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MUNDO

O Direito e as Guerras – Parte 3

Bruno Figueiredo*, de São Paulo, SP
ONU/Logan Abassi

Soldados brasileiros fazem operação em Porto Príncipe, pela MINUSTAH (2008).

O presente artigo é o terceiro e último de uma série de três artigos. No primeiro artigo desenvolveu-se uma análise sobre o Direito Internacional, no segundo uma análise da materialização do Direito, portanto, avaliar a guerra em si. Neste artigo pretende-se analisar as guerras sob a ótica do Direito Brasileiro.

Como o Direito brasileiro encara a guerra?

Na primeira parte deste artigo foi abordada uma análise sobre o Direito Internacional. Na segunda parte foi elaborada uma análise das possibilidades de um cenário de guerra. Nesta terceira parte chegamos agora à uma análise sobre como o Direito Brasileiro encara a hipótese de uma guerra.

A análise do Direito tem várias limitações, posto que o Direito, em geral é um “dever ser”, que entretanto, muitas vezes não é de fato. Ou seja, entre a formalidade jurídica e a materialização do Direito existe uma grande diferença. Formalmente, diante do Direito (burguês) “todos são iguais perante a Lei”, entretanto, no mundo real uns são mais iguais e outros menos.

Dentro deste arcabouço jurídico, que é o conjunto de normas do Direito Internacional, e fático, que é a possibilidade de uma catastrófica guerra na América Latina, cabe observar a situação do Brasil diante disto. As normas da ONU surtem efeito no Direito brasileiro, ainda que formalmente. O Brasil tem instituições e leis que são maiores que o governante. O Brasil não é um Estado despótico onde o governante manda sem que exista uma lei prévia acima de suas vontades individuais. Ao menos em tese, assim deveria ser. Desde quando o Rei da Inglaterra João Sem Terra aceitou se subordinar a uma Constituição existem leis as quais os soberanos estão subordinados. Deve-se ressaltar que, no mundo real o Direito é a expressão da correlação de forças entre as classes, refletindo os interesses da classe dominante. Todavia, aqui se pretende realizar um exercício demonstrando as contradições entre tal formalidade jurídica, do que o direito diz que é. Caso venha a se deflagrada uma guerra isto significaria uma ruptura com as normas jurídicas existentes.

Existe uma distinção nítida entre o que são questões de Estado e questões de Governo. Ou seja, o Estado tem definições estratégicas, o governo é mais flexível. Mas mesmo assim existem instituições a serem seguidas. Os Estados despóticos são instáveis, são as chamadas “repúblicas de bananas”. Um exemplo disto foi Manuel Noriega, do Panamá, que recebeu treinamento da CIA para dar um golpe de Estado, terminou se tornando chefe-de-Estado, e chefe do tráfico. O que no final resultou na invasão do Panamá pelos próprios EUA. Ou seja, quando perderam o controle sobre o bandido que colocaram no governo, terminaram invadindo o país. Ao menos em tese, existem no Brasil instituições, e um Estado com uma ordem jurídica. Ainda que, de fato, existam o tal “cabo e o soldado” na porta dos tribunais. Ainda que, de fato, tais instituições estejam a serviço da classe dominante. Entretanto, isto é distinto de um governo despótico, centralizado em uma pessoa. Todavia, a deterioração de tais instituições, no atual contexto, poderá resultar em mais poder concentrado para os governantes, dando ao regime um aspecto bonapartista.

A tradição diplomática brasileira se divide em dois momentos, primeiro no período do Império, de depois no período Republicano. No século XIX, no período do Império, uma postura beligerante e intervencionista na região. Naquele período o Império estava em permanente guerra dentro das regiões do próprio Brasil, como intervindo em outros países da América Latina. Tendo como caso mais emblemático o massacre genocida praticado contra o povo paraguaio. Sendo tal genocídio, uma marca de vergonha nacional, que mereceria ser profundamente estudado.

