Meszaros e os dilemas da transição socialista: a ativação dos limites absolutos do Capital

Sostenes B R Silva
Reprodução

Introdução

Neste texto continuaremos a apresentar uma visão inicial e sintética do legado do filósofo húngaro para a luta socialista, em especial para o urgente debate sobre as formas históricas de transição. Especificamente aqui queremos tratar de expor o entendimento de Meszaros sobre o que ele denomina de crise estrutural do Capital.

O entendimento do significado de uma crise estrutural passa por desfazer os equívocos que a assimilam a uma concepção catastrofista ou a “teoria da derrocada”,todo modo de produção historicamente viável constitui uma articulação secundaria de tarefas sociometabólicas vitais do ser social, os limites absolutos de um sociometabolismo são ativados quando este se torna incapaz de satisfazer minimamente as demandas primárias, e ao contrário vai no sentido de destruir o próprio sociometabolismo devido ao caso de que nenhuma forma sociometabólica específica pode transcender a si mesmo. O pensamento de Meszaros se concentra neste ponto visando diferenciar limites relativos de uma forma de produção e reprodução da vida, que ao se esgotar afeta aquilo que os regulacionistas chamariam “regime de acumulação” ou que a tradição da TMD (Teoria Marxista da Dependência) chama de “padrão de reprodução do capital” (luce,2011); ou seja diz respeito a uma determinada articulação particular de reprodução do capital, como podemos visualizar na transição do seculo XIX para o XX com a emergência imperialista, com a longa crise de 29 que só chega ao fim pós-segunda guerra com a emergência do fordismo, no caso periférico no modelo subimperialista brasileiro durante a ditadura civil-militar etc. O argumento de Meszaros é que se na concreticidade histórica o Capital consegue deslocar suas contradições, e rearticular seu sociometabolismo de forma funcional ao seu autoexpansionismo permanente é que estávamos diante de limites relativos e não absolutos que “ põe em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo. (…) uma crise estrutural não está relacionada aos limites imediatos mas com os limites últimos de uma estrutura global.” (Meszaros,2011)

Na explicitação dos limites absolutos Meszaros não está defendendo a tese de que só agora a transição ao socialismo seria viável, ao contrário ele está apenas revelando o fato de que os dilemas enfrentados pela transição no século XX tinham uma natureza objetiva, o que não significa invalidar as tentativas de quebrar “o elo mais fraco da cadeia” que a partir da Revolução Russa tentaram nadar contra a corrente, mas sim de relacionar os limites objetivos e subjetivos desta transição interrompida aos limites histórico-estruturais do sociometabolismo do Capital.

1 Defeitos Estruturais da Ordem do Capital

O capital enquanto sociometabolismo se constitui num complexo de complexos (Lukacs,2012) que medeia a relação primaria do ser social com a natureza, sendo o trabalho a base ontológica de qualquer sociedade humana é em torno da produção e reprodução do trabalho que os diversos complexos societários, adquirem o seu sentido, ou seja, são as relações sociais de produção articuladas as forças produtivas que estabelecem as formas sociais viáveis e historicamente funcionais em dada etapa do desenvolvimento do ser social.

Meszaros inicia o capitulo do seu opus magnun “Para Além do Capital” constatando a centralidade que a crise ambiental adquiriu em nossos tempos, o que o faz em um interlocutor profícuo do ecossocialismo marxista que infelizmente ainda não foi de todo incorporado, Meszaros aponta que

o incontestável imperativo da proteção ambiental se revelou inadministrável, em virtude das correspondentes restrições necessárias aos processos de produção em vigor exigidas para sua implementação. O sistema do capital se mostrou impermeável à reforma, até mesmo de seu aspecto obviamente mais destrutivo.” (idem)

Isto se deriva do fato de que o sistema ser irrefreavelmente orientado para a autoexpansão e pelo privilegio que o valor de troca adquire sob o valor de uso, ora por sua própria essência a realidade de qualquer coisa tem que ser avaliada qualitativamente , em se tratando de um ecossistema vivo extremamente fragil e complexo é impossível estabelecer “punições” na forma de “valor de troca”, como se tenta pifiamente estabelecer com coisas como o “credito carbono”.Recentemente a tragédia de Mariana e Brumadinho entre nós revelou as características da perdulariedade e incontrolabilidade do capital no trato com o ecossistema e com a humanidade, que são reduzidos a escala quantitativa da alienação mercantil.

A Meszaros a crise ecológica, ou ecocídio que o capitalismo leva a cabo pela sua incapacidade de “puxar o freio de mão”, permanecerá conosco mesmo com a marginalização e integração ( no discurso do capitalismo verde, ou desenvolvimento supostamente sustentável) de grande parte dos setores ambientalistas. Isto por que: “O ambientalismo, por sua própria natureza (assim como a grande causa histórica da liberação das mulheres), é não integrável. Consequentemente, e apesar de sua inconveniência para o capital, nenhuma causa desse gênero desaparecerá, não importa quantos tropeços e derrotas as formas politicamente organizadas dos movimentos de ”questão única” tenham de sofrer no futuro previsível.” (idem)

Para entendermos a dimensão e o “fardo” do tempo histórico é necessário compreender as estruturas objetivas do sociometabolismo do capital e seus limites intrasnponiveis e levar em conta que só o trabalho como antagonista estrutural e realmente não assimilável, pode oferecer uma alternativa oniabrangente e historicamente viável as mediações secundárias alienadas do capital

“O trabalho não é apenas não integrável (ao contrário de certas manifestações políticas do trabalho historicamente específicas, como a social-democracia reformista, que poderia ser corretamente caracterizada como integrável e na verdade integrada nas últimas décadas), mas – precisamente como a única alternativa estrutural viável para o capital – pode proporcionar o quadro de referências estratégico abrangente no qual todos os movimentos emancipadores de “questão única” podem conseguir transformar em sucesso sua causa comum para a sobrevivência da humanidade.” (Meszaros, idem)

A razão elementar pela qual deve-se ser capaz de apresentar uma alternativa global a ordem sociometabólica do capital é que somente assim é possível desestruturar o Capital ,que não é definitivamente uma coisa ( que poderia ser destruída de um só golpe) e sim uma relação de controle sociometabólica “totalitária” e incontrolável, por que autorreferente.

A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a um significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o presente, de longe a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua “viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não consiga se adaptar. Não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente – e, neste importante sentido, “totalitário” – do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do comércio, a educação e a agricul

tura, a arte e a indústria manufatureira, que implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade, desde as menores unidades de seu “microcosmo” até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos vastos monopólios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos. No entanto, é irônico (e bastante absurdo) que os propagandistas de tal sistema acreditem que ele seja inerentemente democrático e suponham que ele realmente seja a base paradigmática de qualquer democracia concebível”  (Meszaros, idem)

Assim seja as demandas do trabalho, seja as ambientais, dos oprimidos e das nações subalternas, tudo só pode ser viável se se limitar aos requisitos autorreferentes do capital, a saber a expansão permanente do valor de troca pouco importando que toda a Terra e todos os seres humanos, quicá o espaço sideral, tivessem que ser destruídos para garantir as condições de reprodução alienada do sociometabolismo do capital.

O Primeiro defeito estrutural insuperável do Capital é a cisão entre produção e controle.

Isto possui diversos aspectos a começar pela crescente socialização do processo de  produção social, que de individual e localizado, passa a ser coletivo e global, atrelando toda a humanidade num abraço totalitário através de diversos expedientes ( desde as leis alienadas do mercado até guerra e genocídios em nome da manutenção da ordem dominante), e de outro a crescente privatização da apropriação dos excedentes socialmente produzidos por uma ínfima casta que se eleva sob a miséria de milhões e constantemente  se expressa de forma racista e grosseira sob a imensa maioria da humanidade.

Para Meszaros esta contradição entre produção e controle se localiza no fato de o Capital necessariamente se constituir como complexo de relações sociais de tipo hierárquico que recobre a própria divisão do trabalho necessária a qualquer sociedade humana.

            “Esta imposição da divisão social hierárquica do trabalho como a força cimentadora mais problemática – em última análise, realmente explosiva – da sociedade é uma necessidade inevitável. Ela vem da condição insuperável, sob o domínio do capital, de que a sociedade deva se estruturar de maneira antagônica e específica, já que as funções de produção e de controle do processo de trabalho devem estar radicalmente separadas uma da outra e atribuídas a diferentes classes de indivíduos. Colocado de forma simples, o sistema do capital – cuja raison d’être é a extração máxima do trabalho excedente dos produtores de qualquer forma compatível com seus limites estruturais – possivelmente seria incapaz de preencher suas funções sociometabólicas de qualquer outra maneira. Por outro lado, nem mesmo a ordem feudal institui esse tipo de separação radical entre o controle e a produção material.

