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BRASIL

Quem julga os senhores da guerra?

Marcio Castilho*, do Rio de Janeiro, RJ
Fernando Frazão/Agência Brasil

Militares fazem operação na favela da Rocinha, durante intervenção

Em novembro de 2017, sete pessoas foram assassinadas durante um baile funk no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. As investigações apontaram para o envolvimento de 17 soldados do exército no episódio, conhecido como a Chacina do Salgueiro. No entanto, o Comando Militar do Leste (CML) não atendeu, reiteradas vezes, à solicitação do Ministério Público Estadual de apresentá-los para depor.

O fuzilamento do carro em que estava o músico Evaldo dos Santos Rosa, em Guadalupe, na Zona Oeste do Rio, é o capítulo mais recente da tragédia do estado de exceção em que estamos mergulhados. O Estado que, por meio de seu aparato repressivo, produz cotidianamente “vidas nuas” ou, como diria Agamben, “vidas que podem ser mortas sem que se cometa homicídio”. Mais de 80 tiros, segundo perícia realizada pela Polícia Civil. Outras quatro pessoas estavam no carro, incluindo a mulher e o filho de 7 anos de Evaldo. Todos seguiam para um chá de bebê.

Nenhum outro país que tenha passado por ditadura vivenciou uma transição tão prolongada e controlada pelos militares. Da abertura de Geisel (1974) ao primeiro presidente eleito pelo voto (1989) transcorreram-se 15 anos. Neste processo de transição “lenta, gradual e segura”, culminando na proposta de conciliação da anistia (1979), ficou assegurado que nenhum militar seria julgado por violação de direitos humanos, ao contrário de países como Argentina e Chile.

No texto “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição Brasileira de 1988”, Jorge Zaveruscha, cientista político e coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostra como a estrutura política no Brasil é extremamente militarizada e constitucional: a constituição de 1988, a despeito dos avanços na área social, não avançou em estabelecer outros níveis de relação entre militares e civis.

O autor reflete sobre como a Carta confere verniz democrático a um poder quase ilimitado dos militares. O artigo 142, da garantia da lei e da ordem, suspende o ordenamento jurídico sem que as Forças Armadas precisem prestar contas à qualquer outra instância de poder. Esse é o dispositivo capaz de acionar um golpe de estado avalizado pela própria Constituição, mas não é o único a confirmar o militarismo como “fenômeno amplo, regularizado e socialmente aceito no Brasil”.

Mesmo após a redemocratização, civis acusados de crimes de desacato e desobediência contra militares são levados à Justiça Militar, conforme dispõe o artigo 9º do Código Penal Militar. Uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 289, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2013 para que seja declarada sua inconstitucionalidade.

Na outra ponta, se houver crimes dolosos praticados por integrantes das Forças Armadas, como o caso da Chacina do Salgueiro ou da execução de Evaldo, estes também só podem ser julgados por corte militar. É o que estabelece a Lei 13.491, promulgada pelo então presidente Michel Temer em outubro de 2017, o mesmo que decretou em 2018 intervenção federal na segurança pública do Estado. A lei 13.491/17 causa sérias restrições para atuação de órgãos de investigação civis, como a Delegacia de Homicídios e o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) do Ministério Público do Estado.

Zaveruscha observa que a Carta de 1988 manteve as polícias militares nos estados como forças auxiliares do Exército (pratica comum em regimes totalitários). A militarização de nossas polícias se complementa com o caráter policial assumido pelas tropas militares federais nos estados. Na ausência do inimigo externo (a última guerra, a do Paraguai, data do século XIX), todos os fuzis, nesse processo, voltam-se para os concidadãos. O autor destaca que são dez menções à expressão “guerra” na Constituição contra uma única referência à palavra “conflito”, fazendo prevalecer a concepção de defesa do Estado sobre a defesa do cidadão.

Todo esse conjunto de informações revela como os militares nunca deixaram de ser “atores políticos relevantes” no jogo político. No contexto atual sobretudo, com o controle de posições estratégicas no aparelho do Estado. Zaverucha conclui que “dizer que a democracia brasileira está consolidada é um típico caso de desejo de que algo se torne realidade, pelo simples desejo”.

Estamos numa situação-limite na qual não temos o direito de silenciarmos diante do discurso e de ações fascistas no Rio de Janeiro e no Brasil. A banalização do mal é um retrocesso profundo na caminhada civilizatória. Se mergulharmos nesse abismo, poderemos levar muito tempo para retomarmos o processo democrático. Da última vez foram 21 anos. Nenhum passo a menos diante de qualquer episódio decorrente de uma política que privilegia snipers, caveirões da terra e do ar, helicópteros como plataforma de tiro sobre favelas ou licença para matar sob a alegação de “forte emoção”, como pretende o ministro Sergio Moro. O silêncio da sociedade civil nesse momento também significa aplauso da barbárie. Não nos transformemos em “senhores da guerra”. Humanizemo-nos.

 

* Marcio Castilho é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói.