Cem dias de Bolsonaro e suas propostas para a educação

João Zafalão, Richard Araújo e Rosa Araújo, de São Paulo, SP

A educação tem sido um dos principais alvos de ataques do governo Bolsonaro. Para além das polêmicas e revisionismos históricos envolvendo o ex-ministro da educação (desde a carta absurda orientando que gestores filmassem estudantes cantando o Hino Nacional, suas declarações estapafúrdias sobre a índole do povo brasileiro, as idas e vindas em diversas medidas anunciadas ou a troca de quase 20 membros da equipe em três meses à frente da pasta), desde o anúncio da vitória de Bolsonaro, no segundo das eleições presidenciais, seus apoiadores e o próprio presidente deram manifestações públicas de que a educação e, mais precisamente, os educadores seriam um inimigo a ser combatido. A campanha sistemática de desmoralização de professores e professoras, chamados de doutrinadores a serviço do “marxismo cultural”  e o combate a inexistente ”ïdeologia de gênero” são as principais campanhas ideológicas do governo nestes 100 dias desde a posse. Essa campanha que o presidente e seus apoiadores, começando pelo ex-Ministro Ricardo Vélez e que deverá ser mantida pelo recém nomeado Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub (discípulos do “filósofo” Olavo de Carvalho) e toda a turma do Escola Sem Partido, é o que embasou a maior parte das iniciativas e polêmicas envolvendo a área desde o primeiro de janeiro.

No entanto, apesar das declarações de que as metas para tirar “o Brasil das piores posições nos rankings de educação do mundo é combater o lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino”, na verdade esse discurso do governo Bolsonaro busca criar um “espantalho” para confundir a população sobre os verdadeiros motivos que explicam a crise que vive a educação pública no país e o utiliza como cortina de fumaça para avançar em medidas de privatização e cortes de verbas da área,  enquanto tenta a avançar com a imposição de sua ideologia no espaço escolar. Vejamos alguns dos ataques de Bolsonaro à educação:

Reforma do Ensino Médio

É necessário um profundo debate sobre o Ensino Médio no país. Índices apontam os déficits de aprendizagem dos jovens, a parcela da população em idade escolar fora da escola é gigantesca e o abandono de jovens do espaço escolar são dados da realidade. As escolas públicas estão cada vez mais sucateadas e a ausência de recursos educacionais e infraestrutura adequadas para os jovens são outro retrato das décadas de investimentos abaixo do necessário. No entanto, ao contrário de atacar estes problemas, equipando melhor as instituições de ensino público e promovendo ações no sentido de valorização dos trabalhadores em educação, as propostas apresentadas no debate sobre o Ensino Médio no país ignoram estes problemas e apontam no sentido da privatização da educação. Bolsonaro e seu governo dá continuidade a Reforma do Ensino Médio, imposta pelo governo Temer, que reduzirá disciplinas enquanto cria diversos mecanismos de privatização do currículo do Ensino Médio. Pela proposta contida na Reforma, 40% dos conteúdos das áreas de conhecimento (que condensarão uma pequena parte do conteúdo específico de cada disciplina) poderão ser ofertados à distância, chegando a 100% no caso da Educação de Jovens e Adultos. A Reforma também prevê que cursos feitos em instituições de ensino técnico privadas poderiam ser computadas como parte da carga horária total do curso.

Militarização das Escolas

A principal proposta de Bolsonaro para a educação é o aumento das escolas militares, com a criação de 16 novas escolas em todo o país, chegando a um colégio em cada capital até 2020. Além da eficácia questionável deste modelo de escola, a ideia de que os graves problemas da educação no país se resolverão exclusivamente com a imposição da disciplina militar no ambiente escolar não passa de uma solução simplista para problemas complexos. A questão da indisciplina e violência no ambiente escolar é algo que aflige trabalhadores em educação de norte a sul do país, mas a solução para estes problemas exige medidas mais profundas e de um espectro mais amplo, como ficou evidente na ação da PM na semana passada numa escola estadual localizada na Grande São Paulo ou os relatos assustadores de jovens que foram vítimas de todo tipo de abuso ocorridos em Colégios militares de norte a sul do país. Enquanto se cala sobre quais medidas serão adotadas pelo seu governo para resolver às questões referentes aos históricos problemas estruturais nas escolas (laboratórios, equipamentos pedagógicos adequados às necessidades das escolas), redução do número de estudantes por turma, valorização dos trabalhadores em educação e a construção de um ambiente democrático para os estudantes. Medidas muito mais eficazes para que a escola volte a fazer sentido para amplas camadas da juventude brasileira, que não enxergam no ambiente escolar uma saída para seus dilemas e projetos de vida.