Apesar da completa sujeição política do servo, que o priva da liberdade pessoal de escolher a terra em que trabalha, no mínimo ele continua dono de seus instrumentos de trabalho e mantém um controle não formal, mas substantivo, sobre boa parte do processo de produção em si” (Meszaros,idem)

Assim uma divisão absolutamente perversa que engloba divisões de classe, raça e gênero deve estruturar o conjunto da vida social e se revestir de força ideológica com status de verdade incontornável, como única forma viável de vida, para a qual “não ha alternativa” como gostam de dizer os veleitários ideológicos do mantra do livre mercado.

No mesmo espírito deste primeiro defeito estrutural se estabelece uma radical cisão entre produção e consumo, esta divisão significa uma crescente produção, inclusive de coisas imuteis, que convive lado a lado com a insatisfação cronica das demandas das massas trabalhadoras do mundo.

Segundo, no mesmo espírito e surgindo das mesmas determinações, a produção e o consumo adquirem uma independência e uma existência separada extremamente problemáticas, de modo que, no final, o “excesso de consumo” mais absurdamente manipulado e desperdiçador, concentrado em poucos locais , encontre seu corolário macabro na mais desumana negação das necessidades elementares de incontáveis milhões de pessoas.” (idem)

O terceiro defeito estrutural se refere a contradição entre os microcosmos alienados do capital que devem encontrar uma forma de totalização parcial, que lhes permita tentar superar as contradições de realização da produção do capital no mercado mundial, e para isto culminando numa ordem historicamente constituída através de saque, exploração e opressão racialmente orientados da maioria absoluta da humanidade, haja vide a historia do colonialismo moderno, da escravidão moderna, do imperialismo, da dependência e do neocolonialismo. Esta última contradição reproduz no nível do mercado mundial as iniquidades e opressões sociohierarquicas dos microcosmos do capital e acrescentam um componente de irracionalidade latente expresso por exemplo nas guerras, genocídios e ameaças nucleares e ecológicas à vida humana.

A impossibilidade de tornar um todo hierárquico e marcado por antagonismo de classe, de raça, nação,de gênero , o que necessariamente decorre da impossibilidade de orientar a produção para objetivos humanamente dignos e satisfatórios a imensa maiorias da humanidade, em uma unidade faz com que os mínimos problemas reconhecidamente urgentes como a crise ecológica, a fome, as doenças globais não possam ser de fato enfrentadas e encontrar soluções reais apesar de todas as condições técnicas ( que se encontram perversamente atreladas de forma fetichista aos objetivos expansionistas do capital) para isto já estarem dadas. Assim estas contradições que se manifestam como antagonismos sociais ( conflitos de classe, de raça, de nações e de gêneros) são manifestações incontornáveis da incontrolável, socialmente iníqua e ambientalmente perdularia ordem do Capital.

            “Assim, os antagonismos sociais em questão devem ser disputados com maior ou menor intensidade conforme o permitam as circunstâncias históricas específicas, e, sem a menor dúvida, favoreceram o capital em detrimento do trabalho durante o longo período de sua ascensão histórica. Entretanto, mesmo quando o capital sai vitorioso nessas lutas, os antagonismos não podem ser eliminados – apesar de todo o arsenal de racionalização acionado pela ideologia dominante no interesse de tal resultado – precisamente porque são estruturais. Em todas essas três situações, estamos preocupados com as estruturas vitais, e portanto insubstituíveis do capital, não com as limitadas contingências históricas (que o capital tem condições de transcender). Consequentemente, os antagonismos que em anam dessas estruturas são necessariamente reproduzidos sob todas as circunstâncias históricas que cobrem a era do capital, fossem quais fossem as relações de poder dominantes em qualquer ponto determinado do tempo.” (idem)

Se tais contradições são potencialmente destrutivas e humanamente devastadoras ainda dentro dos limites relativos da ordem sociometabólica em questão, estes defeitos se tornam potencialmente não contornáveis se uma crise estrutural do capital, ou seja a ativação de seus limites absolutos se coloca no horizonte histórico de longa duração:

Sob as condições de crise estrutural do capital, seus constituintes destrutivos avançam com força extrema, ativando o espectro da incontrolabilidade total numa forma que faz prever a autodestruição, tanto para este sistema reprodutivo social excepcional, em si, como para a humanidade em geral. Como veremos no capítulo 3, o capital jamais se submeteu a controle adequado duradouro ou a uma autorrestrição racional. Ele só era compatível com ajustes limitados e, mesmo esses, apenas enquanto pudesse prosseguir, sob uma ou outra forma, a dinâmica de autoexpansão e o processo de acumulação. Tais ajustes consistiam em contornar os obstáculos e resistências encontrados, sempre que ele fosse incapaz de demoli-los” (Meszaros,idem)

3 A crise estrutural e as quatro contradições incontornáveis:

È preciso que se diga que as crises, longe de serem disfuncionais, são momentos que se não superados de forma revolucionaria pelo trabalho como antagonista estrutural do capital, são funcionais ao Capital por que permitem estancar a pletora de valor e reconduzir o conjunto do capital social total a suas trilhas, por mais amargas que possam ser as consequências em termos de depressões, pobreza, crises politicas, guerras, se o Capital consegue impedir politicamente a subversão das suas determinações materiais e das suas armações materiais e institucionais nas formas sociais correlatas ( a divisão social hierárquica do trabalho, a forma mercantil, o dinheiro, a raça, o gênero) e no complexo de instituições no Estado ampliado ( Estado restrito mais sociedade civil), a crise acaba funcionando como um momento de reconfigurar a realidade do Capital.

Meszaros inicia seu capítulo refletindo sobre o paradoxo deste fim de século ( do XX para o XXI) e que está de forma lapidar expressa na seguinte passagem:

Hoje, a situação é radicalmente diferente e chega a ser diametralmente oposta ao que foi enquanto Marx vivia. Embora o aprofundamento da crise estrutural do capital signifique que “a realidade está começando a se movimentar em direção ao pensamento”, parece que em consequência das derrotas e falhas do movimento socialista (em especial, no passado recente), o próprio pensamento – e as indispensáveis forças materiais e organizacionais, sem as quais nem o mais válido pensamento tem condições de “agarrar as massas” e tornar-se uma força material eficaz – se recusa a caminhar na direção da realidade e “lutar por sua própria rea­

lização”. Nesse meio tempo, as necessidades das pessoas continuam frustradas e negadas, como sempre.” (idem)

Como uma advertência previa aqueles que o acusam de objetivista, Meszaros ressalta a urgência de uma reorganização programática e organizativa de uma “ofensiva socialista” que supere a fragmentação e isolamentos impostos pela internalização da “linha da menor resistência” no período histórico em que o Capital conseguiu e conseguia deslocar suas contradições. O esgotamento do reformismo de tipo social democrata ou da linha do “socialismo em uma só latrina” ( como diria Karl Radek) que se liga umbilicalmente a aceitação destes limites, por sua vez cria a situação objetiva da ausência minimamente organizada de uma vanguarda revolucionaria e internacionalmente organizada capaz de enfrentar os desafios atuais de esgotamento do sociometabolismo do capital ante seus limites absolutos.

Assim a saída para esta crise, não se dará nos limites do Capital, o que não significa um futuro redentor a humanidade, diante da atual crise a humanidade deve ser capaz de colocar uma alternativa radical e global a ordem do capital, criando uma série de mediações viáveis e historicamente tangíveis e construindo uma aliança multitudinária orientada a superação do sociometabolismo da barbárie (Alves, 2007) no qual o capital nos afogara devido a sua sanha incontrolável que se expressa na transformação da destruição produtiva em produção destruidora:

não pode haver dúvida de que o sucesso ou não desta ação corretiva (ajustada aos limites estruturais do sistema global do capital), apesar de seu caráter evidentemente autoritário e de sua destrutividade, vai depender da capacidade ou incapacidade da classe trabalhadora de rearticular o movimento socialista como empreendimento verdadeiramente internacional.”

