Bolsonaro e as milícias

Lia de Mattos Rocha

No dia 12 de Março assistimos, perplexos ou cínicos, a Polícia Civil e o Ministério Público apresentarem o policial militar reformado Ronnie Lessa e policial militar expulso da corporação Elcio Vieira de Queiroz como os assassinos da vereadora do PSOL Marielle Franco[1]. Mas esse não era o fim da história: a imprensa questionou os agentes de segurança sobre as relações entre Lessa e a família Bolsonaro: o filho do presidente que namorou a filha de Lessa, o fato de Lessa e Bolsonaro serem vizinhos de rua no mesmo condomínio da Barra; etc. E, no registro da naturalização da barbárie que temos assistido desde a posse de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, tais fatos foram considerados coincidências e sem relação com o crime[2]. Chama atenção que tais conexões entre a família do presidente e os assassinos de uma vereadora cuja execução é assunto internacional seja considerado “sem relação com o crime”, sobretudo porque não foram apresentados os mandantes do crime, apenas seus executores. Em video, Gleen Greenwald expressou para o público estrangeiro a indignação que tais informações deveriam causar[3]. Neste pequeno artigo procuro, portanto, refletir porque a aproximação da Família Bolsonaro com as milícias é algo que não nos assusta, indigna ou escandaliza.

Em janeiro, havíamos recebido, entre perplexos e desesperançados, a noticia de que enquanto era Deputado Estadual Flavio Bolsonaro empregou em seu gabinete a mulher e a mãe de um miliciano líder da quadrilha conhecida como “Escritório do Crime”, investigada por envolvimento na execução de Marielle e Anderson Gomes. De novo, numa naturalização da bizarrice, o agora senador pelo Rio de Janeiro afirmou que não estava ciente dessas contratações, que seriam responsabilidade de seu assessor, o ex-policial militar Fabrício Queiroz. Queiroz também levou a culpa como “laranja” de Flavio Bolsonaro[4]. Ele está foragido desde que o caso veio à tona, e segundo testemunhas foi se esconder em Rio das Pedras, localidade identificada como quartel-general do Escritório do Crime[5]. Enquanto isso, o senador também não está sendo investigado porque requisitou seu foro privilegiado.[6]

Tais conexões da família Bolsonaro com milicianos são, ao mesmo tempo, uma surpresa – em termos de sua profundidade e duração – mas também uma obviedade (e por isso oscilamos entre a perplexidade e o cinismo do “eu avisei”). Todos os sentimentos e medos que Bolsonaro e sua trupe mobilizam na população brasileira – e que com suas especificidades perpassam diferentes classes, idades, sexos, cores, pertencimentos regionais, religiosos etc. – compõem também o caldo social que legitima e apoia a atuação das milícias.

Como já publiquei aqui anteriormente, as milícias são grupos armados poderosos, que se caracterizam por: i) dominar territórios, ii) coagir moradores e comerciantes em busca de ganhos econômicos, iii) buscar legitimação social através do discurso de “combater o tráfico de drogas” e, iV) contar com a participação de agentes armados do Estado[7]. O que interessa destacar neste momento é a dimensão da legitimação social das milícias. Pesquisas sobre o tema[8] mostraram que os discursos legitimadores da milícia, desde seu surgimento, construíam tais grupos armados como oposição ao tráfico de drogas. Oposição neste contexto refere-se sobretudo a uma oposição moral. Enquanto os traficantes de drogas e seu comércio varejista são identificados como caóticos, desorganizados, fomentadores de comportamentos desviantes como o uso de drogas e o sexo promíscuo impulsionados pelos assustadores bailes funk, a milícia se apresenta como apta a impor a ordem, reprimir comportamentos desviantes, acabar com o caos e combater o crime.

