Antes de qualquer coisa, é importante sempre ter em mente que o sistema de justiça não é alheio à dinâmica da luta de classes e ao processo político. A função jurisdicional de processar e julgar conflitos e casos de violação ou ameaça de violação à ordem jurídica é uma das funções inerentes ao poder político. Seus agentes, os juízes, desembargadores, ministros, os membros do ministério público, são, conceitualmente, agentes políticos do estado, tanto quanto os parlamentares, os chefes do executivo, os ministros e secretários de governo.
Desta forma, a percepção de um judiciário neutro, imparcial diante do conflito social, não passa de falsa percepção da realidade, de falsa consciência. Em momentos de pouca pressão e conflito social, de relativa estabilidade das instituições da democracia burguesa, a ideia de um judiciário distante dos interesses de classe é quase natural, é quase lógica, mesmo entre os trabalhadores e setores mais explorados e oprimidos de nossa classe. Mas em momentos de acirramento e maior polarização da luta social, a ideia de um judiciário apolítico, neutro e imparcial, é um argumento cada vez mais difícil de sustentar.
O Judiciário, portanto, reflete em suas decisões, crises, polêmicas e embates, as características da dinâmica da luta de classes que a sociedade vive. Se o momento em que vivemos é caracterizado pelo crescimento das ideias autoritárias, de massificação do populismo e punitivismo penal, de ataque aos direitos sociais e às liberdades individuais, desmonte e precarização dos serviços públicos, de criminalização dos movimentos sociais, de seus ativistas e suas lideranças, as decisões do sistema de justiça vão refletir também as contradições e a dinâmica das características do momento político em que estamos.
Assim, na esteia do processo de militarização da política e crescimento do protagonismo das forças armadas, o Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, nomeia como assessor da presidência, o general da reserva Fernando Azevedo e Silva, indicado para o cargo diretamente pelo então Comandante do Exército, general Villas Boas. O general Villas Boas é o mesmo que em 3 de abril de 2018, véspera do julgamento de um HC preventivo pelo STF que poderia ter impedido a prisão de Lula, usou o twitter para assegurar “… à nação que o exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, (…) bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
O Exército atuou politicamente junto ao STF para manter o entendimento que permitiu a prisão de Lula em 2018, e viabilizar a eleição de Jair Bolsonaro. A atuação decisiva das forças armadas no processo eleitoral, a partir da pressão exercida sobre o STF, mereceu agradecimento público de Bolsonaro quando, na cerimônia de transmissão de cargo do Ministério da Defesa, disse ao general Villas Boas: “o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
Desta forma, um general da ativa, responsável por Bolsonaro estar onde está, depois de pressionar o STF a tomar uma decisão, indicou um general da reserva para a assessoria da presidência do STF. E não indicou qualquer um. Fernando Azevedo e Silva participou do grupo formulador de propostas para a campanha de Jair Bolsonaro, e chegou até mesmo a organizar um almoço em homenagem à Hamilton Mourão, general que compunha a chapa presidencial.
A relação de Fernando Azevedo com os eleitos é tão forte e evidente, que Bolsonaro o nomeia Ministro da Defesa, não sem antes consultar Dias Toffoli, que no twitter (sempre ele!) disse “… fui consultado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro sobre a indicação de Fernando Azevedo e Silva e prontamente disse que seria uma excelente escolha”.
O alinhamento da presidência do STF ao novo governo e o que ele representa é tão grande, que o presidente da corte “guardiã da Constituição e da Democracia” disse sobre 1964, em seminário de comemoração aos 30 anos de promulgação da Constituição, que “hoje não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro a movimento de 1964”. Essa podia ser apenas uma manifestação infeliz, historicamente mentirosa e politicamente errada, se não tivesse consequências jurídicas relevantes.
Em março deste ano, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso, do TRF1, autorizou a celebração do golpe de 1964 nos quartéis por não vislumbrar nesta celebração “violação ao princípio da legalidade, tampouco violação aos direitos humanos”. Esta expressão da banalização dos atos de violência, tortura e agressão contra opositores foi expressa ainda por outra magistrada, desta vez a desembargadora Marília Castro Neves, do TJ do Rio de Janeiro, que em mais de uma ocasião lançou nas redes sociais mensagens de ameaça à Guilherme Boulos.