Para Meszaros os limites absolutos do Capital se expressam no:

1 Conflito insuperável entre os microcosmos centrífugos do Capital e o mercado mundial, sem a possibilidade de um “ultraimperialismo” que fosse capaz de dirimir os conflitos interimperalistas na arena global

2 A crise ecológica ligada irremediavelmente a crescente taxa de utilização decrescente e a produção perdularia e destrutiva, que esgota as próprias possibilidades de vida na Terra

3 O emergir de demandas de igualdade substantiva ligados a libertação da mulheres como maioria oprimida dentro da divisão sociohierarquica da sociedade do capital

4 O crescente desemprego cronico que conduz a formação de um exercito de reserva estagnado e impassível de ser assimilado produtivamente, ao contrário a substituição do trabalho humano pela máquina gera a crise da forma “valor” e cria a possibilidade, apenas posta mas nunca realizada, de libertação da humanidade do reino da necessidade.

Centraremos em delinear a visão de Meszaros sobre estes quatro aspectos que para o mesmo indicam que os limites absolutos do sociometabolismo do Capital estão já visíveis e perigosamente ameaçam a própria vida na Terra.

A impossibilidade de estabelecer o “Estado mundial do Capital”

Sabemos que o Estado moderno é uma dimensão essencial do processo de desenvolvimento e reprodução permanente e autoexpansionista do Capital, para Meszaros a triade Capital-Trabalho Assalariado – Estado são os três pés sob os quais se assenta este regime sociometabólico.

            “A formação do Estado moderno é uma exigência absoluta para assegurar e proteger permanentemente a produtividade do sistema. O capital chegou à dominância no reino da produção material paralelamente ao desenvolvimento das práticas políticas totalizadoras que dão forma ao Estado moderno. Portanto, não é acidental que o encerramento da ascensão histórica do capital no século XX coincida com a crise do Estado moderno em todas as suas formas, desde os Estados de formação liberal-democrática até os Estados capitalistas de extremo autoritarismo (como a Alemanha de Hitler ou o Chile miltonfriedmannizado de Pinochet), desde os regimes pós-coloniais até os Estados pós-capitalistas de tipo soviético”( idem)

a formação histórica da sociedade do capital tem no Estado uma de suas dimensões essenciais, no entanto o escopo estatal é necessariamente limitado historicamente as esferas nacionais, neste âmbito o Estado tem um papel desde a delimitação espacial, geográfica da expansão da logica mercantil, quanto a constituição das classes, das raças e dos indivíduos, conforme nos lembrar Joachim Hirsch “ … o Estado burgues é sempre um Estado capitalista, racista e patriarcal, e os movimentos sociais que se expressam em seu aparelho e são “regulados” determinam-se por todos estes antagonismo” (Hirsch,2012)

O Estado atua como regulador e mantenedor de determinadas formas de reprodução do capital, regimes de acumulação e de regulação historicamente específicos, resultado da correlações de forças entre as classes, que se cristalizam no Estado ampliado ( de acordo com a noção gramsciana) e se encontram como um bloco de poder, de certa forma o Estado em sua materialidade histórica pode ser visto como “condensação material de uma relação social de forças” (Poulantzas,1978), constituindo desde as macrorelaçoes entre as classes e nações, quanto as relações cotidianas, do modo de vida , e a subjetividade humana. Assim Mascaro nos relembra que:

“ … de modo geral, os Estados de sociedades capitalistas constituem parcelas majoritárias da população como sujeitos de direito. O indivíduo é a pedra de toque estrutural do tecido social

capitalista, e isso se faz também por meio necessário da ação estatal. Contudo, mesmo quando o Estado reconhece formalmente figuras maiores que o indivíduo, como os sindicatos, persistem ainda os procedimentos de ligação individual entre capitalista e trabalhador, privilegiando as demandas no campo jurídico que estejam vinculadas às lutas por majoração de direitos em vínculos atomizados. Além disso, até no plano das figuras jurídicas orgânicas a forma pela qual o Estado estabelece a relação jurídica se dá sempre em termos de pessoas – sindicatos e associações só são aceitos como pessoas jurídicas, perpassados por direitos e deveres. Assim, a política e o direito impõem à luta de classes a disputa constante segundo os exatos termos gerais das formas sociais da cadeia da valorização do valor. Se o Estado pasteuriza formalmente as classes em favor da atomização individual, isto não quer dizer que acabe com a diferença de classes nem que a ignore.” (Mascaro,2014)

Avancando neste sentido Meszaros afirma que:

O que está em questão aqui é o fato de que o capital é seu próprio sistema de comando, de que é parte integrante a dimensão política, ainda que de modo algum parte subordinada. Mais uma vez, vemos aqui a manifestação prática de uma reciprocidade dialética. O Estado moderno – na qualidade de sistema de comando político abrangente do capital – é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global. Neste sentido fundamental, o Estado – em razão de seu papel constitutivo permanentemente sustentador – deve ser entendido com parte integrante da própria base material do capital. Ele contribui de modo significativo não apenas para a formação e a consolidação de todas as grandes estruturas reprodutivas da sociedade, mas também para seu funcionamento ininterrupto” (Mészáros, 2002, p.124-5).

Refletindo-se porém a fissura que existem entre os mínimos microcosmos sociais, e o macrocosmo social, onde os primeiros estão caracterizados por sua centrifugalidade, o Estado atua como um totalizador parcial de tendências contraditórias, onde a sociedade “civil” opera como uma ampla guerra de todos contra todos, o Estado confere a mínima unidade e coerência a uma totalidade cindida e anárquica, seja através do estabelecimento de regras que permitem “ as contradições se desenvolverem sem serem superadas”, seja agindo como um Terceiro imparcial que medeia os conflitos entre os sujeitos de direito trocadores de mercadorias, seja na constituição da unidade nacional, seja na criação e perpetuação de divisões raciais e de gênero necessárias a reprodução do capital, seja estabelecendo politicas de consenso, sustentando esforço bélico , garantindo a ordem sobre os subalternos com o monopólio da violência organizada etc.

Apesar disto a dimensão do Capital escapa permanentemente ao controle do Estado, pura e simplesmente por este ser nacional e local, por maior que seja, e a dinâmica do Capital seja autoexpanionista e mundial. Estes limites ficam cada vez mais evidentes quando problemas globais tentam ser resolvidos pro acordos entre Estados nacionais, teoricamente soberanos, desde conflitos armados até necessárias regulações ambientais de caráter cada vez mais urgente. O que se vê de fato é primeiro uma hierarquia imperialista onde poucos determinam o “governo do mundo”, mas diferente do sonho ultraimperialista de Kaustky os conflitos imterimperialistas,que derivam da logica centrifuga a qual não pode fugir os Estados nacionais e “seu Capital”, seguem impedindo seja o estabelecimento de uma dominação universal, seja a resolução mínima de contradições que derivam da logica mundial do Capital e não podem ser solucionados sem o poder de coerção que os Estados, mesmo os maiores e potentes, não podem impor ao universo expansivo do Capital.

Para Meszaros tais conflitos não se desconectam de certas dimensões particulares que são: conflito entre tendência ao monopólio x competição, conflitos entre a crescente socialização da produção e a apropriação altamente segregadora seja no planos das unidades nacionais seja nos marcos da divisão internacional do trabalho, divisão internacional cada vez mais complexa e as disputas pela hegemonia no sistema interestatal do Capital.

Nenhuma destas ordens de conflitos puderam ser historicamente equacionados pelo Capital, basta ver hoje a disputa entre EUA e China como potencias que disputam a hegemonia global mas estão, no fluxo de capital e divida, extremamente conectados, e é claro a permanência da maior parte dos Estados na posição de dependentes ou mesmo semicolonias das grandes potências globais.

No entanto, a coesão social não pode ser mantida a longo prazo sem enfrentar se os outros dilemas centrais, da crise do sociometabolismo homem-natureza, da demanda de igualdade substantiva para mulheres, populações racializadas, imigrantes, e a crescente transformação de massas humanas em “lixo descartável pela logica da mecanização crescente”.Tais problemas porem não podem ser enfrentado de forma satisfatória nos marcos das unidades nacionais, por serem problemas ( a crise da imigração e a falência dos acordos ambientais, são exemplos significativos) de natureza global como global é a ordem sociometabólica do Capital. Nenhum procedimento autárquico, uma utopia reacionária seja de protecionsimo como a do neofascismo, seja de experiências de “socialismo em um só pais” podem reverter tais conflitos.

Da produção destrutiva à produção destruidora, os limites ecológicos do Capital.