No século XIX o império brasileiro teve uma postura intervencionista, tanto na Argentina, quanto no Uruguai. Como resultado disso os governos destes países eram controlados pelo Império. Algo em certa medida similar com o que os EUA pretende fazer na Venezuela hoje. Ocorre que no ano de 1864 teve início a chamada “Guerra do Paraguai”, que perdurou até 1870. Com centenas de milhares de mortes, um massacre absurdo do posso paraguaio, um dos conflitos mais sangrentos do século XIX, em todo mundo. Resultando não só em uma destruição econômica do Paraguai, que tem reflexos até os dias atuais, como o surgimento da dívida externa Brasileira. A economia brasileira passou a funcionar como uma máquina de guerra para massacrar uma população civil, de forma sanguinária. De modo, que está colocado que uma guerra hoje, no século XXI, na Venezuela possa se tornar o equivalente ao que foi a Guerra no Paraguai no século XIX. Uma imensurável catástrofe tanto do ponto de vista humano, como até mesmo econômico.

No período da República praticamente se inverte o signo da linha diplomática brasileira. Passando a ter uma diplomacia pacifista. Isto garantiu em toda América Latina um século XX, principalmente na sua segunda metade, sem grandes conflitos regionais. Havendo poucas exceções. A postura do Estado Brasileiro neste sentido pôde garantir para a região um fator de estabilidade. As tropas brasileiras praticamente só se envolveram em conflitos internacionais usando os capacetes azuis da ONU. Em que pese, que ainda assim estavam a serviço do imperialismo, mas ao menos juridicamente estavam dentro de uma ordem multilateral. Não que não tenham ocorrido atrocidades, como foram as barbaridades praticadas por tropas brasileiras no Haiti. Entretanto, ao menos em tese, se respeitou as instâncias da ONU, compondo as chamadas “força de paz/observadores”. Isto quer dizer que, as intervenções militares, principalmente após a 2ª Guerra Mundial, não tiveram um caráter de invadir um país. Ou seja, não se pode admitir que as chamadas “missões de paz” sejam de fato de paz. Entretanto, ao menos na formalidade jurídica, não houve uma invasão contra governos constituídos.

A ordem jurídica brasileira impõe uma lógica de funcionamento do Estado. Ou seja, cada governante está subordinado a tal ordem. Essa ordem é expressa já na Constituição Federal de 1988:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I – independência nacional;
II – prevalência dos direitos humanos;
III – autodeterminação dos povos;
IV – não-intervenção;
V – igualdade entre os Estados;
VI – defesa da paz;
VII – solução pacífica dos conflitos;
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X – concessão de asilo político.
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Desde a Constituição de 1891, da Proclamação da República, consta:

Art 34 – Compete privativamente ao Congresso Nacional:
11º) autorizar o governo a declarar guerra, se não tiver lugar ou malograr-se o recurso do arbitramento, e a fazer a paz;

Art 88 – Os Estados Unidos do Brasil, em caso algum, se empenharão em guerra de conquista, direta ou indiretamente, por si ou em aliança com outra nação.

Tal compreensão entra em contraste total com a Constituição do período Imperial, onde não havia limites para a deflagração de uma guerra. Portanto, é um Princípio do Estado Brasileiro, Republicano, a defesa da independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. É um dever Constitucional a defesa da Paz. Em especial, e expressamente, na América Latina.

Quando da visita de Bolsonaro aos EUA, o porta-voz da Presidência, General Otávio Santana do Rêgo Barros, declarou que: “Não trabalhamos com intervenção na Venezuela, até porque afronta a nossa Carta Magna”. No que está absolutamente correto o Sr. General. Entretanto, no dia seguinte a tal declaração, o Sr. Presidente, após se reunir com Trump, quando perguntado sobre a possibilidade de uma invasão da Venezuela, declarou que: “Tem certas questões que, se você divulgar, deixam de ser estratégicas” (…) “Essas questões reservadas, que podem ser discutidas, se já não foram, não poderão se tornar públicas”. Ou seja, na prática não refutou a ideia de o Brasil participar de uma invasão da Venezuela. Admitindo até que possa ter praticado diplomacia secreta com os EUA, o que seria ilegal.

