), que possibilitam o tratamento gradual do problema. Além disso, ela reconhece a importância dos contextos da drogadição e respeita a autonomia dos indivíduos em relação aos seus corpos e mentes. Provavelmente não acharíamos razoável que alguém propusesse a um tabagista que abandone cigarro caso ele tenha, por exemplo, acabado de se divorciar, e sequer o consideraríamos uma espécie de sujeito degenerado caso optasse por continuar fumando nesse momento. De forma semelhante, não se deve exigir de um morador de rua dependente do consumo de crack que abandone seu vício para que possa começar a receber a assistência estatal. Os danos relacionados a forma que consome a droga devem ser inicialmente reduzidos, as condições que facilitam a drogadição devem ser remediadas e, então, a abstinência em relação a esse tipo de droga pode se tornar uma meta alcançável, caso ela seja desejável.
Não somos, portanto, meramente contrários a recomendações médicas. Apenas afirmamos que é imprescindível reconhecer justamente aquilo que elas ignoram – a gênese sócio-histórica tanto do consumo quanto da proibição de determinados tipos de drogas – para que seja possível tratar adequadamente do consumo, da oferta e da dependência das drogas. A licitude do álcool e a proibição da maconha, por exemplo, apenas fazem sentido de um ponto de vista histórico. Por essas razões que consideramos, então, que o abandono das políticas de Redução de Danos é, de fato, um retrocesso. Contudo, é importante ressaltar que esse tipo de política não se vincula automaticamente com uma posição favorável à legalização ou à descriminalização das drogas. Ela é, na realidade, independente dessas posições políticas. Seu interesse fundamental é seu próprio objeto, e não algum outro conteúdo moral. Retornaremos a essa questão mais adiante.
O retorno ao Manicômio e ascensão das Comunidades Terapêuticas
Outra consequência direta do binômio médico-religioso que orienta as diretrizes da nova Política diz respeito a que tipo de tratamento deve ser oferecido e em que tipo de instituição terapêutica deve ser privilegiada pelo Estado. Aí reside parte fundamental dos motivos para a consternação das associações de psicologia e das frentes de luta antimanicomial com o novo texto legal.
Uma das instituições eleitas como prioritária pela nova Política são os Hospitais Psiquiátricos. O histórico de desrespeito à dignidade humana, aos direitos humanos e a outros princípios democráticos fundamentais ocorrido nesse tipo de instalação médica é vasto, sobretudo nas suas versões judiciárias. Orientados pela lógica asilar, eles não possuem a recuperação dos pacientes como objetivo; mas sim o simples isolamento e a incapacitação dos pacientes, sendo esta obtida a qualquer custo, em especial por meio da administração forçada de substâncias dopantes. Acompanhemos as observações do Promotor de Justiça Arthur Pinto Filho a respeito das condições de um Hospital Psiquiátrico em São Paulo[viii]:
No Hospital São João de Deus apurou-se ausência de projeto terapêutico singularizado, tratamento baseado na contenção medicamentosa, internação sem prévio esgotamento da rede extra-hospitalar, relatos de falta de locais para morar e de trabalho, falta de profissionais, falta de comunicação aos pacientes quanto a seus tratamentos e termos de consentimento irregulares, falta de contra referência, inexistência de alta aos finais de semana por falta de médico e relutância para a concessão das mesmas, ausência de equipamentos adequados na sala de emergência, utilização de ambulância do SAMU (ausente condição de emergência) como transporte até o local, ausência de notificação ao Ministério Público das internações involuntárias, encaminhamentos padronizados para comunidades terapêuticas, trancamento de alas com chaves, tratamento baseado na segregação, que gerou inclusive “comandos internos paralelos” pelos próprios usuários, inexistência de escuta e respeito a autonomia dos pacientes, inadequação dos registros de enfermagem, falta de equipamento de emergência (ventilador mecânico), prescrição médica fora da validade e irregulares, falta de profissionais.