Educação Domiciliar 

Outra proposta central do governo Bolsonaro para a educação é a legalização do ensino domiciliar no país. Na palavra de seus defensores, na Educação Escolar (também chamada de Homescholling) “os pais se responsabilizam por todos os aspectos da educação dos filhos: valores, condutas, formação do caráter, questões afetivas e também a instrução formal ou o saber acadêmico… Tudo pode ser oportunidade para aprender. Se você está na cozinha fazendo um bolo, se está na rua, passando em frente um monumento histórico ou se depara com uma passeata, ou ainda num parque observando plantas e pássaros, por exemplo… Basta um simples questionamento e pronto! Uma nova grande oportunidade para aprender sobre a química da fermentação do bolo, a matemática das medidas de massa e capacidade, sobre os movimentos sociais da nossa história, a biologia da nossa fauna e flora. Então, embora chamemos “domiciliar”,  essa modalidade de educação não ocorre apenas no domicílio mas no seio da própria família (no lar, na rua, na vizinhança, em passeios, etc.) ”. De acordo com a Ministra da Família, Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, o governo encaminhará uma proposta de MP para o Congresso autorizando a prática, que em setembro do ano passado foi vetada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão do STF se baseou na interpretação da maioria dos ministros de que tal prática só poderia tornar-se válida no país “se aprovada uma lei que permita avaliar não só o aprendizado, mas também a socialização do estudante educado em casa”, enquanto dois ministros, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, compreenderam que a legislação em vigor desde 1988 não permite tal prática. A opinião de que a prática da educação domiciliar fere um direito constitucional, inclusive, foi compartilhada por especialistas em declarações dadas em entrevista à Carta Capital, pois, nas palavras de Daniel Cara: “A convivência com alunos e professores nas escolas é fundamental pedagogicamente e compreende o direito à educação, que vai muito além da mera instrução”.

Um outro aspecto deste debate, que também não pode ser perdido de vista, é que o avanço destas propostas visa destruir a concepção de educação como direito e, mais uma vez se apoiando no discurso ideológico da “doutrinação ideológica” nas escolas, “expandir o mercado educacional e sua oferta de produtos e serviços”, ou seja, uma proposta a serviço da privatização da educação.

Lava Jato da Educação

Uma outra medida anunciada pelo governo Bolsonaro seria a criação da “Operação Lava Jato na Educação”, de acordo com o presidente: “Há algo de muito errado acontecendo: as prioridades a serem ensinadas e os recursos aplicados. Para investigar isso, o Ministério da Educação junto com o Ministério da Justiça, Polícia Federal, Advocacia e Controladoria-Geral da União, criaram a Lava Jato da Educação ”. Segundo Bolsonaro a medida se justificaria porque o “Brasil gasta mais em educação em relação ao PIB [Produto Interno Bruto]  do que a média de países desenvolvidos. Em 2003, o MEC [Ministério da Educação] gastava cerca de R$  30 bilhões em educação e em 2016, gastando quatro vezes mais, chegando a cerca de R$ 130 bilhões, ocupa as últimas posições no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa)”. Uma afirmação que procura pautar que o grande problema da educação não passa pelo debate do investimento, mas, ao contrário, pelos “indícios muito fortes que a máquina está sendo usada para a manutenção de algo que não interessa ao Brasil”. Para coroar o conjunto de insinuações infundadas e levianas, o presidente ainda buscou levantar suspeitas sobre a luta do movimento de educação que nas últimas décadas sempre se inicia no mês de março.