A Constituição Federal, de 1988, também determina que:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
XIX – declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;

A referida “mobilização nacional” está regulamentada na Lei 11.631/2007. A Lei Complementar nº 97/1999 trata do uso das Forças Armadas no Brasil. Onde se determina a existência de uma série de protocolos que devem ser seguidos. Dentre os quais o “Livro Branco de Defesa Nacional”, bem como a “Política de Defesa Nacional” e a “Estratégia Nacional de Defesa”. Tais protocolos devem ser aprovados pelo Congresso Nacional. Como também necessita ser aprovado pelo Congresso qualquer eventual Declaração de Guerra. Nestes livros consta a seguinte determinação:

A Política Nacional de Defesa interessa a todos os segmentos da sociedade brasileira. Baseada nos fundamentos, objetivos e princípios constitucionais, alinha-se às aspirações nacionais e às orientações governamentais, em particular à política externa brasileira, que propugna, em uma visão ampla e atual, a solução pacífica das controvérsias, o fortalecimento da paz e da segurança internacionais, o reforço do multilateralismo e a integração sul-americana.

A Lei nº 1.079/1950 trata dos crimes de responsabilidade do Presidente da República.

Art. 5º São crimes de responsabilidade contra a existência política da União:
(…)
3 – cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade; (…)
8 – declarar a guerra, salvo os casos de invasão ou agressão estrangeira, ou fazer a paz, sem autorização do Congresso Nacional. (…)
10 – permitir o Presidente da República, durante as sessões legislativas e sem autorização do Congresso Nacional, que forças estrangeiras transitem pelo território do país, ou, por motivo de guerra, nele permaneçam temporariamente;
11 – violar tratados legitimamente feitos com nações estrangeiras.

Portanto, qualquer dos atos mencionados significaria a prática do Crime de Responsabilidade. Com riscos e consequências muito maiores do que a suposta pedalada. Como se observa um chefe-de-Estado no Brasil deve atender e obedecer a Legislação. Sendo parte componente da Lei Brasileira as leis internacionais. De modo que sem que haja a aprovação do Conselho de Segurança da ONU o Brasil não poderia, em nenhuma hipótese intervir no conflito com a Venezuela.

Mais ainda, ao permitir que se instalassem no Brasil os tais comboios da suposta “ajuda humanitária”, por si só já violou vários dispositivos. Pois o suposto comboio não foi autorizado nem pela ONU nem pelo governo da Venezuela. Sendo por si só um possível ato de provocação. O que violaria a Lei de Responsabilidade, Art. 5º, 3 e 10.

A grande questão é qual será a postura de Bolsonaro frente a crise venezuelana? Trump pretende dar continuidade a política do “Big Stick”. Pretendendo intervir na Venezuela. Já se iniciaram os atos de sabotagem e intervenção, assim como no caso da Nicarágua. É necessário que o Sr. Jair Bolsonaro tenha uma postura de Chefe de Estado no Brasil. Do contrário, poderá cometer um Crime de Responsabilidade. O Brasil é maior do que charlatões pseudo-filósofos astrólogos, terra-planistas, diplomatas que querem contatos com alienígenas, etc.

Como se pode observar a doutrina do Estado Brasileiro, adotada ao longo do século XX, é oposta a doutrina norte-americana. Os EUA participam de guerras a cada década. Todas as gerações de norte-americanos são permeadas, cada qual, por alguma guerra de grande magnitude. Tal como foi Coréia, Vietnã, Iugoslávia, Iraque, Afeganistão, entre tantos outros conflitos. No Brasil não existe mais uma doutrina militar-diplomática intervencionista. Ao contrário, desde a República existem mecanismos jurídicos contrários à guerra.