São a essas condições que o Estado brasileiro sob Jair Bolsonaro submeterá os dependentes de drogas como forma de tratar de sua doença. Além disso, essa espantosa escolha de política pública ainda é acompanhada de uma modificação na forma de subsídio público à internação psiquiátrica que deve intensificar ainda mais suas afrontas contra a dignidade humana. A mudança a que nos referimos está contida na Portaria 3.588/2017 do Ministério da Saúde, que modifica as disposições sobre a Rede de Atenção Psicossocial. Embora não tenhamos competência para avaliar os seus pormenores, chamamos a atenção para o fato de que essa Portaria atribui um aumento médio de cerca de 65% sobre o orçamento dos Hospitais Psiquiátricos e, ainda, institui a vinculação direta do volume dos recursos recebidos ao número de leitos preenchidos. O efeito dessa última disposição, conquanto ela nos pareça financeiramente bastante óbvia, é o estímulo à manutenção de leitos e de internações como forma de preservação de recursos orçamentários. Ou seja, a alta hospitalar deixa de ser uma decisão objetiva que constata a progressão de um paciente em seu tratamento e se torna o vetor de uma perda financeira dos gestores dos Hospitais que deve, por óbvio, ser desincentivada.
A outra instituição eleita como prioritária são as Comunidades Terapêuticas. De acordo com a PBPD, as “comunidades terapêuticas são instituições privadas que acolhem pessoas em uso problemático de drogas. Organizadas em residências coletivas temporárias, as CTs mantêm os internos isolados de seu convívio familiar e social para que abdiquem do uso de substâncias e adotem um novo estilo de vida […]”. Em sua maioria, baseiam seu método terapêutico no tripé religiosidade, trabalho e disciplina.
Embora menos conhecidas e menos presentes no imaginário popular do que os manicômios, não são escassos os relatos de violação aos direitos humanos nessas instituições. De acordo com o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas de 2017[ix], na maior parte das instituições inspecionados os familiares são impedidos de visitar os internos, bem como são restringidas as formas de comunicação entre eles; os internos têm seus documentos e seu dinheiro retido e suas correspondências violadas; internações voluntárias são arbitrariamente convertidas em involuntárias, constituindo cárcere privado; não são desenvolvidos projetos terapêuticos singulares, não existem protocolos de desinstitucionalização, não são seguidas as normas sobre período de internação e não são realizados registros individuais dos residentes; a liberdade religiosa é sistematicamente violada; a exploração do trabalho é considerada uma ferramenta de disciplina; as sanções impostas assemelham-se à prática de tortura; as equipes são tecnicamente frágeis e as legislações trabalhistas são violadas; e, finalmente, não foram verificadas infraestruturas adequadas aos objetivos das instituições.
Não há, também, nenhum tipo de comprovação científica sobre a eficácia da abordagem das Comunidades Terapêuticas. Ainda assim, apenas a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas destinará cerca de 100 milhões de reais ao financiamento das Comunidades Terapêuticas no ano de 2019, que ainda contam com verbas dedicadas pelas unidades da federação e da arrecadação obtida junto às famílias dos internos.
Em síntese, portanto, a nova política representa a destruição completa dos avanços democráticos e científicos cristalizados nas antigas diretrizes da rede de atenção psicossocial, em que se determinava “o respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia, a liberdade e o exercício da cidadania; promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde; garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar; ênfase em serviços de base territorial e comunitária, diversificando as estratégias de cuidado, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares.”[x]
Por essas razões, a oposição radical à nova Política é o único caminho possível para aqueles que, como nós, consideram-se defensores dos direitos humanos e de políticas democráticas e humanitárias. Devemos, por conseguinte, apoiar a luta que torna novamente a ser travada pelas referidas frentes de luta antimanicomial, bem como pelos conselhos de psicologia.
A proibição das drogas e a repressão ao tráfico
A nova Política de Bolsonaro, no entanto, deixa inalterado o paradigma da proibição das drogas no e do modo como o tráfico de drogas é reprimido no Brasil. Já apresentamos os pressupostos que tornam coerentes tais permanências. No entanto, o argumento mais comumente mobilizado pelos proibicionistas é a posição majoritariamente contrária da população brasileira às iniciativas de legalização das drogas. Essa afirmação foi até mesmo incluída como uma diretriz para a formulação da nova Política que, enfatize-se, foi realizada de forma apressada (todo o processo durou apenas três meses, entre dezembro de 2017 e março de 2018) e sem ampla consulta pública (propostas desse tipo foram, na verdade, vetadas pela presidência do Conselho Nacional de Política sobre Drogas, órgão responsável pelo projeto).