Como saliente Michel Lowy as bases para um pensamento ecossocialista se encontram em Marx, no entanto no tempo de Marx tais contradições se colocavam ainda de um ponto de vista limitado, devido ao próprio caráter limitado da contradição, mas já Marx advertia:

A produção capitalista […] perturba a interação metabólica entre o homem e a terra, isto é, impede o retorno ao solo de seus elementos constituintes consumidos pelo homem na forma de alimento e vestuário; daí impede o funcionamento das condições naturais eternas para a fertilidade duradoura do solo […] Todo progresso na agricultura capitalista é progresso na arte, não apenas de roubar o trabalhador, mas de roubar o solo […] Quanto mais um país […] se desenvolve com base na grande indústria, mais esse processo de destruição ocorre rapidamente. A produção capitalista […] apenas desenvolve […] ao minar simultaneamente as fontes originais de toda riqueza – o solo e o trabalhador”.[(Marx, apud Lowy 2019)

È Lowy que coloca a dramaticidade do problema que Meszaros aponta como uma das quatro contradições fatais do sociometabolismo do Capital:

“Por exemplo, na Conferência Climática de Paris em 2015, muitos países resolveram se esforçar seriamente para manter o aumento médio da temperatura global abaixo de 2º C (idealmente, eles concordaram, abaixo de 1,5º C). De forma correspondente, eles se voluntariam à implementar medidas de redução da emissão de gás carbônico. No entanto, eles não implementam mecanismos de imposição nem quaisquer consequências em caso de descumprimento e, portanto, nenhuma garantia que qualquer país irá cumprir sua promessa. Os EUA, o segundo maior emissor de carbono, é atualmente administrado por um negacionista do aquecimento global, que tirou os EUA do acordo. Mesmo se todos os países de fato cumprirem o que acordaram, a temperatura global subiria cerca de 3º C ou mais, com grande risco de mudanças climáticas terríveis e irreversíveis

Ao fim das contas, a falha fatal do capitalismo verde está no conflito entre a micro-racionalidade do mercado capitalista com seu cálculo curto-prazista de lucros e perdas, e a macro-realidade da ação coletiva pelo bem comum. A lógica cega do mercado resiste a uma rápida transformação da energia, longe da dependência de combustíveis fósseis, em intrínseca contradição com a racionalidade ecológica. A questão não é acusar os “maus” capitalistas ecocidas, em oposição aos “bons” capitalistas verdes; a culpa repousa em um sistema enraizado em uma impiedosa competição e uma corrida pelo lucro de curto prazo que destrói o equilíbrio da natureza. O desafio ambiental – construir um sistema alternativo que reflita o bem comum em seu DNA institucional – se torna intrinsecamente conectado ao desafio socialista.” (Lowy, 2019)

Como Lowy assinala “Uma teoria socialista, ou movimento, que não integre a ecologia como elemento central em seu programa e estratégia é anacrônica e irrelevante.”Meszaros coloca a centralidade da questão ecológica e revela como a incontrolabilidade e  perdulariedade do capital são as características que tornam o problema ecológico intratável nos termos do Capital:

“O capital é o impulso infinito e ilimitado de ultrapassar as barreiras que o limitam. Qualquer limite (Grenze) é e tem de ser uma barreira (Schranke) para ele. Caso contrário, ele deixaria de ser capital – dinheiro que se autorreproduz. Se tivesse percebido algum limite não como uma barreira, mas se sentisse bem dentro dessa limitação, ele teria renunciado ao valor de troca pelo valor de uso, passando da forma geral de riqueza para um modo tangível e específico desta. O capital em si cria uma mais-valia específica porque não tem como criar uma infinita; ele é o movimento constante para criar mais da mesma coisa. Para ele, a fronteira quantitativa da mais-valia é uma simples barreira natural, uma carência que ele tenta constantemente violar, além da qual procura chegar. A barreira se apresenta como um acidente a ser conquistado” (Marx, apud Meszaros, idem) 

Em Meszaros a crise ecológica revela a urgência histórica da superação de uma ordem sociometabólica orientada para o valor de troca como é o capital. Isto por que a lógica do valor de troca , meramente quantitativa e autoreferente, não permite uma avaliacao não fetichista e qualitativa como resposta as questões de “o que produzir”, “com quais recursos produzir” e “quanto produzir”.Existe uma disrupção necessária, um defeito estrutural, entre produção e consumo e ele se dá no fato de que os microcosmos produzem não orientados por uma contabilidade socialista democrática ( o que permitiria saber a demanda, sopesar os custos não só monetários, mas de forma global, ou seja na sua dimensão social, ecológica) mas sim de acordo com uma racionalidade post festum calcada na trocabilidade universal .

Isto significa que  o Capital tentou ativar o aprofundamento da rotação do capital, ignorando os limites reais e substantivos dos recursos naturais e do próprio ecossistema. Meszaros explica que ao Capital não interessa o valor de uso, senão como carcaça do valor de troca, ao Capital pouco interessa se se produz bombas ou alimentos, mas tampouco interessa a economicidade dos materiais, o que importa é realizar ( no sentido de vender)  a produção, isto leva a tendência ao decrescimento da taxa de utilização das mercadorias, o que contribui para o esgotamento precoce dos recursos e a dilapidação da própria base do desenvolvimento humano.

            “No período da ascendência histórica do capital, a capacidade do sistema de ignorar a causalidade espontânea e o ritmo da natureza – que circunscreviam e “fechavam” as formas de satisfação dos seres humanos – trouxe um grande aumento em seu poder de produção, graças ao desenvolvimento do conhecimento social e à invenção das ferramentas e dos métodos exigidos para traduzi-lo em potencialidade emancipadora. No entanto, como esse progresso teria de ocorrer de forma alienada, sob o domínio de uma objetividade reificada – o capital – que determinasse o rumo a seguir e os limites a transgredir, o intercâmbio reprodutivo entre a humanidade e a natureza teve de se transformar no oposto. O terreno da

ciência e da tecnologia viável teria de estar rigorosamente subordinado às ex­igências absolutas da expansão e da acumulação do capital. Por essa razão, ciência e tecnologia sempre tiveram de ser utilizadas com enorme seletividade, conforme o único princípio de seletividade à disposição do capital, até nas formas historicamente conhecidas dos sistemas pós-capitalistas. Assim, mesmo as formas existentes de conhecimento científico, que até poderiam combater a degradação do ambiente natural, não podem se realizar porque interfeririam com o imperativo da expansão inconsciente do capital; para não mencionar a recusa em dar andamento aos projetos científicos e tecnológicos que, se tivessem a necessária escala monumental, compensariam a piora de toda a situação. A ciência e a tecnologia só poderão ser utilizadas a serviço do desenvolvimento produtivo se contribuírem diretamente para a expansão do capital” (Meszaros, idem) 

Estando as condições de produção orientadas por tal finalidade ignora-se as causalidades naturais, que são de longo prazo, e submete-se tudo a racionalidade irracional do microcosmo produtor ( que produz de costas para sua própria sociabilidade, no que é impulsionado pela lei do valor, e a busca do “superlucro).Assim de pouco adianta o desenvolvimento científico, aventado como panaceia para a crise ecológica, visto que a própria ciência é uma força produtiva do Capital, e só pode gerar soluções orientadas a alavancar a própria lógica destrutiva do valor de troca, pelo valor de troca.

Sob o signo do capital estamos sob o signo da incontrolabilidade, Lowy se pergunta:

            “Mudanças climáticas representam a expressão mais ameaçadora da crise ecológica no planeta, colocando um desafio sem precedente histórico. Se for permitido que a temperatura global exceda níveis pré industriais em cerca de mais de 2º C, cientistas projetam consequências cada vez mais terríveis, tais como o nível dos mares subir tanto que arriscaria submergir boa parte das cidades marítimas, de Dacca em Bangladesh à Amsterdã, Veneza ou Nova York. Desertificações de larga escala, alteração do ciclo hídrico e da produção agrícola, eventos climáticos mais extremos e frequentes e perda de espécies. Nós já estamos em 1º C. Será que vamos chegar a um ponto de inflexão para além do qual o planeta pode suportar a vida civilizada ou mesmo tornar-se inabitável? (Lowy,2019)

Meszaros esclarece que a razão de fundo para a urgência da crise ecológica está na impossibilidade do capital se auto-controlar, como vimos em relação a contradição entre Estado nação e mercado mundial, o capital dilacerado entre microcosmos orientados irremediavelmente para o valor de troca, e marcados por uma hierarquia brutalmente desigual e autoritária sob povos e classes subalternas ( para não falar dos indivíduos subsumidos as determinações de sua classe , raça, gênero e nação) não pode se impor restrições nem por um minuto, que dirá por largos períodos de tempo.

