55 anos do golpe de 1964: a resistência devida

Editorial 30 de março
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Há momentos nos quais a história sofre uma pausa, como no Brasil, em 1964, e aqui novamente, em 2019.  Do golpe militar-empresarial dos anos 1960 ao governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, o tempo se cinde em um intervalo de mais de meio século. Nos dois momentos, no entanto, uma sombra desceu sobre o país.

Em 1964, os tanques ganharam as ruas, atropelaram as liberdades democráticas e abriram caminho para 21 anos da mais absurda repressão política. Uma forma anormal de governo, de conotação militar, rompeu com a forma fundamental da dominação burguesa: a democracia representativa.

Engana-se, no entanto, quem pensa a ditadura como uma obra exclusiva da cúpula das forças armadas. O sujeito do golpe é composto: ao lado da alta hierarquia militar, com efeito, atuou a alta hierarquia de classe da burguesia. Da FIESP ao IPES e do IBAD à grande mídia, o empresariado desempenhou papel decisivo na preparação e organização do golpe de Estado que, operacionalmente, é fruto da ação do militarismo triunfante.

Essa poderosa articulação do dinheiro e das armas atraiu as organizações da chamada “sociedade civil”, começando pela CNBB e alcançando a OAB, e, mediante esse nó de forças, se arrastou para as ruas estratos de massa, notadamente das classes médias. É assim que, há 55 anos, se instaurou a ditadura (militar ou militar-empresarial), regime político autocrático que, hoje, mobiliza o apoio do extremismo de direita, notadamente do bolsonarismo.

O “namoro” do bolsonarismo com a ditadura não é de data recente. Antes de se tornar presidente, ainda como deputado federal, Jair Bolsonaro já enaltecia o poder ditatorial, inclusive louvando a um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ultra, a quem homenageou em sua declaração de voto durante o “impeachment” de Dilma. Ao chegar à presidência, o “teatro do poder”, o líder do PSL amplia o horizonte de sua retórica e a torna ainda mais perigosa e corrosiva, e assim é que ele propõe a “comemoração devida” dos 55 anos do golpe de força de 1964, manipulando uma tradição militar, diga-se, de passagem, ferozmente retrógrada, e que fora interrompida brevemente no governo Dilma. Em suma, o bolsonarismo redescobre a fúria irracionalista de uma ditadura como símbolo do seu grupo, e agora, de seu governo.

Acontece que não há o que comemorar

Os trabalhadores da cidade e do campo não têm o que comemorar, uma vez que representam 56% dos mortos e desaparecidos. Os negros e as negras desse país, igualmente, não têm o que comemorar, com 42 mortos, dentre eles Oswaldão, Helenira e Alceri. Em Os fuzis e as flechas, Rubens Valente demonstra o massacre sofrido pelos indígenas e contabiliza 532 mortos entre os povos nativos, o que confirma que esses, também, não têm o que celebrar. O que dizer, então, de mulheres que sofreram torturas, caso de Rose Nogueira nas mãos do crápula Fleury, ou simplesmente encontraram a morte nesses anos sombrios? O que dizer de crianças (presume-se, 19 ao todo) que perderam seus pais (assassinados!), amargaram a dor do sequestro e foram adotadas ilegal e ilegitimamente, em grande parte, pelos matadores de seus pais ou por cúmplices dessas atrocidades? A esse respeito, o livro Cativeiro sem fim, de Eduardo Reina, traz à tona esse pedaço escondido de uma história de horror e barbárie.

Efetivamente, não há o que comemorar. Mesmo a igreja católica, que, institucionalmente, apoiou o golpe de 1964, encontra mártires em suas fileiras, dentre eles Frei Tito e padre Henrique.  Nem as forças armadas constituem uma estrutura que não está aberta às pressões da luta de classes. Somente isso explica por que o regime ditatorial atingiu cerca de 6.300 integrantes das FFAA, que padeceram de prisões às cassações.

Sob a pressão da presença de Jair Bolsonaro na presidência, há uma tentativa de reconfigurar o passado dando-lhe um rosto conveniente, mas entre realidade e farsa há uma distância considerável. À vista disso, até segmentos do ministério público e juízes de direito, bem como setores da mídia, da OAB e vozes militares mais lúcidas, refutam a má denominada “comemoração devida”, que, na verdade, constitui um circo gigantesco, não de risos, mas de dor e de lágrimas.

A história do bolsonarismo ainda está por ser escrita. Sem dúvida, essa é uma de suas páginas mais catastróficas. O episódio é de grande importância. Por isso, não pode ser minimizado. A ordem do dia lida nos quartéis, por sinal, é uma afronta às liberdades políticas reprimidas e esfaceladas em 1964 e, nos dias que correm, também, quando ora são ameaçadas, ora são asfixiadas; mas se a história “é uma trama de muitos fios”, somos levados a considerar que na sociedade brasileira muitas forças hão de se levantar, e já começam a se erguer, indignadas ante um governo que legitima a tortura e celebra o aniversário de um sistema de poder militar repressor e tirânico.

Nessa perspectiva, nós nos situamos do outro lado da trincheira. A luta pela memória dos que enfrentaram a ditadura se completa com a união para derrotar o governo Bolsonaro, seus planos de fome e suas ideologias reacionárias. Aos cultores de torturadores, ergamos a resistência devida e gritemos a plenos pulmões: 1964 – nunca mais!