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BRASIL

Bolsonaro e o nazismo

Luis Felipe Miguel*, de Brasília, DF

Há uma estranha obsessão – de Bolsonaro, Olavo de Carvalho e outros chefes da direita brasileira – por defender em público a ideia de que o nazismo foi um movimento de esquerda.

É um disparate, que só se torna possível no ambiente de “pós-verdade” em que caímos. Enquanto as chamadas “fake news” são mentiras destinadas a orientar a compreensão dos fatos correntes (e as consequentes escolhas políticas), a pós-verdade constrói narrativas amplas baseadas na desqualificação das fontes antes aceitas como legítimas de validação, como a ciência, a academia e a lógica elementar, a partir em geral de uma visão conspiratória.

A terra é plana. Não existiu ditadura no Brasil. O nazismo era de esquerda.

O terraplanismo difere dos outros exemplos porque remete a um par conceitual menos complexo (plano, esférico). Para afirmar que o regime de 1964 foi uma ditadura, preciso ser capaz de definir em que consiste uma “ditadura”. Mas é possível alcançar uma definição suficientemente consensual – ausência de autorização dos governados, uso de violência aberta contra os opositores, negação das liberdades civis, imposição unilateral da vontade do grupo no poder – para nela incluir, sem margem para dúvida, um caso tão pouco complexo quanto o da ditadura brasileira.

A (correta) crítica ao silenciamento de vozes alternativas pela imposição dos saberes dominantes fez com que, muitas vezes, pessoas progressistas não saibam como reagir a esse tipo de ofensiva. Se acreditamos no relativismo radical que esteve na moda por certo tempo, não temos como combater a pós-verdade.

Um exemplo: quando o Ministério da Educação tentou proibir os cursos sobre o golpe de 2016 nas universidades, muita gente protestou, em defesa da liberdade de cátedra e prosseguiu afirmando que, se fossem oferecidos cursos sobre a “revolução” de 1964, também deveriam ser aceitos. Não deveriam. A discussão sobre o caráter da derrubada de Dilma Rousseff é uma controvérsia legítima. Já a discussão sobre a quartelada de 1964 já está bem encerrada entre os historiadores, pelo menos no que se refere a ter sido um golpe. Seriam necessárias muitas novas evidências para reabrir o debate, tanto quanto só novas descobertas muito fortes e surpreendentes tornariam legítima uma disciplina sobre a terra plana em um curso de Astronomia.

No caso de “direita” e “esquerda”, há ainda o fato de que se trata de uma metáfora, baseada em algo fortuito – a disposição dos assentos na Assembleia revolucionária francesa. Nesse sentido, é um rótulo arbitrário; nada indica que exista relação entre ser destro ou ser canhoto e ter tal ou qual simpatia política.

A rigor, qualquer um poderia inventar uma distinção esquerda/direita de acordo com os critérios que bem quisesse. O uso, no entanto, reduziu muito essa margem de arbítrio.

A não ser para um insustentável nominalismo radical, que seguisse o moto de Humpty Dumpty, a personagem de Alice através do espelho (”cada palavra significa exatamente aquilo que eu quero que ela signifique naquele momento”), temos sempre que remeter o conceito ao uso consolidado, que permite que ele – a despeito de eventuais polêmicas pontuais – faça parte de uma linguagem compartilhada. E a clivagem direita/esquerda, desde que surgiu, se organiza em torno de duas questões.

A primeira é a questão da igualdade, que Norberto Bobbio, num livrinho famoso, afirmou ser a grande linha divisória. A esquerda defende uma sociedade mais igualitária. A direita afirma que a desigualdade é necessária, é inevitável, é a consequência automática das diferenças naturais entre os seres humanos, é o resultado incontornável das interações entre as pessoas.

Regimes que classificamos como sendo de esquerda podem produzir desigualdades terríveis, mas seu discurso sempre é igualitário. Já o fascismo e o nazismo são abertamente anti-igualitários. Pregam uma ordem social hierárquica. Afirmam que existe uma raça superior às outras.

A outra questão é o lado em que se colocam no conflito entre capital e trabalho. Os regimes nazi-fascistas foram apoiados pelas grandes corporações capitalistas, que financiaram os movimentos que deram origem a eles. Foram vistos como a salvação diante da ameaça representada pelo avanço da classe trabalhadora a partir da Revolução Russa – posição, aliás, do próprio Ludwig von Mises. Eram regimes de Estado forte, sim, mas que permitiam lucros crescentes, exatamente pela repressão feroz sobre os trabalhadores. Como disse alguém, enquanto a União Soviética estatizava as empresas, o nazi-fascismo estatizou o trabalho e cedeu-o aos capitalistas, que usavam a mão de obra escravizada dos prisioneiros.

Resolvida a questão conceitual, sobram apenas anedotas, como o fato de que Mussolini começou sua vida política no Partido Socialista. O que isso quer dizer? José Serra, Cristovam Buarque, Roberto Freire, Aloysio Nunes Ferreira… O número de direitistas que foram de esquerda no passado é enorme. E não custa lembrar que o Mussolini “socialista” foi, na verdade, um agente do serviço secreto britânico (https://www.theguardian.com/…/benito-mussolini-recruited-mi…).

Ou então lembram que o nome completo do Partido Nazista era “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Deve ser o mesmo pessoal que acredita que a Coreia do Norte é democrática porque o nome oficial é “República Democrática da Coreia”. Ou que o PSDB é social-democrata, que o Novo não é velho. Na verdade, a inclusão de “socialista” e “trabalhadores” no nome serve apenas para lembrar que o nazi-fascismo surge como reação do capital à ameaça da revolução operária.

É possível ser de esquerda e se opor a Stálin ou Mao, sem negar que eles também assumiam um discurso de esquerda. É possível julgar que a esquerda é o lado certo, sem achar que todo mundo que está à esquerda é necessariamente bom. A direita podia fazer o mesmo.

Mas uma parte cada vez maior dela não o faz. Por quê?

Uma hipótese é a cortina de fumaça. Bolsonaro lançaria factoides para desviar a atenção do principal – ficamos discutindo a Alemanha dos anos 1930 e, enquanto isso, a Reforma da Previdência, as milícias, o corte no gasto social etc. Talvez, embora o timing e o tom desastrados de muitas de suas declarações não colaborem para pensar que é algo tão bem planejado. De todo modo, o campo democrático não tem como se furtar desse tipo de debate. Pode ser diversionismo para eles, não para nós, que acreditamos (de verdade, não como frase de efeito) que é necessário conhecer o passado para entender o presente.

Outra hipótese é o retorno do recalcado. O nazismo é o horizonte final do delírio repressivo e autoritário que move Bolsonaro, o que o torna tanto uma sombra sempre presente em sua mente quanto algo do que se faz necessário se afastar de público.

A terceira hipótese se liga à produção do pânico e do ódio, que é central na estratégia política da extrema-direita. O outro lado – a esquerda – tem que ser a fonte de todo o mal, da destruição da família à corrupção, de mamadeiras excêntricas à doutrinação nas escolas. Ter o exemplo mais acabado do mal no mundo contemporâneo associado à direita compromete essa narrativa e leva ao sério risco de colocar alguma dúvida na cabeça dos seguidores.

* Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política da UNB e autor de Democracia e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e, em conjunto com Flávia Biroli, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014), entre outros.

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