A mais recente pesquisa realizada pelo Datafolha[xi] a respeito desse tema, confirma o argumento dos proibicionistas, embora também aponte o crescimento constante do apoio a políticas de descriminalização da maconha. Precisamente, 66% dos brasileiros acreditam que o consumo da maconha deve continuar sendo proibido contra 32% que acreditam que o consumo dessa droga deveria ser descriminalizado. Em 1995, primeiro ano em que a informação foi colhida, o primeiro grupo continha 81% da população enquanto o segundo, apenas 17%. A questão fundamental, no entanto, é se esses números devem ser considerados suficientes enquanto justificativas para a política adotada pelo Estado brasileiro. Quanto a isso, respondemos que não.
Em primeiro lugar, consideramos, para tanto, os dados científicos sobre os efeitos profundamente nocivos à sociedade e à saúde humana da proibição das drogas. Em segundo, consideramos também os avanços obtidos nesse sentido pelos países que adotaram políticas de legalização e regulamentação da produção, da comercialização e do consumo de drogas. Ao contrário das previsões alarmistas dos proibicionistas, em nenhum caso houve aumento significativo do consumo de drogas. Em terceiro, identificamos que o debate sobre as drogas tem sido, ao longo de décadas, objeto de campanhas de desinformação e de manipulação da opinião pública lideradas por um vasto conjunto de atores e instituições, desde políticos conservadores a líderes religiosos, que apenas recentemente começaram a ser desmistificadas pela ciência.
Todavia, o critério que fundamentalmente adotamos para nos posicionarmos contrariamente à proibição das drogas e, por consequência, favoráveis às iniciativas de descriminalização e legalização diz respeito aos efeitos da política de guerra às drogas sobre uma parcela específica da população brasileira, isto é, a juventude preta e periférica.
Comecemos essa discussão pela elucidação dos critérios que levam determinadas drogas a serem proibidas e outras legalizadas. Santos e Soares[xii] afirmam, nesse sentido, que tais critérios, apesar de se dizerem científicos, são fundamentalmente aleatórios e políticos, “para não dizer econômico, ou de interesses dominantes”. Exemplo categórico disso é a separação das substâncias psicoativas em grupos distintos, “mas que não guardam semelhanças de periculosidade, como é o caso da maconha, da cocaína e da heroína, no grupo de substâncias ilícitas. Também é o caso do álcool, do tabaco e dos medicamentos psicotrópicos na sua ampla variedade no grupo das substâncias lícitas”. Quanto a natureza última desses critérios, afirmam que “Na história do proibicionismo oficial os discursos dominantes, de cunho ideológico, buscaram promover entre alguns povos e culturas a aliança entre práticas moralistas e controle social, relacionando determinados psicoativos a ‘(…) minorias vistas como perigosas por seus hábitos e procedências. Assim, chineses eram relacionados ao uso abusivo de ópio, negros ao de cocaína, irlandeses ao de álcool, hispânicos ao de maconha’”. Concluem, assim, que “as políticas de repressão às drogas ilícitas têm se mostrado como mais uma ferramenta para punir os pobres”. Portanto, as políticas proibicionistas servem, em última instância, à exploração do trabalho e à dominação de classe, propriedades intrínsecas do modo de produção capitalista, ao qual, evidentemente, devemos nos opor.
No caso brasileiro, essas políticas servem, também fundamentalmente, à manutenção do racismo estrutural. Embora tanto o tráfico quanto o consumo de drogas não respeite fronteiras de classe social e de raça, a socióloga Jacqueline Sinhoretto[xiii], da Universidade Federal de São Carlos, constatou que no Estado de São Paulo, as ações policiais vitimam três vezes mais negros do que brancos quando se considera a proporcionalidade entre brancos e negros na população paulista. A pesquisa também mostrou que o modo de vigilância das polícias, sobretudo a militar, opera de modo racializado: “enquanto que para cada 100 mil habitantes brancos 14 são presos, para cada 100 mil habitantes negros 35 são presos”. Vejamos também que, em 2016, o Brasil atingiu o número de 716 mil pessoas encarceradas, sendo 26% delas condenadas pelo crime de tráfico de drogas e 64% identificada enquanto negra. Os números da letalidade policial são também expressivos desses mecanismos de exploração e dominação racial: de acordo com o Fórum de Segurança Pública, em 2016 policiais assassinaram 4.222 pessoas, sendo 99,3% de homens, 81,8% com idade entre 12 e 29 anos e, ressalta-se, 76,2% de negros. Finalmente, a proibição incentiva a formação de organizações criminosas, estimula sua inserção nas periferias urbanas e patrocina a competição violenta entre elas.
