O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro foi o primeiro entrevistado na nova temporada do programa “Conversa com Bial” da Rede Globo, nessa terça feira (09). Ao ser questionado sobre a brutal execução do músico Evaldo Rosa, no Rio de Janeiro (07), que teve o carro atingido por 80 tiros de fuzil disparados por militares do Exército, enquanto se dirigia a um chá de bebê com a sua família. Sergio Moro disse que se tratou de um “incidente bastante trágico (sic). É algo que pode acontecer”. Moro ainda comentou, que o seu pacote “anticrime”, que propõe garantir a legítima defesa em situações na qual o agente alegue “violenta emoção” não parece se enquadrar no caso em questão.
A questão é a seguinte, pode o Ministro Sergio Moro, que no dia 02 de Abril, defendeu que um policial não precisava esperar levar um tiro de fuzil para reagir, quando esteve na LAAD Defense & Security, a maior feira de defesa e segurança pública da América Latina, dizer que o fuzilamento ocorrido no Rio de Janeiro foi um mero “incidente”? O Brasil é o país onde a Polícia mais mata no mundo, no entanto, Sergio Moro não considera que a letalidade policial seja um problema, pois a sua primeira medida como ministro foi encaminhar alterações na legítima defesa para os agentes de segurança pública. Ao invés de partir do pressuposto, que a violência policial precisa ser controlada, o ministro Sergio Moro tratou de reatualizar a noção de legítima defesa, como o assassinato praticado “em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado” ou quando o “agente previne uma injusta agressão ou risco de agressão a vítima mantida como refém”
A proposta apresentada por Sergio Moro é um incentivo a ações como essas que aconteceram no Rio de Janeiro, ele inclusive incluiu no texto sobre legítima defesa, que o juiz pode reduzir pela metade ou absolver o policial, se ficar comprovado que o excesso ocorreu motivado por escusável medo, surpresa ou violenta emoção. Numa sociedade em que os policiais vivem afirmando que atiraram porque se confundiram, ou que a arma disparou sozinha, curioso que esses disparos acidentais só acontecem em bairros periféricos, o pacote “Anticrime” oferece aos policiais elementos para que o seus discursos sobre legítima defesa sejam ampliados, com novas justificativas.
O fuzilamento do carro de Evaldo Rosa trata se sim de uma tragédia, mas de uma tragédia anunciada, de um filme repetido na Sessão da Tarde, da TV Globo. Não podemos nos esquecer, que em 2015, na mesma cidade do Rio de Janeiro, 5 jovens negros tiveram o seu carro atingido por exatamente 111 tiros, disparados por PM’s, que alegaram que estavam averiguando uma denúncia de roubo de carga, na região de Costa Barros, periferia do Rio de Janeiro. Os policiais que efetuaram 81 tiros de fuzil e 30 de pistola, ainda tentaram alterar a cena do crime, para produzir uma situação de legítima defesa, quando colocaram uma arma de fogo próximo aos corpos das vítimas. Após 1 ano da morte do seu filho de 15 anos, Roberto, na Chacina de Costa Barros, Joselita de Souza, morreu de depressão.
O que há de comum entre os jovens de Costa Barros e Evaldo Rosa, está para além dos fuzilamentos dentro de um carro, é que nos dois casos se tratam de vítimas da cor da pele negra e isso foi determinante para que as suas vidas fossem encerradas de forma violenta, pelas mãos de membros das forças de segurança. Segundo o Instituto de Segurança Pública, entre janeiro de 2016 e março de 2017, de cada 10 pessoas mortas pelas polícias do Rio de Janeiro, 9 eram pardas ou negras. Nos dois primeiros meses desse ano, as polícias carioca mataram 305 pessoas, uma média de 1 a cada 3 assassinatos registrados e com certeza o perfil étnico racial continua o mesmo.
Além de serem mortas por “engano”, as pessoas negras também são as principais vítimas de prisões por “engano”. O caso mais recente de repercussão nacional envolveu o jovem Leonardo Nascimento, que foi preso no mês de janeiro, acusado de ter assassinado Matheus dos Santos Lessa, num assalto a um mercadinho, após ter sido reconhecido pela mãe da vítima como um dos autores. Leonardo Nascimento só conseguiu a liberdade, porque o seu pai, levou a Polícia Civil, imagens do sistema de segurança do condomínio em que ele mora, demonstrando que Leonardo não poderia está em lugares diferentes no mesmo dia e horário. Mas eu poderia destacar outro caso ocorrido em 2018, quando Antonio Rodrigues foi preso, acusado de ter roubado o cônsul geral da Venezuela. Só para termos uma noção de como o racismo classifica as pessoas dentro de um mesmo grupo social, apagando as diferenças entre os sujeitos, é que Antonio Rodrigues foi preso baseado apenas numa fotografia, em que o mesmo estava usando óculos escuros, assim como estava o verdadeiro autor, no circuito de câmera interno do prédio, onde ocorreu o assalto.
Enquanto os jornais televisivos e online reproduziam a imagem e a fala desesperadora de Luciana Nogueira, viúva de Evaldo Rosa, que estava dentro do carro e sobreviveu a um massacre juntamente com o filho do casal e o seu padrasto, dizendo que os militares do Exército debocharam quando ela pediu ajuda. Os políticos entusiastas da violência policial, como o presidente Jair Bolsonaro e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, preferiram o silêncio dos coniventes e não comentaram o fato. O Porta voz da presidência, Otávio Rêgo Barros, afirmou na segunda feira, que Jair Bolsonaro não comentou o fuzilamento, apenas disse que a presidência “confia na Justiça Militar e no inquérito instaurado”.
