Nunca mais

Daniela Conte
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Quando ingressei no curso de História, em 2001, a turma brincava que éramos divididos em dois grupos: os que fizeram o curso por causa do Indiana Jones e os que vieram pelo estudo da ditadura, ou seja, os militantes. Indiana Jones foi desmontado em duas aulas como um ladrão bagaceira do imperialismo britânico. Já a Ditadura nos revirou por dentro. Eu estudei o necessário para entendê-las nas suas determinações centrais, mas nunca tive a coragem de amigos como a Caroline Silveira Bauer, a Clarissa Brasil ou o Davi Ruschel para me dedicar a um estudo sistemático daquele tempo – cujas barbaridades, segundo muitos, jamais voltariam a ter lugar. Nunca mais. O historiador tem os seus limites subjetivos. Todos nós os temos. Eu não suportava os relatos das vítimas de torturas cruéis, as descrições sobre a busca incessante da desumanização que a tortura impõe aos torturados. Era, e ainda continua sendo, muito difícil preparar a escuta para as palavras dos que, 40 anos depois, sofriam a dor de “não ter aguentado”.

Dentre todos os depoimentos os quais pude ler ou presenciar, nada me doeu mais do que ver, em 2004, o Flávio Koutzii, ex-militante do Partido Operário Comunista (POC) e do Exército Revolucionário dos Trabalhadores (ERP) – organização argentina dizimada pela ditadura de lá. Eu estava em Pelotas, no evento promovido pelo Instituto Mário Alves (IMA) sobre os 40 anos do Golpe de 1964 e Flávio chegou pra mesa, abatido. Visivelmente exausto. Disse mais ou menos assim: “peço desculpas, mas eu estou há um mês falando desse horror e isso acaba comigo. Revivo cada dia da tortura que sofri. É difícil, mas eu sei que é necessário”. Acho que não ouvi mais nada. Fiquei com essa dor compartilhada atravessada pela imagem do Flávio.

Alguém que defenda um regime político que imponha a outro ser humano tamanha violência, que vai muito além do ato em si da tortura, não merece nenhum respeito ou tolerância. A ideia de comemoração do Golpe de 64 (Civil, Industrial, Militar) merece repúdio e combate. Não imporão a desumanização da memória dos que vieram antes de nós. A luta contra essa desumanização dos nossos antepassados é condição indispensável para que nós mesmos não percamos nossa humanidade, ou o que ainda dela nos resta. Parafraseando o próprio Flávio, essa luta pode ser difícil, mas é necessária. Nem por um dia, nunca mais.