Esta estreita relação que, a partir do STF, o sistema de justiça guarda com o novo governo não se limita, no entanto, à revisão história sobre o golpe de 1964. É também um acordo programático sobre o golpe de 2016, revelado explicitamente na incorporação do ex-juiz Sérgio Moro ao Ministério da Justiça (outro responsável por Bolsonaro estar onde está!), e na proposta de um “grande pacto” pelas reformas da Previdência e Tributária, formulada por Toffoli por ocasião da abertura dos trabalhos do judiciário em 2019.
Mas uma retrospectiva da atuação do sistema de justiça nestes 100 dias de governo Bolsonaro não pode deixar de falar sobre a Operação Lava Jato e a Prisão de Lula, evidentemente.
Aquilo que se convencionou chamar de Força Tarefa da Operação Lava Jato ganha contornos cada vez mais nítidos de partido político. Um partido populista de direita, de ideologia idealista autoritária, elitista e messiânica, e métodos de ação mafiosos.
É um partido porque tem programa, tem ideologia e tem ação organizada. O programa da Lava Jato elege o combate à corrupção como um fim em si mesmo, a partir da compreensão de que a corrupção é a origem de todo o mal da sociedade desde violência urbana à ineficiência dos serviços públicos. É um programa de base ideológica idealista, portanto. Porque não parte de uma análise real das contradições da formação social brasileira, e transforma uma questão estrutural da produção, acumulação e circulação da riqueza socialmente produzida em um país de capitalismo tardio e periférico em uma questão moral, privada, individual, em uma questão de caráter.
É ainda autoritário, elitista e messiânico porque a solução do problema passa pela negação do processo político e suas contradições. A Lava Jato apresenta um programa de negação da política, de afirmação de uma tecnocracia burocrática capaz de ser a encarnação da moralidade pública e da eficiência na gestão dos recursos e interesses públicos. Por isso a ideia de criar uma fundação destinada a gerir os recursos recuperados em acordos judiciais envolvendo a Petrobrás nos Estados Unidos, recursos da ordem de 2 bilhões e meio de reais, que seriam administrados diretamente por uma estrutura criada pela Força Tarefa, para os objetos da própria Força Tarefa, dentre os quais estava a “formação e capacitação de novas lideranças”.
É ainda messiânico porque mescla elementos de extremo personalismo com ilusionismo místico de jejuns e orações pela defesa da operação, ou atuação de seus integrantes.
Para alcançar seus objetivos a Lava Jato atua em duas frentes: por um lado, usa os instrumentos jurídicos coercitivos como a prisão e a condução coercitiva para amedrontar, constranger, induzir a produção de testemunhos e obtenção de provas; por outro, mobiliza nas redes sociais seus grupos de pressão sempre que dentro ou fora do judiciário seus interesses são ameaçados. Por isso atua como máfia, que faz do terror, do medo, da violência e da coação um instrumento de ação.
Isto tudo, obviamente gerou tensões dentro do próprio sistema de justiça, nestes primeiros cem dias de governo. Isto porque, se por um lado a atuação da Lava Jato gera um aumento dos poderes persecutórios do sistema de justiça, o que interessa a todos eles; por outro, já se percebe o caráter personalista da força tarefa, os projetos e planos pessoais de poder, o que gera os conflitos que assistimos com o STF e a Procuradoria Geral da República.
Lula é o troféu maior da Lava Jato. Assim como, a prisão de Temer foi uma resposta política as derrotas sofridas dentro do STF e na PGR.
Lula segue e seguirá preso por uma decisão eminentemente política da presidência do STF, que manobra a pauta e os prazos para manter Lula preso. O tema da execução provisória da pena, só será pautado quando houver acordo com as Forças Armadas e nova condenação, desta vez pelo STJ, para que o novo entendimento possa chancelar a execução da pena a partir da condenação em terceira instância.
Até aqui o sistema de justiça negou a Lula o direito à liberdade mesmo que pelo mais mínimo período de tempo. Seja agora, antes do julgamento de seu recurso no STJ, seja mesmo em situações extremas como a morte do irmão e do neto.
Lula é um preso político. É, até aqui, a maior contribuição do judiciário ao golpe de 2016, e aos cem primeiros dias do governo urdido para levar adiante um programa entreguista, privatista e antipopular.
Por isso é uma tarefa política tão importante assumir a luta pela liberdade de Lula, ao mesmo tempo em que lutamos contra a reforma da previdência.
Por tudo isso, nestes primeiros cem dias de governo, é preciso não vacilar em colocar o sistema de justiça na trincheira de classe oposta à nossa.
*Fernando Castelo Branco é professor da Universidade Regional do Cariri – URCA, e advogado.
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