Governo Bolsonaro, Estado forte? Bonapartismo e disputas pela recomposição do bloco do poder

Sostenes B R Silva, de Feira de Santana, BA
EBC

O golpe de 2016 representa a colocação em pratica de uma contrarrevolução preventiva que, por sua vez, procura articular e aplicar um projeto de país calcado nos interesses do imperialismo e da classe dominante local, que não negando o seu passado, aceita cada vez mais um lugar semicolonial na divisão internacional do trabalho. Caso consigam, além de uma realocação do Brasil na divisão internacional do trabalho, de caráter semicolonial, e no sistema de Estados, será assentada com base na hiper-superexploração do trabalho, o que seria um aprofundamento da superexploração do trabalho característica do capitalismo periférico dependente, conforme Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes.

O objetivo aqui, no entanto, é tentar visualizar os tempos quentes da conjuntura, esta que se abre em 2015-2016 com a emergência da contrarrevolução preventiva que articulou os interesses da classe dominante, dos grandes monopólios internacionais, nacionais, rentistas, industriais, do agronegócio, com uma classe média enfurecida e dotada de uma ideologia ultrarreacionária e conservadora de caráter protofascista. Dentro desta conjuntura reacionária que foi pouco a pouco se escalando, tivemos diversas conjunturas, inclusive momentos em que teria sido possível reverter a tendência reacionária como, por exemplo, na Greve Geral de 2017 aliada às denúncias contra o moribundo Michel Temer.

Já defendemos anteriormente que a deposição do Governo Dilma e os conflito intraburgueses, aliados à perda de legitimidade da chamada Nova República, levaram o bloco no poder neodesenvolvimentista à dissolução e instauraram uma espécie de “crise de incapacidade hegemônica” para usarmos a expressão de Nicos Poulantzas. Que significa isto? Que, apesar de haver uma projeto neocolonial em curso, ele se encontra ainda sem a necessária capacidade de alcançar o consenso ativo e passivo das massas para o seu projeto, e ao mesmo tempo, ainda é incapaz de impor uma solução de força (ditadura fascista, militar, regime bonapartista). Nenhuma destas opções de regime de crise, tomando aqui a democracia liberal como o regime “ideal” da dominação burguesa na concepção de autores diversos como Trotsky e Gramsci, está por ora descartada, mas por ora o problema central para nós e eles é a disputa pelo Poder.

Lenin dizia que “fora do Poder tudo é ilusão”, e de fato é isto. O Estado como elemento fundamental do poder da classe dominante é parte constitutiva das relações materiais de produção capitalista, ele não é apenas uma superestrutura, mas sim parte da estrutura do regime sociometabólico do Capital, é o Estado que constitui o único e parcial elemento de totalização num regime anárquico de produção, é O Estado que mantém a coesão entre as classes, divididas, fragmentadas e em permanente conflito entre si e dentro de si (conflitos entre classes e intraclasses). O controle do aparelho de Estado constitui, portanto, elemento central na reprodução do sociometabolismo do capital. E, para alcançar este controle, é necessário exercer hegemonia sobre classes rivais, neutralizar os renitentes, cooptar lideranças adversas (na estratégia do transformismo) e ser capaz de manter o conjunto da classe dominante unido.

O Estado, por fim, é o “organizador das classes dominantes e desorganizador das classes dominadas”, como diria Poulantzas. A nossa conjuntura reflete, como dito, uma crise de incapacidade hegemônica dos de cima que só não é maior devido a uma profunda crise das direções burocráticas e das organizações da classe trabalhadora, setores oprimidos e movimentos sociais.

A Classe dominante hoje possui distintos projetos que lutam pela hegemonia no sentido de estabelecer a coesão necessária à recomposição do bloco no Poder, as tendencias bonapartistas e a especie de semibonapartismo judicial que atravessamos durante o período pós-impeachmeant se explicam como resultado desta indefinição.

Sendo grosseiro, podemos dizer que temos, hoje, pelo menos três grupos que lutam por representar o projeto da classe dominante e por se estabelecer como polo de reaglutinação do poder de classe: a antiga casta política aliada a setores do Judiciário, como o STF e grande mídia e a Lava Jato, com os militares se insinuando como prováveis fiéis da balança.

A deposição de Dilma Roussef (PT) do controle do aparelho estatal se deu através de uma aliança compósita, onde estes setores que hoje se digladiam estiveram unidos. A Lava Jato desencadeou uma operação policialesca articulada ao imperialismo e, se valendo de expedientes autoritários, conseguiu atrair base de massas (da dita classe média alta) e consenso popular com base no discurso “anticorrupção”. A velha casta politica e setores judiciais legitimaram por dentro da democracia blindada, dando um golpe no governo e não no regime, como lembra Felipe Demier. O golpe inventando a narrativa do impeachment com apoio dos aparelhos midiáticos e, por fim, os setores que hoje identificamos sob a “rubricabolsonarismo” e são uma aliança bizarra entre baixo clero parlamentar (Bolsonaro e seus filhos) com setores ultradireitistas (MBL, Vem Pra Rua, Instituto Mises, Revoltados Online, seguidores do bizarro Olavo de Carvalho).

O governo Temer foi um período de transição. Temer tentou iniciar os duros ataques à classe trabalhadora, e foi o que ele pôde fazer. Ficou claro, pós-Greve Geral, que grandes mudanças, como a PEC da Morte e a Reforma Trabalhista apenas abriam o apetite da classe dominante, mas não eram capazes nem de recompor o bloco do poder, nem de instaurar o projeto neocolonial.

