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BRASIL

Por que a extrema-direita brasileira ama a Idade Média Europeia?

Paulo Pachá*, de Campos dos Goytacazes, RJ

 

No dia da posse de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, Filipe Martins – um blogueiro próximo à família Bolsonaro – postou no Twitter comemorando a vitória eleitoral: “A nova era chegou. É tudo nosso! Deus vult!

Leitores poderiam achar estranho que “Deus vult” – “Deus quer” em latim, um grito de guerra medieval associado com a Primeira Cruzada – esteja reaparecendo no Brasil do século XXI. Nos últimos anos, a exortação “Deus vult” foi apropriada pela extrema-direita na Europa e nos Estados Unidos, e agora virou um slogan também para a extrema-direita no Brasil. De fato, Martins já tinha estabelecido um vínculo direto entre esse slogan e as Cruzadas em um tweet anterior (no dia do segundo turno das eleições presidenciais): “Está decretada a nova cruzada. Deus vult!“. Em 3 de janeiro, Bolsonaro nomeou Martins como Assessor Especial da Presidência para Assuntos Internacionais.

No Brasil de Bolsonaro, o novo governo e grupos de extrema-direita estão propagandeando uma versão ficcional da Idade Média europeia, insistindo que o período era uniformemente branco, patriarcal a cristão. Esse revisionismo reacionário apresenta o Brasil como o maior feito de Portugal, enfatizando uma continuidade histórica que estabelece os brasileiros brancos como os verdadeiros herdeiros da Europa. Dessa forma, através de uma visão genética da história, a extrema-direita enquadra a história brasileira como essencialmente vinculada a um passado português medieval e imaginariamente puro.

A forma mais comum de expressar essa associação entre Brasil e Portugal é proclamar uma suposta “tradição judaico-cristã” como o principal pilar da cultura brasileira. Tal retórica serve para indicar que o Brasil seria uma nação cristã e, como resultado, parte orgulhosa da civilização ocidental. Trata-se de uma narrativa histórica que tem sido incentivada pelo Estado brasileiro pelo menos desde o século XIX. Portanto, afirmar os vínculos identitários do Brasil com a Idade Média europeia significa afirmar também um conjunto antigo e bastante específico de projetos políticos conservadores.

Em seu discurso de posse, Bolsonaro prometeu “unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores“. A referência de Bolsonaro à suposta tradição judaico-cristã do Brasil também foi um elemento comum dos seus discursos de campanha. Em setembro, durante um comício em Campina Grande, Bolsonaro disse aos seus apoiadores: “Como somos um país cristão, Deus acima de tudo!”. No mesmo discurso, completou: “Não tem mais essa historinha de Estado laico, não! É Estado cristão!” Por fim, o slogan de campanha de Bolsonaro era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” – adicionando um tom religioso ao slogan nazista Deutschland über alles.

A centralidade da ideia de uma tradição judaico-cristã é frequente entre os grupos da extrema-direita brasileira. Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre (MBL) e deputado federal eleito em 2018, destacou a mesma ideia em uma entrevista de 2017: “O que a gente fala em nossos vídeos é sobre os pilares da civilização ocidental, que basicamente são a filosofia grega, o direito romano e a religiosidade judaico-cristã.”

Essas ideias também tem penetração social entre os eleitores de direita e a população em geral no Brasil. Um documentário de 2017 chamado ‘Brasil: A Última Cruzada” foi produzido e lançado no YouTube por uma organização de extrema-direita chamada “Brasil Paralelo”. O canal conta com mais de 700 mil inscritos e o documentário tem mais de 1,5 milhões de visualizações. O primeiro episódio do documentário, “A Cruz e a Espada”, apresenta uma breve história da civilização ocidental durante a Idade Média. Marcado pela islamofobia, o episódio enquadra a conquista árabe da Península Ibérica e as Cruzadas, destacando o papel dos Templários na história europeia e portuguesa, inclusive na assim chamada “Reconquista” e na expansão marítima. Os realizadores enfatizam como a conquista portuguesa da América e a dominação colonial estabeleceram a herança europeia como a essência profunda do Brasil, vinculando a futura nação com o legado da Idade Média europeia.

Na verdade, a ideia de civilização ocidental é uma construção política recente e feita para legitimar processos históricos e políticos específicos, entre eles o imperialismo e o colonialismo. Ao retratar a Idade Média europeia como o verdadeiro passado da nação, a extrema-direita brasileira embranquece a história do país e minimiza a crueldade da prática política atual, especialmente (mas não apenas) a persistência do racismo, misoginia, homofobia e intolerância religiosa.