Ao lado do exemplo acima de Lowy, sobre a mudança climática, Meszaros nos relembra a hipoteca atômica que paira sob o futuro da humanidade e demonstram a incapacidade do capital de ter uma mínima racionalidade no sentido legítimo, que ele chama de contabilidade socialista ( ou seja um controle de recursos naturais, humanos e sociais que tenha por metro o valor de uso e as necessidades reais dos seres sociais, ao lado do necessário equilíbrio do ecossistema em que todos vivemos):

Com relação à forma como o sistema do capital espezinha o tempo (em perfeita correspondência à desastrosa interferência nas determinações objetivas da causalidade) na vã convicção de que sempre conseguirá se safar, basta que nos lembremos do legado atômico. Mesmo que se queira cultivar a ideia de que os desastres nucleares jamais acontecerão, apesar das dezenas de milhares de armas nucleares (e nada à vista para controlá-las e eliminá-las, com a remoção das causas de sua existência), nem mesmo a maior credulidade poderá minimizar o peso deste legado atômico, pois ele significa que o capital está impondo cegamente a incontáveis gerações – que se estendem no tempo por milhares de anos – a carga de, mais cedo ou mais tarde e com certeza absoluta, ter de lidar com forças e complicações totalmente imprevisíveis. O futuro distante da humanidade terá de ser perigosamente empenhado porque o sistema do capital deverá sempre seguir seu rumo de atuação dentro da mais estreita escala de tempo, desprezando as consequências, mesmo que estas apontem a destruição completa das condições elementares da reprodução sociometabólica.” (Meszaros,idem) 

            Isto inviabiliza qualquer medida de controle que só seria possível ao estabelecermos os limites racionais de utilização e conservação de recursos orientados pelo valor de uso,mas:

            “Hoje, a interferência irresponsável na causalidade da natureza é a norma; a pesquisa de projetos de produção realmente emancipadores, a rara exceção. Os recursos são entregues em escala prodigiosa a projetos militares totalmente perdulários e inerentemente perigosos, afastando implacavelmente as reclamações que emanam das necessidades frustradas dos seres humanos” (Meszaros, idem) 

Assim a incontrolabilidade do Capital alcançou tal nível de clarividência que não podemos mais negar a realidade da assertiva marxiana, estamos no ponto em que as forças produtivas se transformaram em forças destrutivas e a Destruição paira sob nossas cabeças, a tal ponto que nem podemos garantir futuro para a vida humana, que dizer de uma vida significativa, cumpre-se por fim  a afirmação de Leon Trotsky : “ As forças produtivas não estão apenas maduras para a Revolução, elas começam a apodrecer “ (Trostky, 2008) 

Por sua própria racionalidade o Capital é e sempre será incontrolável, assim ativa-se um limite absoluto do sociometabolismo do capital por que um problema real, é em seus termos insolúvel, e este problema não pode ser contornado pelo capital ( vide só o exemplo da dependência de combustível fóssil e a percepçao do carater insustentavel ecologicamente falando,desta dependencia):

            “O impulso expansionista cego do sistema do capital é incorrigível, porque não pode renunciar à sua própria natureza e adotar práticas produtivas compatíveis com a necessidade de restrição racional em escala global. Praticando uma restrição racional abrangente, o capital de fato reprimiria o aspecto mais dinâmico de seu modo de funcionamento, cometendo suicídio como sistema de controle sociometabólico historicamente único. Esta é uma das principais razões por que a ideia de um “governo mundial” globalmente racional e consensualmente limitador baseado no sistema do capital – necessariamente parcial em sua única forma viável de racionalidade – é uma contradição gritante. A transferência das condições de produção e reprodução social para o exterior das empresas e indústrias particulares tem como consequência que, quando esse processo se completar historicamente, o capital como sistema de controle se extralimitará de maneira irreversível. Não pode ser revertido para uma condição anterior (menos integrada e expandida globalmente), nem pode continuar em seu impulso expansionista global na escala requerida.” (Meszaros, idem)

             Para o Capital obviamente diria Marx, “tempo é tudo e o homem não é nada, ou melhor é a carcaça do tempo”, na verdade parafraseando Marx “para o capital qualquer coisa não é nada, é a carcaça do Capital em seu movimento autoexpansivo”.

            A luta das mulheres e a demanda por igualdade substantiva 

Conforme nosso autor, “a regulamentação economicamente sustentável da reprodução biológica dos seres humanos é uma função mediadora primária do processo sociometabólico. Portanto, a articulação historicamente mutável dos relacionamentos humanos é da maior importância nessa questão”. (Meszaros, idem)

A explosão da luta feminista, e nos acrescentaríamos da luta antirracista e antilgtbfobica, colocam ao capital uma demanda e desafio ao qual ele por sua própria natureza intrínseca não pode dar vazao. Por mais que o neoliberalismo tenha tentado incorporar as demandas em questão ,com métodos de inclusão cosmético ( a representatividade) ou com medidas paliativas ( resultado da luta real destes setores mais oprimidos da classe trabalhadora) o Capital precisa destas lógicas assimétricas e desiguais para operar. O racismo e o patriarcado são parte necessária do modus operandi do Capital que se baseia numa hierarquia socio-racial e de gênero iníqua e desumana, onde a igualdade substantiva, para além da forma de relação entre os portadores de mercadoria ( como sujeitos de direito), não pode ter vez alguma

Para isto seria necessário desconstituir o controle sociometabólico alienado que caracteriza o capital, seria necessário desenredar a superexploração do trabalho, mecanismo vital na vasta e gigante periferia mundial, dos critérios de etiquetacao e classificação social segregacionistas com base em nação, raça e gênero.

Para o húngaro seria impossível solicitar ao um sistema incontrolável, baseado no antagonismo de classe, a dissolução de qualquer dos antagonismo que o sustentam:

            “Pelas mesmas razões, não é menos problemático pensar na articulação e no funcionamento interno sustentável do “microcosmo” do sistema do capital baseados na existência de uma igualdade verdadeira. Isto exigiria a existência de um “macrocosmo” socioeconômico abrangente totalmente diferente – e harmonioso – ou postular a misteriosa transformação das “microestruturas” hipostatizada, verdadeiramente igualitárias, num conjunto antagônico. Na verdade, isto implicaria a complicação adicional de se ter de explicar como é possível assegurar a reprodução simultânea desse todo antagônico e das partes livres de antagonismos que o constituem. Pares isolados podem ser capazes de ordenar (o que certamente fazem) seus relacionamentos pessoais em verdadeira igualdade. Na sociedade contemporânea existem até mesmo enclaves utópicos de grupos de pessoas que interagem comunitariamente e podem se afirmar engajados em relações interpessoais não hierárquicas humanamente satisfatórias e em formas de criar os filhos muito diferentes da família nuclear e suas fragmentações. Não obstante, nenhum desses dois tipos de relação pessoal pode se tornar historicamente dominante no quadro do controle sociometabólico capitalista. Sob as circunstâncias prevalecentes, o übergreifendes Moment determina que os microcosmos da reprodução devem ser capazes de se aglomerar num conjunto abrangente que não pode, de forma alguma, funcionar numa base de verdadeira igualdade. O menor de todos os “microcosmos” da reprodução deve sempre proporcionar sua participação no exercício global das funções sociometabólicas, que não incluem apenas a reprodução biológica da espécie e a transmissão ordenada da propriedade de uma geração à outra”  (meszaros,idem)

             Mais uma vez o Capital esbarra com uma contradição, gerada pelo próprio desenvolvimento histórico, que não encontra vias de solução dentro de seu sociometabolismo, ao contrário exige-se “que os seres humanos mudam de cabo a rabo seu modo de ser” (Marx) para que o patriarcado e o racismo possam desaparecer, muito embora apenas isto não seja suficiente, no espírito de Meszaros podemos dizer que somente numa sociedade que fosse capaz de estabelecer as mediações materiais e institucionais radicalmente democráticas e substantivamente igualitárias, seria possível colocar no caminho correto a dissolução destas hierarquias que são na verdade momentos, tanto quanto a classe, da reproducao do Capital.