Aqui a estratégia das burocracias sindicais se mostrou funesta, a CUT e setores adjacentes como CTB, hegemonizadas pelo PT, renunciaram a luta quando ela parecia proveitosa, aparentemente um erro primário. Esta estratégia, que se caracteriza pelo institucionalismo democrático-burgues, por fé cega nas instituição, como Judiciário e Parlamento, deriva da natureza contraditória e, em última instância, contrarrevolucionaria destes setores burocráticos. Ao optar pela via institucional com foco no “Lula 2018”, o PT impediu a evolução natural de uma disputa que poderia acabar com a queda do Temer e, portanto, na possibilidade de abrir uma conjuntura mais favorável à luta da classe trabalhadora e dos oprimidos.

O desgaste de Temer, a crise da esquerda, a ascensão da Lava Jato e da Nova Direita criaram os elementos para uma alternativa eleitoral fascistizante com base de massas, uma alternativa eleitoral e não, até agora, uma organização fascista em si, que foi como o ovo da serpente urdida durante o longo conciliábulo entre os setores reformistas liderados pelo PT e a velha política brasileira (vide o fato de Bolsonaro ser base parlamentar do PT, assim como a IURD e seus deputados, a aliança como o PMDB durante anos em relações muito mais que amistosas entre Lula e tipos como Sarney e Renan Calheiros, para não falar da relações de irmandade da esquerda do capital com as grandes empreiteiras e empresas como JBS).

O bonapartismo de toga foi decisivo para a vitória de Bolsonaro. Foi o Judiciário, através da Lava Jato, que criou o clima para um discursos moralista e protofascista de suposto combate à corrupção. Foi o STF que legitimou e presidiu o impeachment. Foi, por fim, a Lava Jato que deu o golpe de mestre na estratégia petista, encarcerando o maior líder operário e ex-presidente mais aclamado. Nunca antes na história deste país um ex-presidente fora preso, e, não por acaso, foi o filho bastardo da Casa Grande que foi conduzido ao matadouro através de Sérgio Moro, em um processo cheio de irregularidades e ilações, cujo único objetivo real era condenar o réu previamente escolhido a dedo (ferindo o suposto princípio inviolável do direito burguês moderno, o do juiz natural e da ampla defesa) pelo juiz executor.

As forças de esquerda , inclusive nós, ainda nos somamos num esforço desesperado para barrar a ascensão da extrema-direita. Os setores burgueses tradicionais, incluso a mídia, apostaram em Alckmin, mas ao verem sua inviabilidade como resultado da crise terminal do velho PSDB, pularam fora e assumiram uma suposta neutralidade interessada.

A vitória do neofascista, porém, com baixa representatividade, numa eleição com alta abstenção e denúncias várias de fake news e outras irregularidades, no entanto, foi importante para nos dar um tempo e articular a resistência ao Bolsonarismo.

Em que situação nos encontramos hoje, três meses após o início do governo do neofascista olavete?

As tendências autoritárias da classe dominante, historicamente presentes num país que é um apartheid socio-racial desde sempre, se tornaram mais latentes. O conflito entre frações, apesar da unidade decantada nos ataques, o papel dissolvente do bolsonarismo e seu plebeismo estridente (o núcleo bolsonarista do governo com sua turma obscurantista declarada e olavete aguerrida),a visível incapacidade tecnocrático-burocrática deste setor, são contrabalançados pela forte presença militar no governo e pela ala Sérgio Moro Lava Jato.

A Reforma da Previdência é o próximo passo da agenda golpista instaurada em 2016, cuja estratégia é a reconfiguração do local que o Brasil ocupa no mercado mundial sustentado pela precarização multiforme e a hiper-superexploração do trabalho. No bojo da Reforma está, portanto, o futuro tanto da esquerda quanto dos dilemas enfrentados pelo Bloco no Poder hoje. Irá se fortalecer a Lava Jato ou ela, apesar de Temer, irá definhar? Os militares irão se tornar o setor dominante na recomposição do poder burguês? A estratégia neofascista do Bolsonarismo, contra todas as aparências, será a mais forte? As classes trabalhadoras e setores oprimidos sairão da defensiva? Criarão condições para um debate real e sério, para além da demagogia ultraesquerdista, sobre a Revolução Brasileira para além do Capital?

Sabemos que, desde 2016, o “futuro não é mais como era antigamente”, e sabemos que se perdemos “nem os nossos mortos estarão a salvo”, como diria Benjamin. Estamos fazendo história agora mesmo, rumo a Estado forte (Mandel), ao neofascismo ou à redenção histórica dos explorados e oprimidos? Não possuímos as respostas para estes graves dilemas, mas seguimos firmes acreditando no futuro e, aqui, quero encerrar com as palavras de nosso mestre: “enquanto viver, seguirei lutando pelo futuro, este futuro radiante em que o homem dominará o fluxo incerto da historia” (L Trostky).Corrigindo apenas a inflexão de gênero nesta frase, lutaremos para que homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, negras e negros, LGBTs, camponeses, trabalhadores precários e com direitos, todos juntos peguemos o rumo da História em nossas mãos, e possamos no dizer de outro revolucionário memorável : “virar o pesadelo dos que tiram os nossos sonhos” (Che).

*Delegado Sindical Irara BA, militante da Resistência/Psol, Feira de Santana, BA