O racismo é um elemento estrutural da sociedade brasileira. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888. Em 2017, 70% das vítimas de assassinatos eram negras. Mais de 60% da população carcerária no Brasil é composta por negros. De forma semelhante, violência de gênero e misoginia são elementos centrais do cotidiano brasileiro: o Brasil é o quinto país do mundo em número de mortes violentas de mulheres. Além disso, o Brasil é um dos países mais perigosos para pessoas LGBT, com inúmeros casos de homofobia todos os anos. Por fim, a intolerância religiosa tem crescido nas últimas décadas. A maior parte da população brasileira se identifica como cristã (em especial católica e evangélica), mas existe uma imensa diversidade religiosa no país. Os adeptos de religiões de matriz africana são os principais alvos de atos de intolerância.

Em meio a esse contexto, o Brasil fornece um solo fértil para uma versão imaginada da Idade Média Europeia que a extrema-direita apresenta como branca, patriacal e cristã. Ao enfatizar a relação entre o Brasil e Portugal, a extrema-direita apaga a importância dos povos indígenas e africanos na história do Brasil e ignora as suas contribuições sociais, culturais e econômicas. Nesse passado imaginário, Portugal não aparece como um poder colonial distante, mas como a “pátria mãe” que presenteou os brasileiros com uma cultura e uma língua europeias. Gilberto Freyre notoriamente desenvolveu o mito da democracia racial no Brasil: a coexistência pacífica das “três raças”. Na versão da história construída pela extrema-direita, estamos de volta a uma visão ante-Freyriana: um resplandescente passado branco para o Brasil.

Contudo, o objetivo dos demagogos que se apropriaram da Idade Média europeia dessa forma não é apenas reconstruir o passado. Como os historiadores sabem, presente e passado estão unidos; reescrever a história do Brasil significa promover um projeto específico para o seu futuro. Como Bolsonaro disse durante seu comício em Campina Grande: “Vamos fazer um Brasil para as maiorias! As minorias têm que se curvar às maiorias! A lei deve existir para defender as maiorias! As minorias se adéquam ou simplesmente desapareçam!”

A plataforma política de Bolsonaro é a construção de um país no qual o cristianismo conservador desfruta de um domínio incontestável, a família patriarcal é o lugar do autoritarismo doméstico, e o racismo, homofobia, misoginia e intolerância religiosa são inerentes à vida cotidiana. Para cumprir suas promessas de campanha, o governo Bolsonaro já acabou com políticas públicas importantes que ofereciam proteção a grupos marginalizados. A melhor forma de descrever o governo Bolsonaro é como reacionário: um reação agressiva e conservadora às tímidas conquistas progressistas que o Brasil realizou nas últimas décadas.

Ao examinarmos a importância da ideia de uma Idade Média europeia pura e branca para a extrema-direita brasileira, podemos vislumbrar alguns princípios fundamentais que orientam esse governo e o movimento social que o sustenta. Dessa forma, é importante enfatizar que a extrema-direita brasileira não deseja “tornar o Brasil medieval de novo” mas, ao contrário, evoca um conjunto de ideias sobre a Idade Média europeia como um passado idealizado que fornece elementos para a construção de futuro nobre.

A abuso da ideia de Idade Média pela extrema-direita é um problema global, com casos específicos nos EUA e na Europa Ocidental. Os pretensos cruzados brasileiros sabem disso. Após a vitória de Bolsonaro no primeiro turno da eleições, Filipe Martins foi entrevistado por Paul Joseph Watson, um youtuber conservador inglês. De forma semelhante, em 2018, tanto Martins quanto Eduardo Bolsonaro (o filho do presidente) estiveram em contato com Steve Bannon, uma das figuras mais importantes da extrema-direita dos EUA. Eduardo Bolsonaro até propagandeou que ele e Bannon estavam “unindo forças, especialmente contra o marxismo cultural”.

Existe muito trabalho para ser feito no Brasil, mas também globalmente e através da academia. Tanto no ensino quanto na pesquisa, medievalistas precisam enfrentar a extrema-direita e desconstruir esses mitos. A nova Idade Média “global” – fundada em um olhar para além da Europa Ocidental e englobando as verdadeiras complexidades de um mundo multiétnico, polireligioso e com sujeitos históricos de gêneros diversos – precisará enfrentar a supremacia branca global.

 

*Paulo Pachá é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Campos dos Goytacazes.

Texto originalmente publicado aqui

Marcado como:
extrema direita