[Aviso de gatilho: violência e assassinato]
Mero simples engano.
Só pode ser bandido.
Um preto em carro branco?
Só pode ser bandido!
Um engano bem rápido,
não deu tempo dum pisco,
não pensaram direito,
puxaram o gatilho.
A bala um furou o carro,
a bala dois furou o carro,
a bala três furou o carro,
mas não deu tempo pra pensar.
A bala quatro o atingiu,
a bala cinco o atingiu,
a bala seis o atingiu,
mas quem liga pra bandido?
A bala sete perfurou,
a bala oito perfurou,
a bala nove perfurou,
é só mais um Amarildo!
Melava todo o carro
já o sangue escorrido,
sangue vermelho vivo:
é o sangue de qualquer bandido.
Um preto em carro branco
só pode ser bandido.
Um preto em carro branco
merece ser banido.
Soldado exemplar
dispara a bala dez,
continue a atirar
pra matar o revés!
Soldado exemplar
dispara a bala vinte
com muita atenção,
atira com requinte!
Soldado exemplar
dispara a bala trinta,
tão atento ao trabalho,
não ouve a criança que grita!
Quarenta ou cinquenta
não consegue contar,
sabe lá quantas foram,
só sabe atirar!
Será que já está morto?
Será que morto está?
Ah, não dá pra saber,
só dá para atirar!
O sangue já secava,
mulher paralisada,
lataria furada
e o soldado atirava.
Sem balas, um soldado
parou para pensar:
“Com o carro furado
o dono branco vai reclamar!
Mas que pena, infortúnio,
não eram assaltantes,
eram pai, mãe e avô
e uma criança órfã.
Essas coisas acontecem,
não é culpa de ninguém,
pois é preto em carro branco,
só pode estar no lugar de alguém!
E ninguém vai se importar,
algum mal há de ter feito,
afinal, ele é um preto.
Direitos humanos pra humanos direitos.”
E um soldado exemplar
escreveu o relatório
com um honesto desdém,
sem fazer qualquer velório:
“Ao avistarem a patrulha, os dois criminosos, que estavam a bordo de um veículo, atiraram contra os militares, que por sua vez responderam à injusta agressão”.
Injusta agressão.
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