Imannuel Wallerstein resume bem este nexo do ponto de vista econômico:

            “En un sistema como este , a aportacion del trabajo no assalariado, compensa el bajo nivel del ingresso salarial y, por conseguiente,representa em la practica, una subvencion indirecta a los empresarios de los assalariados que pertenecem a estas famílias.El sexismo permite que no pensemos em ello.El sexismo no es solo la asignacion de un trabajo diferente o incluso menos apreciado a las mujeres , como el racismo no es solo xenofobia.El racismo trata de mantener la gente em el interior del sistema de trabajo y no de expulsar-la de él; el sexismo permite el mesmo objetivo.” (Wallerstein e Balibar, 1988) 

A divisão sexual do trabalho ao lado da racial, permitem a segregação, diferenciação da mão-de-obra, além de permitir a própria reprodução da força de trabalho. O trabalho domestico não remunerado permite ao Capital incorporar uma grande massa de trabalho nao-pago e para isto como diria Roswita Solws:

            O “valor é o homem  não o homem como ser biológico , mas  o homem como depositário histórico da objetivação valorativa.  Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram  como autores e executores da socialização pelo valor. Eles  puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos  fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objetivo do “trabalhador” abstrato —antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior —, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra.” (apud … Menegatti  2017) 

Há uma evidente correlação quanto ao racismo, conforme Almeida:

            “No problema do racismo e do nacionalismo repousa a questão do universalismo. Ao mesmo tempo em que o nacionalismo (e o racismo) são modos de internalizar conflitos e contradições que se vinculam às particularidades de cada formação social, há também o fato de que as sociedades capitalistas se constituem por uma dinâmica internacional de relações comerciais e trocas mercantis que envolvem a criação de laços que transcendam os particularismos das culturas locais. Ainda que minimamente, parâmetros culturais baseados em ideologias universalistas, cosmopolitas e, portanto, politicamente impessoais, neutras e pautadas pela “igualdade formal” terão que ser absorvidos pelas sociedades. Segundo Imannuel Wallerstein, esta operação é articulada pelo discurso da meritocracia, que é “não apenas economicamente eficaz, mas também um fator de estabilização política”.  Isso porque a soma do racismo histórico e da meritocracia permitiria que a desigualdade racial vivenciada na forma de pobreza, desemprego e privação material fosse entendida como “falta de mérito” dos indivíduos.” (Almeida, 2018) 

Desta forma problemas que estão na logica do Capital são transformados em problemas individuais seja de mérito, seja de preconceito no âmbito dos indivíduos, está claro que tais demandas reais não podem encontrar vazão , no mecanismo sociohierarquico que os reproduz.

            “Assim, dadas as condições estabelecidas de hierarquia e dominação, a causa histórica da emancipação das mulheres não pode ser atingida sem se afirmar a demanda pela igualdade verdadeira que desafia diretamente a autoridade do capital, prevalecente no “macrocosmo” abrangente da sociedade e igualmente no “microcosmo” da família nuclear. No fundo, esta não deixa de ser profundamente autoritária devido às funções que lhe são atribuídas num sistema de controle metabólico dominado pelo capital, que determina a orientação de indivíduos particulares por meio de seu sistema incontestável de valores. Este autoritarismo não é mera questão de relacionamentos pessoais mais ou menos hierárquicos entre os membros de famílias específicas. Mais do que isso, diz respeito ao imperativo absoluto de proporcionar o que se espera do tipo de família historicamente evoluído, imposto pela indispensável subordinação do “microcosmo” específico de reprodução às exigências tirânicas de todo o processo reprodutivo. A verdadeira igualdade dentro da família só seria viável se pudesse reverberar por todo o “macrocosmo” social – o que, evidentemente, não é possível. Esta é a razão fundamental pela qual o tipo de família dominante deve estar estruturado de maneira apropriadamente autoritária e hierárquica. Deixando de se adaptar aos imperativos estruturais gerais do modo de controle estabelecido – conseguindo afirmar-se nos ubíquos “microcosmos” da sociedade, na validade e no poder de autorrealização dos intercâmbios humanos baseados na verdadeira igualdade –, a família estaria em direta contradição ao ethos e as exigências humanas e materiais necessárias para assegurar a estabilidade do sistema hierárquico de produção e de reprodução social do capital, prejudicando as condições de sua própria sobrevivência.” (Meszaros,idem) 

A radicalidade ontológica de Meszaros o leva a colocar sempre de forma límpida o que é central e acessório, dentro dos limites do Capital é impossível realizar uma verdadeira igualdade substantiva, que no entanto se faz urgente, seja para classes, raças e o gênero oprimido. Com visão e lucidez históricas Meszaros diagnostica:

            “Tudo isso indica uma profunda crise que afeta todo o processo de reprodução do sistema de valores do capital, prenunciando conflitos e batalhas, estando entre estes a luta pela emancipação das mulheres e sua demanda de igualdade significativa – um elemento de crucial importância. Como o modo de funcionamento do capital em todos os terrenos e todos os níveis do intercâmbio societário é absolutamente incompatível com a necessária afirmação prática da igualdade substantiva, a causa da emancipação das mulheres tende a permanecer não integrável e no fundo irresistível, não importa quantas derrotas temporárias ainda tenha de sofrer quem luta por ela.” (Meszaros, idem) 

Os socialistas do seculo XXI devem pensar urgentemente na centralidade seja da luta ambiental, quanto da antipatriarcal e antiracista, neste sentido a reflexão ontologicamente orientada de Meszaros traz implícito o aviso de que tais lutas são anticapitalistas de forma objetiva, cabendo no entanto aos revolucionários constituir a subjetividade revolucionaria a altura destes desafios oriundos das contradições que emergem do solo genético do Capital.

            A humanidade como “carcaça do tempo” se torna descartável? 

As quatro contradições aqui funcionam como momentos de uma totalidade, nenhuma pode ser plenamente captada sem a outra , existe uma dimensão racial e de gênero tanto no conflito entre Mercado x Estados nacionais, quanto na crise ambiental. A quarta contradição diz respeito ao descarte, e ao mesmo tempo a impossibilidade logica e histórica deste,do trabalho humano vivo do processo imediato de produção. Na vida diária isto se reflete nos problemas do desemprego, do subemprego, da precarização e agora da uberizacao do trabalho humano. Ha também uma dimensão de gênero e racial fortíssimas, pois são negros, asiáticos, latinos e mulheres os primeiros a serem devorados pela logica desumana do descarte da humanidade em prol do movimento autoexpansivo do Capital.

            “Esse fato é indiscutivelmente concomitante com o aparecimento de grandes perturbações no processo de expansão e acumulação do capital das últimas duas décadas, que assumiu a forma de uma perigosa tendência ao nivelamento do índice diferencial da exploração já mencionado” (meszaros, idem) 

O filosofo africano Achille Mbembe nos fala sobre os efeitos práticos do “nivelamento por baixo da humanidade”, ao invés do capital elevar a humanidade trabalhadora as melhores condições ( da mao de obra, branca,masculina e euroamericana, do apogeu social-democrata fordista), o Capital ira rebaixar a humanidade e “no mundo do neoliberalismo todo homem e mulher deste mundo tera o seu dia de Negro” , para Mbembe o Negro é uma metáfora do “homem coisa, do homem ouro, homem mercadoria”, o desemprego estrutural e os mecanismo de precarização do trabalho tornam esta sombria profecia a realidade de nosso tempo, o fenômeno da necropolitica e do encarceramento em massa são duras faces do desastre humano ao qual o incontrolável Capital nos tem submetido.

            “Imaginava-se que o “excesso de população” ou a “população redundante” dos livros de quem grita sermões sobre os perigos da “explosão populacional” seria simplesmente a qualificação numérica de “gente demais”, em relação à disponibilidade de meios de subsistência, quantificada essencialmente em termos de alimentos. A realidade claramente identificável de nossos dias se mostrou radicalmente diferente. Primeiro, dela não se caracterizou pela incapacidade da sociedade de oferecer a quantidade necessária de produtos agrícolas para alimentar a população, sob condições em que se desperdiçam grandes quantidades de alimentos – e seu disperdício é até denunciado em círculos capitalistas competidores – no interesse da maximização de lucros, por exemplo no quadro da “política agrícola comum” europeia. E, segundo, “explosão da população” não é uma categoria genérica de “gente demais”, mas é definida por determinações sociais muito precisas – e muito perigosas em suas  implicações. Pois o que hoje se chama de “excesso de população” significa, cada vez mais, “trabalho supérfluo”. Pior que isso, esse “excesso de população” não pode ser simplesmente deduzido de um número total abstrato, como faziam os tradicionais contos de fadas sobre o crescimento da população e de seu controle malthusiano ou neomalthusiano. O atual “excesso” ou “população redundante” se refere ao “excesso em relação às necessidades”, num sentido muito limitado. Como acontece com tudo o que é submetido ao domínio do capital, também aqui testemunhamos o impacto de um processo contraditório” (meszaros,idem)