Portanto, a proibição das drogas e a política de guerra às drogas sustentam a lógica do encarceramento e do genocídio em massa da população preta e periférica no Brasil. Porém, nos faltaria honestidade se atribuíssemos a responsabilidade sobre esses fatos exclusivamente a políticos conservadores, líderes religiosos e à parte mal intencionada da comunidade médica, como viemos fazendo até agora. O Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas é, hoje, a peça legislativa que atribui legitimidade a essas políticas. Ela foi, no entanto, formulada e promulgada durante o mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, entendido por muitos como um governo marcadamente progressista.
Depois de sua implementação, em 2006, o número de presos no Brasil cresceu 81%. Mas por qual razão? Embora a lei estabeleça tratamento diferenciado para traficantes e consumidores – efetivamente descriminalizando o porte de drogas –, ela atribui, no parágrafo segundo do vigésimo oitavo artigo, ao juiz o poder de determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal por meio da apreciação da natureza e da quantidade da substância apreendida, do local e das condições em que se desenvolveu a ação, das circunstâncias sociais e pessoais, bem como da conduta e dos antecedentes do agente. Isto é, a lei não estabelece critérios objetivos e, por isso, torna legítimas considerações fundadas sobretudo em modos de agir e pensar preconceituosos e estigmatizantes. Não a toa, se costuma dizer que, no Brasil, esse critério pode ser resumido da seguinte forma: independentemente da quantidade de drogas aprendida, o branco de classe média é usuário e o preto pobre, traficante.
A pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus analisou detidamente os mecanismos de funcionamento dessa política em sua tese de doutorado[xiv]. Ela nos explica, na verdade, que são as narrativas dos policiais militares que determinam a apreciação dos sujeitos enquanto usuários ou traficantes de drogas. Esses relatos, ela destaca, resultam da observação e interpretação de acontecimentos do mundo social por meio de um “saber policial” que assumem, ao adentrarem o mundo da justiça, status de “verdade”. Este é o saber que confere conteúdo, por exemplo, a expressões cuja vagueza semântica é semelhante a dita “atitude suspeita” que justifica a abordagem policial. Da mesma forma, a afirmação de que o suspeito foi apreendido em um “local conhecido como ponto de venda de drogas” é fundamental para a caracterização do crime de tráfico, porém sua validação depende integralmente da presunção de verdade do conhecimento prático dos policiais que relatam o episódio. O uso dessas expressões – judicialmente aceitas – suprime das narrativas seus conteúdos e motivações informais e extralegais. Então, se somam às características pessoais e sociais dos suspeitos e se tornam “indícios” institucionalizados, pelos delegados de polícia, no momento em que são reproduzidos nos relatórios dos inquéritos. Nenhum tipo de investigação adicional é requerido pelas autoridades competentes; a validade do “saber policial” é reconhecida e compartilhada por eles, além de considerá-lo suficiente para pôr a termo a fase policial.
Nas audiências de custódia, em que um juiz é convocado para decidir acerca da manutenção da prisão dos acusados, as informações prestadas pelo promotor de justiça apenas traduzem ao formato da denúncia o resultado do inquérito policial. Ao acusado e a seu defensor também é oferecido o direito de se pronunciarem sobre a “verdade dos fatos”. Frequentemente, a oportunidade de fala lhes serve para denunciar a má conduta policial. As narrativas sobre fraudes e torturas são, no entanto, recebidas com desconfiança. Crê-se que o acusado mentirá, sobretudo se sobre ele se encaixarem adequadamente os parâmetros pessoais e sociais que explicam a criminalidade. Porém, crê-se com ainda mais convicção na retidão dos policiais e na sua dedicação a uma função pública imprescindível para a manutenção da ordem pública. A hipótese de relativização da crença é possível apenas quando há proximidade social entre o acusado e os operadores do direito. Outra expressão presente nas manifestações de promotores e decisões de juízes para justificar a adesão às narrativas policiais consiste na “presunção de veracidade”, a qual atribuem aos agentes policiais. Este enunciado equivale ao sentido da “fé”, ambos ligados ao “universo da crença” […] Ao serem utilizadas como expressões que justificam a recepção das narrativas policiais, os operadores do direito dispensam a necessidade de conhecer, de compreender a fundo, de questionar os casos.