Portanto, quando um chanceler ou um presidente, propõe um alinhamento automático aos EUA. Propõe essa política diplomática, como se estivesse rompendo com a “política do PT”, isso não é verdade, se está rompendo com a política diplomática-militar do Estado Brasileiro, desde a proclamação da República.

A tradição pacifista do Brasil foi consolidada pela atuação do diplomata Osvaldo Aranha, tanto que na Assembleia Geral da ONU, tradicionalmente o discurso de abertura é feito pelo Brasil. De modo que por mais que o Senhor Chanceler ache as “tradições inúteis”, como afirmou em entrevista, ele deveria estar subordinado às Leis e a Constituição. Existem questões de Estado que não podem ser modificadas ao sabor ou dissabor de tal ou qual chefe de Estado. As tradições com as quais o bolsonarismo-olaviano pretende romper são as tradições Republicanas. Ou seja, a República no Brasil tem muitos limites, pois representa um Estado a serviço da burguesia. Entretanto, o Brasil Republicano, ainda que que formalmente, seria um País independente, e “democrático”. Todavia, o retrocesso que a política bolsonarista que impor afeta diretamente a Soberania Nacional brasileira. Uma participação brasileira em uma Guerra na Venezuela daria um salto no processo de recolonização do Brasil. Jogando o Brasil para patamares piores do que os anteriores a proclamação da República.

O Brasil terá um General no chamado Comando Militar Sul dos EUA, ou seja, um traço nítido de colônias. Pois não existe sequer um tratado militar que justifique tal participação. Isso significa que tal general estaria subordinado ao comando dos EUA. Outro exemplo dessa recolonização é o tratado relativo a base de Alcântara. Lutar contra a participação do Brasil nesta guerra é lutar não só pela autodeterminação do povo venezuelano, mas também lutar pela Soberania Nacional Brasileira.

Conclusões

O que se vê na realidade é que a América Latina corre um risco real. Uma guerra se iniciando teria um desfecho imprevisível. Provavelmente com consequências trágicas por gerações. Haveria um impacto no conjunto do continente. De modo que neste instante é válido resgatar as próprias leis Brasileiras contra tal guerra. Resgatar, até mesmo, a tradição Republicana, pois defender a Guerra é buscar resgatar a política diplomática do Brasil Império. Pois ser contra a invasão da Venezuela é preservar a tradição militar e diplomática do Brasil em mais de um século de República. Defender a invasão da Venezuela é defender uma postura de recolonização completa do Brasil. Pois os soldados brasileiros serão usados como bucha de canhão para os interesses dos EUA.

Portanto, internamente no Brasil, hoje ser patriótico é lutar contra a guerra na América Latina. Caso o governo Bolsonaro se envolva nesta guerra, será necessário investigar se não estaria cometendo o Crime de Responsabilidade. Uma intervenção brasileira na guerra seria ilegal, em vários aspectos. Ser a favor da guerra no Brasil, para dizer o mínimo, é contra a Lei. Quem for a favor da guerra está contrariando as Leis, brasileiras e internacionais. Entretanto, a questão de fundo do debate é a defesa da soberania nacional, não só da Venezuela, mas também a soberania nacional do Brasil.

Em defesa da união dos povos latino-americanos, contra qualquer invasão imperialista. Defender a soberania nacional do Brasil é ser contra a guerra. Caso o Brasil entre na guerra estará sendo uma colônia dos EUA. Isto, por si só, é um atentado contra os interesses nacionais. Caso o chefe de Estado no Brasil declare tal guerra estará cometendo um crime. Cada jovem brasileiro morto nesta guerra seria de responsabilidade de quem use a caneta Bic para assinar a declaração de guerra.

 

* Bruno Figueiredo é advogado.

Marcado como:
direito / guerra