             Desde Malthus o problema do “excesso de população” entrou para as ladainhas preferidas do Capital, no esforço de transformar em problema biológico o que é o resultado de determinada forma histórica de sociometabolismo.A crescente “redundância do ser humano”, coloca em questão os limites absolutos do Capital, pura e simplesmente por que o Capital não pode existir sem trabalho humano, mas, ao mesmo tempo, procura na racionalidade microscósmica das empresas eliminá-lo, num processo crescente de “maquinização da produção”.Nenhum dos remédios do Capital ao longo de seu apogeu mostrou-se de fato eficiente do ponto de vista humano:

            “as várias soluções tentadas podiam, por períodos mais longos ou mais curtos, segundo as suas circunstâncias sócio-históricas específicas, apenas aliviar temporariamente o desemprego de massa. Ao fim, os remédios keynesianos tiveram que ser rejeitados nos ‘países capitalistas avançados’ do Ocidente quando seus custos começaram a se tornar inadministráveis. Contudo, as soluções monetaristas alternativas tentadas após a fase keynesiana com enorme zelo e grande entusiasmo político − tanto pelos governos trabalhistas como por seus rivais conservadores −, provaram ser um fracasso não menor que as predecessoras.” (meszaros, idem) 

            O Capital deve produzir cada vez mais, a custo cada vez menor, para vender… no entanto neste movimento ele deve reduzir o escopo daqueles que compram, visto que a maioria dos que compram são trabalhadores assalariados, mas se reduz constantemente a massa salarial como manter os níveis de consumo? Diversas formas históricas foram testadas, mas o defeito estrutural como nos diz Meszaros, entre produção e consumo aqui se apresenta sob a forma do luxo de milhões convivendo com a miséria de milhões, pura e simplesmente por que quem trabalha, ou cada vez mais quer trabalhar, mas não consegue, nao pode alcançar os meios monetários para os produtos de que necessita.

Ao longo de sua ascensão histórica o problema parecia deslocável e irrelevante, com base no pressuposto de uma crescente produção e de uma crescente demanda, desta forma:

            A ameaça do desemprego era apenas latente no modo de regulação da reprodução sociometabólica do capital ao longo de séculos de desenvolvimento histórico. O “exército de reserva” do trabalho não só não representava uma ameaça fundamental para o sistema enquanto se mantivesse a dinâmica da expansão e da acumulação lucrativa do capital, mas, ao contrário, era um elemento bem-vindo e necessário para sua boa saúde. Enquanto as contradições e os antagonismos internos do sistema puderam ser geridos por “deslocamentos expansionistas”, os níveis de piora periódica do desemprego podiam ser considerados estritamente temporários, a serem superados no devido tempo, com tanta certeza quanto à noite se seguir o dia, gerando a ilusão de que o sistema “natural” de reprodução socioeconômica nada teria a temer porque seus ajustes mais cedo ou mais tarde seriam sempre executados com sucesso pelas “leis naturais”. (Meszaros, 2002) 

Conforme Alves (2007) devemos entender o processo de ascensão histórica do Capital também como um processo permanente de invenção do precariado:

            “Uma das determinações estruturais do modo de produção e reprodução capitalista é a constituição sistêmica, a partir de processos de precarização do trabalho vivo, de formas históricas de precariedade social. A principal forma histórica de precariedade social é o sistema do trabalho assalariado que predomina nas sociedades burguesas há séculos. Desde o século XVI o capitalismo moderno têm ampliado as condições de precariedade social de homens e mulheres despossuídos da propriedade dos meios de produção da vida material. A expansão do modo de reprodução sócio-metabólica do capital significou a constituição ampliada de uma superpopulação relativa, totalmente à mercê da lógica do mercado (ou do que Polanyi caracterizou como sendo um “moinho satânico”). 

O que se torna grave hoje é  que esta precariedade de parcial, se torna estagnada e segue sua extensão ao invés de se manter controlada, o que de per si já e ruim, ela se torna um câncer a corroer a vida de milhões diariamente.

Passaram-se os tempos da doce ilusão de uma capitalismo que tinha gerado uma “classe trabalhadora integrada”, mesmo que “alienada”, ou o tempo em que se acreditava que os problemas crônicos de desemprego, fome, violência social e pobreza eram tipicas de um “terceiro mundo” racializado e que estes seriam dissolvidos quando todos chegassem ao paraíso perdido do “desenvolvimento”.

Acreditava-se que este processo fosse desejável e natural na “periferia do Terceiro Mundo” e devesse ser imposto no interesse dos futuros benefícios que viriam no devido tempo, com a mesma certeza de que à noite se segue o dia, como resultado do “desenvolvimento” capitalista e da “modernização” também na “periferia”. Entretanto, quando a mesma devastação começa a ser a regra também nas partes idealmente “avançadas” do universo social, ninguém mais pode fingir que tudo está bem neste melhor de todos os mundos possíveis. Nesse ponto, as pessoas são submetidas à experiência absolutamente desorientadora da inversão da ordem do fluxo histórico, como se tivessem de viver a realidade como um filme que fosse projetado do fim para o começo. Pois o que está sendo trazido para as suas condições atuais de vida é o que já deveria ter ficado para trás, num passado de pesadelo, para nunca mais voltar. Nessas condições, até mesmo os apologistas cegos do sistema, como Hayek, teriam dificuldade em cantar – mesmo diante de uma plateia ansiosa por ser tranquilizada – a sua velha canção, como foi composta originalmente. Pois a experiên­cia inacreditável não é cinematográfica nem imaginária, mas dolorosamente real. De fato, ao ver a forma como se realizam as tendências intrínsecas da concentração e da centralização do capital – sob o imperativo da reprodução autoampliada –,  não é muito difícil perceber que a multiplicação incontrolável da “força de trabalho supérflua” representa não apenas uma drenagem enorme de recursos do sistema, mas também uma carga potencialmente explosiva extremamente instável”  (idem) 

Há aqui um acordo total entre Meszaros, e o filosofo Achille Mbembe citado acima, ambos falam da mesma coisa mas de lugares diferentes.Isto por que esta contradição se inscreve na própria natureza estrutural do Capital, se o ser humano está a serviço da logica autoexpansionista do Capital nada mais logico do que eliminá-lo a medida que ele não seja mais necessário.

O recrudescimento penal, que Achille conceitua na sua forma mais brutal e racista, a necropolítica, é uma consequência das tendencias que Meszaros delineava:

            “Hoje estamos testemunhando um ataque em duas frentes à classe operária, não apenas nas partes “subdesenvolvidas” do mundo, mas também, com implicações perigosas para a viabilidade continuada do modo estabelecido de reprodução sociometabólica, nos países capitalistas avançados. Estamos testemunhando: 1) um desemprego que cresce cronicamente em todos os campos de atividade, mesmo quando é disfarçado como “práticas trabalhistas flexíveis” – um eufemismo cínico para a política deliberada de fragmentação e precarização da força de trabalho e para a máxima exploração administrável do trabalho em tempo parcial; e 2) uma redução significativa do padrão de vida até mesmo daquela parte da população trabalhadora que é necessária aos requisitos operacionais do sistema produtivo em ocupações de tempo integral.” (Meszaros, idem)

             A altura atual dez anos após a crise de 2008 o capital aprofunda a precarização, uberizacao do trabalho a a alia a uma politica de “austeridade permanente”, que, no entanto, não cria para ninguém a ilusão de estar “saindo da crise”.Ao contrario o discursos permanente de crise, se alia a um descredito profundo das instituições do Capital que deveriam zelar “pelas pessoas”, como o Estado nacional. No fim do capitalismo tentando sobreviver, há Hitler, dizia Aime Cesaire, se hoje estamos assistindo o recrudescimento mundial do neofascismo é devido à incapacidade do sistema de lidar com sua contradições e de outro lado ao fosso entre a realidade e  o pensamento no sentido de Meszaros, por que a esquerda revolucionaria tem falhado em organizar um “programa de transição” que seja minimamente capaz de alcançar as massas humanas cada vez mais precarizadas e violentadas pelo desemprego cronico, pobreza, fome, genocídio, encarceramento e outros fenômenos derivados da incontrolabilidade do Capital.

Meszaros coloca o dedo na ferida ao indicar a verdadeira indissolubilidade deste dilema, que está no Capital e não numa suposta inevitabilidade do “desemprego tecnológico”.

            “Com certeza, tudo o mais permanecendo igual, a alternativa racional ao inevitável impacto desestabilizador do desemprego seria uma grande redução no número de horas passadas no local de trabalho, digamos a metade, de forma a se fazer sentir e se ajustar ao porte do problema, dando oportunidade de emprego a muitos milhões. Mas, é claro, tudo o mais não é igual. Pois a adoção desta solução sob as condições atuais de produção geraria ipso facto o “lazer” (ou seja, tempo livre à disposição dos indivíduos) e a instabilidade que o acompanha em escala inimaginável. Assim, mesmo se uma solução como esta fosse economicamente viável dentro da estrutura de um sistema orientado para a maximização de lucros e acumulação – o que ela não é, como demonstra a rejeição sistemática até mesmo das demandas modestas dos sindicatos de redução da carga horária semanal –, a adoção deste curso de ação ainda iria produzir dinamite social na ordem social dada, totalmente sem rumo.