Por conta dessas supostas qualidades experimentamos no Rio de Janeiro enorme apoio social às milícias, inclusive por parte de figuras públicas (como também já discuti anteriormente)[9]. Como é sabido, as milícias são continuações dos grupos de extermínio que atuavam na Baixada Fluminense desde os anos 1960.ALVES, 2008)[10]. Segundo o autor, os grupos formados por policiais e também empresários locais seriam responsáveis por “uma das mais poderosas estruturas de execução sumária do mundo contemporâneo” (ALVES 2008, pp. 33). Tal estrutura foi marcada sobretudo por sua letalidade, atingindo a absurda marca de quase três mil assassinatos por ano – o que significa uma taxa de 70 homicídios a cada 100 mil habitantes. Quando se apoia as milícias sabe-se que se está promovendo, no limite, o extermínio de pessoas. Isso não é segredo, pelo contrário; é parte da propaganda.

Tal apoio não foi diferente com a Família Bolsonaro. Após a denúncia das conexões entre o presidente/seus filhos e os milicianos pipocaram na imprensa seus antigos discursos de defesa das milícias, bem como as homenagens feitas através de medalhas e condecorações a milicianos. Cabe destacar que tais defesas acionam as dimensões apresentadas acima, como quando Flávio Bolsonaro afirma:

“Sempre que ouço relatos de pessoas que residem nessas comunidades, supostamente dominadas por milicianos, não raro é constatada a felicidade dessas pessoas que antes tinham que se submeter à escravidão, a uma imposição hedionda por parte dos traficantes e que agora pelo menos dispõem dessa garantia, desse direito constitucional, que é a segurança pública” [11].

Tais representações (das favelas como o inferno e da milícia como a salvação) estão profundamente enraizadas nos estigmas e no racismo que caracterizam as relações entre as classes no Brasil. Tudo que é identificado como “de preto” ou “de favelado” é visto como algo a ser controlado, disciplinado, tutelado, “pacificado”. Tal representação é encontrada mesmo entre os que são identificados como pertencentes a essas categorias. E dentro desse projeto de disciplinarização e tutela da “selvagem” classe trabalhadora as Forças Armadas e as Polícias Militares são personagens centrais, pois é através do controle coercitivo exercido por essas instituições que tal disciplina é cotidianamente imposta. Assim, Forças Armadas e Polícias Militares precisam apresentar-se (e serem reconhecidas) como moralmente superiores, detentoras de uma moral e disciplina exemplares, mais competentes e capazes do que os “políticos” e os “civis”, e, sobretudo, incorruptíveis, o que lhes permite se postularem (e serem postuladas) como as defensoras do “bem comum” e do “interesse geral” (ou seja, diferente dos partidos e outros atores políticos que defendem interesses de parte da sociedade).

Essa é a representação das Forças Armadas desde seu surgimento, acionada nos momentos em que intervieram na história do país – seja em 1889, em 1964 ou hoje[12]. E é nessa representação que Bolsonaro – capitão militar da reserva e ex-paraquedista – navega, tanto na sua autorrepresentação, quanto na montagem de um governo onde os militares desempenham importante papel. Desde seu vice – o General da reserva do Exército Brasileiro Antônio Hamilton Martins Mourão – aos “45 militares espalhados em 21 áreas do governo[13]” (“o maior número desde 1964”, segundo o Estadão[14])[15]. Por último, mas não menos importante, segundo pesquisa do Data Folha de Junho de 2018 as Forças Armadas são a instituição em que os brasileiros “mais confiam” (78% dos entrevistados disseram confiar “muito” ou “um pouco”’) – ao contrário dos partidos políticos, nos quais 68% dos entrevistados afirmaram não confiar[16].

Contudo, como mencionado acima, parte fundamental dessa confiança repousa na crença das Forças Armadas como competentes, disciplinadas, incorruptíveis e defensoras do “bem comum”. E os cem primeiros dias do governo Bolsonaro podem ser chamados de qualquer coisa, menos de competentes, disciplinados e ordeiros.. E ainda que as conexões do governo com as milícias não tenham causado a indignação que merecem, tiveram efeitos desgastantes na sua imagem. Tal desgaste, junto com as outras dificuldades que Bolsonaro tem enfrentado, podem abalar sua força e sua autoridade. Neste caso, dentre os cenários possíveis que se delineiam, sua deposição em prol do General Mourão apresenta-se como possível. No último dia 26 de Março o vice-presidente foi a um encontro na sede da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) que reuniu em torno de 700 empresários paulistas[17]. Em seguida, participou de jantar na casa de Paulo Skaf, presidente da Fiesp, em um evento cuja “lista de convidados soma R$ 1 trilhão de patrimônio”[18].

