O samba-enredo da Mangueira não podia vir em melhor momento: na história que a história não conta, há Marielles Mahíns e Malês, esses sim genuínos heróis forjados no sangue e na luta pelo direito à vida com dignidade e liberdade.
Tal e qual o Brasil, ainda hoje subserviente aos interesses das nações mais ricas e poderosas do mundo, a maioria do nosso povo nunca pôde se emancipar, tomando em suas mãos as rédeas do seu próprio destino. Explica-se: sendo essa maioria descendentes de africanos sequestrados e escravizados ao longo de quase quatro décadas, negros, negras e indígenas no Brasil nunca receberam a reparação pelo crime que os colonizadores e os seus herdeiros praticaram contra o passado do nosso povo.
Ainda pior, esses mesmos herdeiros estão no poder até hoje, neste momento a sua ala mais radical: militares, milicianos, entreguistas e justiceiros contra os pobres compõem a cúpula do governo Bolsonaro. Por isso, não deve causar espanto as comemorações dos quartéis ao golpe de 31 de Março, mas sim indignação e luta.
Quem, como eu, cresceu e tomou consciência do mundo entre os anos 1980 e 90, negro, vivendo numa cidade operária marcada fortemente pelo ascenso de lutas que fragilizou a ditadura civil-militar, não poderia imaginar que 30 anos depois estaríamos diante da tentativa de setores dominantes da política e da economia do país, de revisar as conclusões históricas desse período. Que fique como lição: nossos inimigos não se cansam, pois têm o mundo a perder.
A estabilidade política que em larga escala permitiu a manutenção das mesmas famílias e grupos econômicos no controle do país é garantida à base de muito tiro, porrada e bomba, mas também muita ideologia e falsificação histórica. Imaginem o povo brasileiro, negro em sua maioria, consciente que descende de reis e rainhas que há séculos atrás foram despojados de sua riqueza e poder com um oceano os separando de suas terras? Imaginem que tomem consciência que essa dívida nunca paga é a responsável pelos seus pais e os seus filhos viverem em constante luta por sobrevivência, com pouca expectativa de futuro? Imaginem se souberem que os atuais mandantes do país descendem dos mesmos que açoitaram os seus ancestrais, e que mais do que nunca entregam as riquezas produzidas pela maioria do nosso povo aos colonizadores e nossa época, como seus pais fizeram, tudo em nome de manter os seus privilégios? Imaginem se os brancos pobres do nosso país, conscientes das sequelas e traumas do racismo estrutural brasileiro, que também os tornou tão pobres que quase negros, unirem-se ao povo negro em luta pela sua emancipação?
Essa é a função do mito da democracia racial no Brasil de hoje, não muito diferente do mito impulsionado pela ditadura a partir de 1964: pacificar aqueles que têm o potencial de subverter a lei e a ordem em proveito da maioria, o oposto do que acontece agora. Por isso é tão importante os registros levantados pela Comissão da Verdade, que apontam a infiltração de agentes do Estado nas organizações de combate ao racismo no final ditadura e o pavor que essa potência inspirava nos militares. Marielle tristemente não foi a primeira, pois além das dezenas de militantes do movimento negro assassinados pela ditadura, temos milhares abatidos pelos esquadrões da morte que mantinham a ordem nas periferias das grandes cidades em expansão naquele momento de urbanização do país.
É verdade que o revisionismo que assistimos hoje, muito impulsionado pelo governo Bolsonaro, só foi possível porque a memória e a verdade dos 21 anos de chumbo nunca foram apropriadas pela maioria da população do nosso país.
A começar pelo processo de anistia que, na prática, perdoou os responsáveis civis e militares pelos crimes da ditadura, os igualando em direitos a aqueles que através de diversas formas combateram e foram abatidos pelo regime. As forças armadas brasileiras nunca tiveram que reconhecer que o golpe foi um atentado à democracia e à soberania do país, assim como nenhum torturador ou presidente militar foi punido.
A Constituição de 1988 acabou sendo generosa com os militares, mantendo em suas mãos a defesa da lei da ordem. Justo eles, que duas décadas antes fizeram de conta que tomariam o poder para preservar a democracia e lá nunca aceitaram sair, e nunca se arrependeram. Seus heróis continuam os mesmos, seus chefes continuam prestando continência ao genocida Duque de Caxias e chamado o golpe de contrarrevolução, ou os mais tímidos: Movimento de 64.
É para resgatar a memória que não nos calamos no dia de hoje. É para transformar o presente que buscamos aprender com o passado.
É para sonhar com um futuro onde a maioria possa se reconhecer entre os heróis nacionais e ter orgulho, enfim, da nossa bandeira, ou da bandeira que eles próprios forjarem ao longo das batalhas para ter o poder em suas mãos.
#DitaduraNuncaMais
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