Pois, sob as condições de vida atuais, o único objetivo praticável que poderia aspirar a receber legitimidade social é o que é estreita e necessariamente determinado pelo capital, como a força controladora e o princípio orientador absoluto da reprodução sociometabólica.”(Meszaros,idem)

A humanidade dança sob o signo da Catástrofe, não existe de fato alternativa de futuro para a vida sobre a Terra, humana ou não humana, sob a ordem sociometabolica do Capital. Se alguém pensar em exagero procure refletir seja sob a fome e pobreza de bilhões, a catástrofe ambiental que dizimou milhoes de especies e determinou a entrada no Antropoceno (Lowy,2019), seja sob a hipoteca atômica sob a égide da qual vivemos,a ameaça de mudança climática com efeitos não previstos e aterradores sob a especie humana. Tudo isto constitui no dizer de Meszaros “o desafio e o fardo do tempo histórico ” ao qual não podemos escapar, para que a historia não se torne como diria James Joyce “ um pesadelo do qual estou tentando me libertar”.

O Legado de Meszaros e de Para Além do Capital na aurora da terceira década do século XXI 

            “A sombra da incontrolabilidade, pelas razões discutidas acima em relação a todos os quatro conjuntos de problemas associados aos limites absolutos do sistema do capital, está cada vez mais escura. Sob as condições de sua ascendência histórica, o capital teve condições de administrar os antagonismos internos de seu modo de controle por meio da dinâmica do deslocamento expansionista. Agora estamos diante não apenas dos antigos antagonismos do sistema, mas também da condição  agravante de que a dinâmica expansionista do deslocamento tradicional também se tornou problemática e, em última análise, inviável.

Isto é verdade não apenas no que se refere à contradição entre o capital transnacional e os Estados nacionais, assim como a invasão do ambiente natural devido aos imperativos da reprodução autorreprodutora, mas também com relação aos limites estruturais absolutos encontrados pela transformação do tradicional “exército de  reserva do trabalho” numa explosiva “força de trabalho supérflua” – ainda assim e ao mesmo tempo mais necessária do que nunca para possibilitar a reprodução ampliada do capital –, com implicações particularmente ameaçadoras para todo o sistema resultantes da desestabilização de seu núcleo. Com relação à demanda de igualdade substantiva, a que o capital é absolutamente avesso, ela representa um problema diferente mas não menos sério. Pois a demanda afirmou-se nas últimas décadas de forma irreprimível, trazendo consigo complicações insolúveis para a “família nuclear” – o microcosmo da ordem estabelecida – e, dessa forma, dificuldades proibitivas para a garantia da reprodução continuada do sistema de valores do capital.”(idem) 

Certos pensadores tem a capacidade de sintetizar os dilemas de sua época, aparentemente Meszaros é um destes gigantes do pensamento, que diferente do que pensava Hegel ( a filosofia é como a Coruja de Minerva, que só se levanta ao anoitecer”  capazes também de colocar dilemas muito além do seu horizonte histórico. Além de Marx em quem Meszaros se inspira, são poucos aqueles capazes de sintetizar as tendencias de longo prazo de uma época.

Esta clarividência histórica não é resultado de nenhum dom profético,mas sim da aplicação de um método capaz de captar as tendencias do seu tempo.

Sobre  tempo é que eu gostaria de direcionar aqueles que procuram penetrar no pensamento do húngaro. Meszaros estava ciente de quão gravosas são as consequências e os dilemas derivados do tempo, e no espírito do seu mestre, Gyorg Lukacs, entendia que “a irreversibilidade do tempo histórico” é uma lei elementar da realidade.

O sistema do capital orientado pelo valor de troca e seu expansionismo infinito tem ignorado uma lei elementar da matéria, a irreversibilidade do tempo, tais consequências desastrosas a longo prazo, no entanto, não se manifestavam no momento da ascensão histórica da ordem sociometabólica do capital, pois o capital tinha largo espaço geográfico e social para devassar e assim deslocar suas contradições. Aqueles entre nós que ignoram o quao perto do abismo nos encontramos, mesmo entre os socialistas, devem refletir a luz das transformações irreversíveis ou dificilmente contornáveis, com as quais o Império do Capital irresponsavelmente colocou a humanidade.

Tal irresponsabilidade histórica, com as futuras gerações de milhares de anos, deriva-se da lógica intrínseca de valorização quantitativa do valor, e da radical cisão entre produção e controle, produção e consumo e produção e circulação que caracterizam , para Meszaros, a logica do Capital.

O pensamento ecossocialista, com o qual Meszaros estabelece fecundo dialogo é responsável por trazer aos socialistas a consciência da urgência de nossos dilemas:

            “A civilização capitalista industrial moderna é um trem suicida que avança, com rapidez crescente, em direção a um abismo: as mudanças climáticas, o aquecimento global. Trata-se de um processo dramático que já começou, e que poderá levar nas próximas décadas a uma catástrofe ecológica sem precedentes na história humana: elevação da temperatura, desertificação das terras, desaparecimento da água potável e da maioria das espécies vivas, multiplicação dos furacões, elevação do nível do mar – até que Londres, Amsterdã, Veneza, Xangai, Rio de Janeiro e demais cidades costeiras fiquem debaixo d’água. A partir de um certo nível de elevação da temperatura, será ainda possível a vida humana neste planeta? Ninguém pode responder com segurança a esta pergunta.” (Lowy,  2019)

O pensamento de Meszaros nestes tempos de sociometabolismo da barbárie e necropolitica deve nos  servir como guia rumo a uma alternativa , esta alternativa no entanto não pode ser a “da linha da menor resistência por que a urgência do tempo e o fardo que o capital nos lega exigem uma resposta radical e ontologicamente global ao sociometabolismo da barbarie. Trata-se de contrapor a politica do desespero neoliberal do ”nao há alternativa”, uma politica radical de uma alternativa materialmente viável e comprometida com o desafio da transcendência das mediações alienadas do capital, da mercadoria, do dinheiro, do trabalho assalariado, da família patriarcal, do racismo e da violência que massacram os povos.

Fechemos este texto com as palavras do mestre magiar, que a uma situação aparentemente desesperada contrapõe a radicalidade de uma opção politica e revolucionaria:

            “Assim, a necessidade de uma transição para uma ordem social controlável e conscientemente controlada pelos indivíduos, como defende o projeto socialista, continua na agenda histórica, apesar de todos os fracassos e decepções. Naturalmente, esta transição exige um mudança de era – um esforço sustentado de ir além de todas as formas de dominação estruturalmente arraigadas – que não pode ser imaginada sem uma reestruturação radical das formas e dos instrumentos existentes de reprodução sociometabólica, em contraste com a tentativa de acomodar os objetivos socialistas às restrições paralisantes das condições herdadas, como aconteceu no passado. Pois a raison d’être do projeto socialista é reter a consciência dos objetivos estratégicos de transformação, mesmo sob as condições mais adversas, quando o poder da inércia puxa na direção oposta: a da ”linha de menor resistência”, que leva à revitalização da incontrolável força controladora do capital.” (Meszaros,idem) 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

Alves, Giovanni . Dimensões da Reestruturação Produtiva . Praxis Curitiba 2007

Almeida,Silvio Luiz. O que é racismo estrutural. Editora Letramento Sp 2018

Balibar,Etiene e Wallerstein,Immanuell. Raza nacion e Classe.Iepala Madri 1988

Lowy, Michael. Lowy: Historia, Razoes e Ética do Ecossocialismo in outraspalavras.net/pos-capitalismo 2019

Lowy, Michael. Michael Lowy reformula a opção ecossocialista. In outraspalavras.net 2019

Luce, Mathias Seibel. A teoria do subimperialismo  em Ruy Mauro Marini. Contradições do capitalismo dependente e a questão do padrão de reprodução do capital .A historia de uma categoria. Porto Alegre Maio de 2011

Menegatti, Jessica Cristina Luz. Dissociaçao-valor: ruptura com a mulher ontológica pela análise da mercadoria . Revista Limiar Vol 4 N 7 2017

Meszaros, Itsvan. Para Além do Capital. Rumo a uma teoria da transição. Boitempo Editorial SP 2002