O que, então, torna o cenário de Mourão presidente através do impeachment de Bolsonaro um cenário possível, mas ainda não provável? Sobre essas questões precisamos também nos debruçar. Uma interpretação possível (mas parcial) seria que Mourão pode não contar com o apoio dos militares para tal. Não por que esses sejam contra golpes (contém ironia), mas porque não desejam protagonizar mais um momento de instabilidade política no país. Quando os militares são instigados a agir fora de sua “área de conforto” – mesmo no caso de ocupações militares como as da Maré e da Providência, ou na repressão aos protestos de 2013 e durante os megaeventos – tais eventos são vistos como testes, que podem valorizar sua importância (e dessa forma auxiliar na obtenção de mais recursos) ou, da mesma forma, desmoralizá-los. E como vimos a imagem das Forças Armadas é seu principal capital. Arriscá-lo não é uma decisão trivial.

Para além da análise sobre a conjuntura próxima, busquei neste pequeno artigo discutir como o “militarismo” é parte constitutiva de nosso projeto de “ordem e progresso” – compondo a base de legitimidade tanto das milícias quanto deste governo (e de outros). Se Bolsonaro continuará a personificar tais valores é algo a se acompanhar. As denúncias que conectam as milícias ao crime violento (e que é entendido pelo senso comum como crime), como o tráfico de armas, e à corrupção (como no caso do Queiroz), têm se mostrado uma eficiente forma de desacreditá-lo.

[1] OTÁVIO, Chico, ARAÚJO, Vera & LEAL, Arthur. PM e ex-PM são presos pelo assassinato de Marielle Franco. Rio. 12 de Março de 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/pm-ex-pm-sao-presos-pelo-assassinato-de-marielle-franco-23514865?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[2] Revista Exame. MP-RJ: Até agora, é coincidência suspeito ser vizinho de Bolsonaro. Brasil. 12 de Março de 2019. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/mp-rj-ate-agora-e-coincidencia-suspeito-ser-vizinho-de-bolsonaro/>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[3] GREENWALD, Glenn. As ligações de Bolsonaro com o que há de pior do crime organizado. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=uN1rYIj6GuI>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[4] COSTA, Machado & CAMPOS, João Pedroso de. Sete assessores de Flávio Bolsonaro fizeram depósitos para ex-motorista. Veja. Política. 09 de Janeiro de 2019. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/sete-assessores-de-flavio-bolsonaro-fizeram-depositos-para-ex-motorista/>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[5] ALESSI, Gil. O elo entre Flávio Bolsonaro e a milícia investigada pela morte de Marielle. El País Brasil. 22 de Janeiro de 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/22/politica/1548165508_401944.html>. Acessado em: <01 de fevereiro de 2019>.

[6] ALESSI, Gil. Flavio Bolsonaro vai a STF por foro privilegiado e eleva temperatura da crise Queiroz. El País Brasil. 18 de Janeiro de 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/17/politica/1547754056_100066.html>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[7] ROCHA, Lia de Mattos. Sobre militarização, milícias e o atentado contra Marielle Franco. Esquerda Online, 08 de Janeiro de 2019. Disponível em:<https://esquerdaonline.com.br/2019/01/08/sobre-militarizacao-milicias-e-o-atentado-contra-marielle-franco/>. Acessado em: <01 de fevereiro de 2019>.

[8] Refiro-me principalmente às pesquisas de Cano & Ioot (2008) e Cano & Duarte (2012). CANO, Ignacio, e IOTT, Carolina. “Seis por meia dúzia.” In: Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll (2008). CANO, Ignacio & DUARTE, Thais. No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ), 2012.