Em função do princípio do contraditório no processo penal brasileiro, devem ser utilizadas como provas judiciais apenas aquilo que é produzido em juízo. No entanto, o que ocorre é a simples transfiguração dos “indícios” produzidos pelas narrativas policiais em provas judicialmente válidas por meio da sua simples enunciação pela autoridade competente – o promotor de justiça. Do outro lado da sala do tribunal, a defensoria pública, muito limitada pela escassez de recursos humanos e organizacionais, procura tornar verdadeiros os enunciados sobre as más condutas policiais. O sistema de crenças, por óbvio, se ergue enquanto uma barreira às narrativas contestatórias. O que se nota, ainda, é um efeito paradoxal das estratégias dos defensores. Para construir os argumentos para a desclassificação do caso de tráfico para porte para uso, acabam por aderir ao regime de verdade definido pelo vocabulário policial, reforçando sua validade.
Diante disso, a decisão do magistrado em geral se sustenta integralmente nas narrativas policiais atualizadas pela forma jurídica. Ora, esses agentes assumem uma perspectiva de presunção absoluta sobre o trabalho policial. Aqui, nem mesmo contradições nos depoimentos são suficientes para que as provas que narram sejam eficazmente questionadas. Ora, uma perspectiva de presunção relativa, em que a verdade policial é novamente admitida, porém não é considerada suficiente caso não hajam outros dados do mundo empírico que a corrobore. Em ambas, todavia, a desconfiança em relação ao acusado permanece sendo uma baliza fundamental da decisão. O silêncio – uma garantia constitucional contra a autoincriminação – se torna em indício de culpa. Aquilo que os policiais relatam como as falas dos acusados (as “confissões informais”) é mais relevante do que esses efetivamente dizem em juízo. Os agentes da segurança pública não são simples testemunhas de acusação nos casos de tráfico de drogas; são também peritos capacitados por seu “saber” e legitimados pela “fé pública”. A crença, em última instância, é tudo aquilo que lhes permitem exercer o direito de punir os crimes de tráfico de drogas.
Considerações finais
Em resumo, portanto, a nova Política sancionada por Bolsonaro representa o aprofundamento de uma postura conservadora em relação às drogas na sociedade brasileira e, desse modo, é complementar à política repressiva sobre usuários e traficantes implementada por Lula. Como viemos demonstrando, a luta em defesa dos direitos humanos e, fundamentalmente, a luta antirracista no Brasil deve se opor a esse conjunto de legislações. As iniciativas de descriminalização e legalização das drogas são parte desse movimento contestatório. Elas contém em si o respeito à dignidade humana e à autonomia individual e expressam o esforço de drástica redução da violência estatal contra a população preta e periférica. Por isso, ainda que sejam contramajoritárias, não deixam de ser necessárias.
[i] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9761.htm
[ii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm
[iii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4345.htm
[iv] https://www.abp.org.br/noticias/aprovacao-nova-pnad
[v] https://portal.cfm.org.br/images/PDF/notapoliticanacionalsobredrogas.pdf
[vi] https://site.cfp.org.br/governo-federal-decreta-fim-da-politica-de-reducao-de-danos/
[vii] https://www.facebook.com/mnlaemluta/photos/a.1553008025022702/2304913149832182/?type=3&theater e https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2084047695227381&id=1490121467953343
[viii] http://www.cremesp.org.br/pdfs/eventos/eve_15052018_150834_Arthur%20Filho%2001.pdf
[ix] http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pfdc-lanca-relatorio-sobre-inspecao-nacional-em-comunidades-terapeuticas
[x] https://site.cfp.org.br/tag/luta-antimanicomial/
[xi] http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2018/01/1948796-cresce-apoio-a-legalizacao-da-maconha-no-brasil.shtml
[xii] Santos, Vilmar Ezequiel; Soares, Cassia Baldini. “O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo”.Sau. & Transf. Soc., ISSN 2178-7085, Florianópolis, v.4, n.2, p.38-54, 2013
[xiii] 28 Sinhoretto, J.; Silvestre, G.; Schlittler, M. C. Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante. Sumário executivo. São Paulo, UFSCar-GEVAC, 2014.
[xiv] Jesus, Maria Gorete Marques de. A verdade jurídica nos processos de tráfico de drogas. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
*Eduardo Casteluci é doutorando em sociologia pela Universidade de São Paulo e ativista de direitos humanos
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