Nem mesmo no Twitter, rede social em que Jair Bolsonaro se mostra muito ativo, nenhuma palavra, nem dele e nem dos filhos. Mas por que será que o “patriota” Jair Bolsonaro, não publicou palavras de pêsames, a um compatriota, civil e desarmado, que foi executado pelo Exército do seu próprio país? Evaldo Rosa não era um brasileiro? Não é Jair Bolsonaro, o defensor da suposta “família tradicional brasileira”, pois não havia ali no carro uma família? O que impediu a empatia do presidente, do chefe maior das forças armadas, com a execução brutal de Evaldo Rosa? Inclusive, se dependesse da promessa de campanha de Bolsonaro, os 10 militares do Exército sequer seriam presos em flagrante, porque a sua principal bandeira na área da segurança pública era dar carta branca para o policiais matarem em serviço.
O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, resolveu de uma hora para outra que não iria “fazer juízo de valor e nem muito menos tecer qualquer crítica a respeito dos fatos”, porque não envolvia a Polícia Militar. Logo ele, que vive defendendo a “lei do abate”, para que pessoas possam ser executadas por estarem portando um fuzil, instaurando de forma ilegal a pena de morte. Wilson Witzel falou que os snipers já estão sendo utilizados de forma sigilosa, em tempo, o Ministério Público instaurou um processo para investigar o assassinato de seis moradores da favela de Manguinhos, que teriam sido mortos por atiradoreslocalizados na torre da Cidade da Polícia Civil. Na verdade, o governador do Rio de Janeiro, gostaria de ter homenageado os militares do Exército, só que a vítima não era envolvida com o crime.
O Comando Militar do Leste, que fuzilou o carro de Evaldo Rosa com 80 tiros, é o mesmo que no ano de 2008, entregou 3 jovens do Morro da Providência, para traficantes do Morro da Mineira, por causa de um suposto desacato, os jovens acabaram torturados e mortos. Desde 2010, 32 civis foram mortos pelo Exército no Rio de Janeiro. Um dos principais ‘legados’ da Intervenção Militar no Rio de Janeiro foi justamente o aumento da letalidade policial, a números iguais da era pré UPP, no ano de 2007. Antes de matarem Evaldo Rosa, no domingo, militares do Exército já tinham executado o jovem Christian Felipe Santana, de 19 anos, pelas costas, na sexta feira (05), durante uma blitz. Logo após terem assassinado Evaldo Rosa, o Comando Militar do Leste tinha emitido uma nota, dizendo que os militares não tinham atirado contra um carro ocupado por uma família, mas sim, respondido a uma “injusta agressão” de “assaltantes”. Só na manhã da segunda feira, que o Comando Militar do Leste divulgou outra nota, informando que os militares estavam sendo presos, porque encontraram inconsistência nos fatos narrados. A priore, Evaldo Rosa era um “bandido” que foi morto em legítima defesa dos soldados.
Porém, não adianta apenas prender os militares que executaram Evaldo Rosa, desde a década de 1990, o Exército brasileiro, desviado de sua função constitucional, que é proteger a soberania nacional, patrulhando as suas fronteiras e que deveria atuar apenas em situação de guerra, vem sendo cada vez mais utilizado pela elite política como força policial interna, quando não tem nenhuma preparação para isso com resultados pífios. Se as polícias civis e militares, que na lei devem atuar primeiramente para prender e só matar em casos excepcionais, já matam de forma indiscriminada, imagina uma instituição que é preparada não para prender, mas sim para matar? A utilização do Exército na segurança pública é um recado claro do Estado, não existem civis, e sim inimigos de guerra que podem ser mortos, pois na guerra o assassinato não é crime.
Segundo o delegado Leonardo Salgado, tudo indica que o carro de Evaldo Rosa foi “confundido”, com o carro de supostos assaltantes, “mas neste veículo estava uma família. Não foi encontrada nenhuma arma. Tudo que foi apurado era que realmente era uma família normal, de bem, que acabou sendo vítimas dos militares.” No entanto, nós negros devemos aprender, que não podemos basear a nossa existência por conceitos como “cidadão de bem”, “trabalhador”, “família”, que visam enquadrar a formação da cidadania, porque numa sociedade racista e desigual, esses elementos são preenchidos pelas cores dos sujeitos e aquilo que elas socialmente significam. Do que adianta você ser “cidadão de bem”, “trabalhador” e terminar fuzilado por 80 tiros, dentro do carro com a sua “família”?
Não devemos ter vergonha e receio de sermos taxados como “defensores de bandidos”, porque para as instituições que decidem quem vive e quem morre, o bandido é sempre negro. Eles só atiram em um homem negro dito de bem, porque eles matam todos os dias homens negros descritos como de mal. Entre confusão e acertos, o objetivo é sempre perfurar corpos negros!
A palavra incidente significa que houve um acontecimento inesperado, imprevisto, nesse caso, só poderíamos chamar de incidente, se um carro ocupado por pessoas brancas, tivesse sido fuzilado na zona sul do Rio de Janeiro. Quando se trata de pessoas negras, estamos diante de uma política racial de extermínio, tudo isso após uma semana de discussão, se o Exército deveria ou não comemorar e rememorar o golpe de 1964, com tentativas do governo federal, formado por militares torturadores, de reescrever a história e apagar a existência da ditadura. Comemorar a ditadura não é nada, quando se pode fuzilar pessoas em plena a democracia.
Hoje, Evaldo Santos foi sepultado, sob gritos de justiça e com bandeiras do Brasil furadas e manchadas de sangue, alguns dizem por aí, que a bandeira brasileira jamais será vermelha, ela pode até não ser a bandeira vermelha do Comunismo, mas ela é vermelha sim do sangue de pessoas negras e pobres.
Henrique Oliveira é colaborador da Revista Rever/Salvador
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