[9] Rocha, Ibid.

[10] ALVES, José Claudio Souza. Milícias: mudanças na economia política do crime no Rio de Janeiro. In: JUSTIÇA GLOBAL (eds). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Justiça Global, Fundação Heinrich Böll, 2008, pp. 33-6.

[11] Citação retirada da excelente reportagem de Cecília Oliveira para The Intercept. OLIVEIRA, Cecília. As ligações de Bolsonaro com as milícias. The Intercept. Brasil. 22 de Janeiro de 2019. Disponível em: <https://theintercept.com/2019/01/22/bolsonaros-milicias/>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[12] O “militarismo” – que seria essa valorização de tudo que se relaciona às Forças Armadas – não é exclusividade brasileira. Sobre o assunto ver Lutz (2002) e o dossiê sobre “Culturas do Militarismo” publicada recentemente na Current Anthropology (GUSTERSON & BESTEMAN, 2019). GUSTERSON, Hugh; BESTEMAN, Catherine (org). Cultures of Militarism. Supplement 19. Current Anthropology, v. 60, n. S19, 2019. LUTZ, Catherine. Making war at home in the United States: Militarization and the current crisis. American Anthropologist, v. 104, n. 3, p. 723-735, 2002.

[13] VALENTE, Rubens. Militares já se espalham por 21 áreas do governo Bolsonaro, de banco estatal à Educação. Membros das Forças Armadas obtêm relevância inédita desde a redemocratização e vão administrar orçamentos bilionários. Folha de São Paulo. Governo Bolsonaro. 20 de Janeiro de 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/militares-ja-se-espalham-por-21-areas-do-governo-bolsonaro-de-banco-estatal-a-educacao.shtml>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[14] ASSAM, Ana Beatriz; HOLANDA, Marianna & GODOY, Marcelo. Governo de Bolsonaro terá mais militares do que em 1964. Bolsonaro indicou um número expressivo de militares para quase todas as vagas ligadas a infraestrutura, o que também ocorreu durante o regime militar. O Estado de S.Paulo. 16 de Dezembro de 2018. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,numero-de-militares-no-1-escalao-e-o-maior-desde-1964,70002647839>. Acessado em: <06 de fevereiro de 2018>.

[15] É importante mencionar que cinco ex-comandantes da Missão de Paz que o Brasil realizou no Haiti (a Minustah) hoje estão ocupando cargos estratégicos no governo – o mais conhecido deles sendo o General Augusto Heleno, que comanda o Gabinete de Segurança Institucional e foi o primeiro comandante da Minustah, entre 2004 e 2005. Sobre isso ver: TAVARES, Joelmir. Militares que atuaram no Haiti ganham destaque no governo Bolsonaro. Folha de São Paulo. Governo Bolsonaro. 30 de Novembro de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/militares-que-atuaram-no-haiti-ganham-destaque-no-governo-bolsonaro.shtml>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[16] DATAFOLHA. Partidos, Congresso e Presidência são instituições menos confiáveis do país. Grau de Confiança nas Instituições. Pesquisa realizada entre 06 e 07 de Junho de 2018. Disponível em: <https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2018/06/1971972-partidos-congresso-e-presidencia-sao-instituicoes-menos-confiaveis-do-pais.shtml>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[17] VIEIRA, André Guilherme. Mourão se encontra com empresários em jantar na casa de Paulo Skaf. Valor Econômico. 26 de Março de 2019. Disponível em: <https://www.valor.com.br/politica/6182461/mourao-se-encontra-com-empresarios-em-jantar-na-casa-de-paulo-skaf>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.

[18] LIMA, Daniela. Crise política faz interesse sobre Mourão crescer no empresariado. Folha de São Paulo. Painel. 26 de Março de 2019. Disponível em: <https://painel.blogfolha.uol.com.br/2019/03/25/crise-politica-faz-interesse-sobre-mourao-crescer-no-empresariado/>. Acessado em: <05 de Abril de 2019>.