A grande questão por trás das insinuações levianas e da criação desta medida, mais uma vez é a cruzada ideológica contra a mentirosa “doutrinação ideológica” que o presidente insiste em afirmar que está em curso no país como o resultado da ação do “marxismo cultural” que teria penetrado todo o sistema educacional brasileiro desde a educação básica até seu centro de elaboração que seriam as universidades públicas do país. Para combater a “ameaça comunista”, que já teria se infiltrado na educação brasileira, nada melhor que se utilizar da arquitetura montada pelo super-ministro da Justiça, o senhor Sérgio Moro, que com a Operação Lava Jato, deu um salto de qualidade nas arbitrariedades, que sempre marcaram a justiça burguesa no país, e que agora contam com o apoio de uma parcela da população que ainda não conseguiu perceber que a teoria do “domínio do fato” e condenações baseada em convicções e não em provas são profundos atentados às liberdades democráticas e estão a serviço da perseguição política e da restrição das poucas garantias democráticas que, mesmo formalmente na maior parte dos casos, conseguimos conquistar na luta contra a ditadura militar na década de 1980.

Seguindo os passos do golpe que o levou ao governo, Bolsonaro pretende se apoiar nessa suposta investigação sobre esses “indícios fortes” da “utilização da “máquina” para colocar em movimento seu projeto de privatização do ensino em todos os níveis e, particularmente do Ensino Superior, para impor a perseguição aos trabalhadores em educação, que historicamente cumprem o papel de vanguarda na resistência aos ataques à educação no país e na defesa de nossos direitos, como ficou evidente nas mobilizações de 2017 que derrotaram a reforma da previdência de Temer.

A manutenção da política de ajuste fiscal: o pano de fundo dos ataques de Bolsonaro

Na verdade os ataques ideológicos contra a educação que marcam estes 100 dias de governo servem como uma cortina de fumaça de Bolsonaro para confundir os trabalhadores e justificar sua política educacional que se apoia nos pilares do ajuste fiscal aprovado pelo governo golpista de Temer em 2016, com a aprovação da Emenda Constitucional 95 que congelou por 20 anos as verbas da educação (medida que contou com o apoio do então deputado Jair Bolsonaro).

O compromisso de Bolsonaro com a agenda do capital financeiro, que promoveu e incentivou o golpe parlamentar, para impor um patamar de saque das riquezas nacionais e dos recursos do orçamento do país através do pagamento dos juros e serviços da dívida pública, impede o governo de resolver os problemas históricos da educação brasileira. Como diz o ditado popular, “não se pode fazer omeletes sem quebrar os ovos” e no caso da educação, não há como resolver questões como a falta de infraestrutura adequadas e recursos pedagógicos e tecnológicos nas escolas ou as defasagens salariais dos trabalhadores em educação mantendo a lógica de que quase 45% do orçamento seja entregue para os banqueiros contra menos de 4% para a educação.

A comparação dos “gastos na educação”no Brasil com “média de países desenvolvidos” é um argumento frágil porque desconsidera a profunda desigualdade social no país, que também se expressa no direito ao acesso e permanência na vida acadêmica em todos os níveis. A própria utilização da palavra “gasto” no lugar de “investimento” diz muito sobre a concepção que guia as ações de Bolsonaro neste tema.

A política educacional até aqui aplicada por Bolsonaro e seus aliados, que será mantida com o novo ministro da educação, coloca a tarefa urgente de se construir um amplo e unitário movimento em defesa da educação pública. Não é demais lembrar que quem precisa da educação pública são os filhos e filhas da classe trabalhadora e das camadas mais empobrecidas da população brasileira devido ao verdadeiro “apartheid educacional”, que décadas de governos neoliberais construíram e que o projeto dos governos petistas foi incapaz de reverter profundamente. Por isso a tarefa de defender esse direito deve ser abraçada sob essa perspectiva de classe, pois é à classe trabalhadora que está colocada a tarefa de garantir o direito democrático de nossa juventude a uma escola pública, gratuita, laica e de qualidade, pois para os detentores e defensores do capital a educação não passa de uma mercadoria ou fonte de manutenção de seus lucros.