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BRASIL

MBL: A patrulha ideológica da burguesia

João Elter Borges Miranda*, de Marechal Candido Rondon (PR)
Reprodução / Site MBL

Cena de vídeo: “Você pode contar com o MBL”

Em fins dos anos 1970, o cineasta Cacá Diegues taxou de “patrulhas ideológicas” alguns dos críticos do seu filme “Chuvas de Verão”. Ele se referia mais especificamente aos jornalistas ligados ao Partido Comunista Brasileiro – então clandestino – que, segundo Diegues, teriam a “missão” de criticar os produtos culturais não alinhados a um certo cânon.

Usualmente, a expressão “patrulha ideológica” é, assim, adotada para se referir a frações da esquerda que criticam outras esquerdas, como no debate histórico entre leninistas e trotskistas ou o caso de Diegues. Contudo, neste texto vou adotá-la para me referir ao Movimento Brasil Livre (MBL), organização ultraliberal voltada especificamente ao público jovem e universitário, criada com o intuito de recrutar e formar novos quadros de intelectuais orgânicos tradicionais.

Guiados pela “defesa da ordem”, baseada na tradição, família, prosperidade e profundamente contra as conquistas das mulheres e de minorias como LGBT+, tais intelectuais são preparados para apresentar discursos de ódio, intolerância e ataque à liberdade de expressão, defendendo movimentos como o “Escola Sem Partido” – o qual, por sua vez, tem como objetivo coagir trabalhadoras e trabalhadores da educação –, além de impedir apresentações culturais e artísticas, como fizeram com a exposição do Queermuseu em Porto Alegre em 2017.

O MBL seria o braço de atuação do Estudantes Pela Liberdade (EPL) em manifestações de rua. Essa instituição seria a versão brasileira da organização internacional Students for Liberty, ligada a Atlas Netword (nome fantasia da Atlas Economic Research Foundation desde 2013), com ligações também com organizações burguesas brasileiras, como o Instituto Millenium. O Students for Liberty é uma das principais organizações entre os conservadores americanos, sendo o seu mentor Mr. Chafuen, presidente da Atlas Network desde 1991.

O EPL foi criado para disputar espaço nos meios acadêmicos, espaços interpretados pela instituição como tomados pelo marxismo e pelas ideologias de esquerda. Buscam, assim, disputar esse espaço recrutando jovens, com uma grande estrutura financeira e treinamento, formando-os para defenderem os preceitos ultraliberais e atuarem no MBL. Para que o EPL não corresse o risco de perder os recursos recebidos pelas organizações americanas, que são impedidas pela legislação da receita americana (IRS) de doarem fundos para ativistas políticos, criaram o MBL, que teria o papel de atuar em manifestações, atos, protestos políticos. Por conta da grande capilaridade do EPL, com sua grande rede de sedes regionais, estaduais e locais, o MBL possui um importante mecanismo de recrutamento.

De acordo com o relatório 2014-2015 da Students for Liberty, a arrecadação foi de US$ 3,1 milhões. Já a Atlas Netword, segundo o formulário 990 da Receita dos EUA, em 2013 teve de receita a soma de US$ 11,459 milhões, sendo destinados US$ 6,1 milhões para atuação foda dos Estados Unidos: dos quais US$ 2,8 milhões foram para a América Central e US$ 595 mil para a América do Sul. Segundo reportagem da Agência Pública, o Estudantes Pela Liberdade no Brasil teve no primeiro ano a soma de R$ 8 mil, o segundo foi para R$ 20 mil e, entre 2014 e 2015, o budget da instituição alcançou R$ 300 mil. A Atlas, junto com a Students for Liberty, são os principais doadores. Recebem também de organizações no Brasil, como a Friederich Naumann, além de doações individuais. Integrantes do MBL e do Estudantes Pela Liberdade também são beneficiados com bolsas para cursos oferecidos pela Atlas nos EUA.

Fundado em 2014 em apoio às investigações da Operação Lava Jato e contra o governo de Dilma Rousseff, o MBL é um movimento político que defende em seu manifesto a separação de poderes, eleições livres e idôneas, fim de subsídios diretos e indiretos para “ditaduras” (leia-se: Cuba e Venezuela), o liberalismo econômico e o republicanismo. Em 2015, atuou convocando e realizando uma série de protestos no país a favor do impeachment de Dilma, além de ações políticas em todo país. Em 2016, durante as ocupações de escolas, atuou mobilizando pessoas para desocuparem escolas no Paraná. Em defesa da agenda neoliberal, reforma trabalhista, ajuste fiscal e redução da maioridade penal, também em 2016 o MBL combinou forças com as bancadas compostas principalmente pelo chamado “baixo clero”, estando à frente do processo o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, na época filiado ao então Partido Democrático Brasileiro (PMDB) hoje denominado Movimento Democrático Brasileiro (MDB).  O movimento é formado, predominantemente, por jovens universitários com menos de trinta anos e tem sede nacional na capital paulista.

O MBL é conhecido principalmente por conta da figura dos seus principais nomes, como Kim Kataguiri, atualmente deputado federal eleito pelo Democratas (DEM), e o vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM). No entanto, a organização possui uma grande de rede de atuação em todo o país, com crescente presença em Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, centros acadêmicos e diretórios centrais nas universidades, além da intensa presença nas redes sociais. Assim, o papel desempenhado por seus integrantes em manifestações, na grande mídia, nas redes sociais, nas câmaras e nas universidades, estabelece um conjunto de ações importantes no espaço público promovendo debates com alcances nacionais e mundiais, acarretando impactos práticos e materiais para o país e o mundo.

Neste sentido, podemos interpretar o MBL como um aparelho privado de hegemonia (exemplos disso são os partidos, sindicatos, igrejas, jornais, escolas, entidades ou associações de distintas origens e objetivos, páginas nas redes sociais etc.) de ação doutrinária da Nova Direita surgida no Brasil Contemporâneo.

O pensador sardo Antonio Gramsci aponta que os aparelhos privados de hegemonia são um conjunto de organizações da sociedade civil que possuem o objetivo de difundir a ideologia dominante. Nesse sentido, não há ideologia dominante sem a atuação dessas organizações, as quais detêm autonomia, para o qual o ingresso é voluntário, e têm como objetivo manifestar e constituir base material própria, desde que seja na perspectiva de legitimar os interesses da classe dominante. Não se trata unicamente da reprodução do discurso dominante, mas sim a imbricação entre a ideologia dos “de cima” com as dos “de baixo”, constituindo ideias e projetos que, no fim das contas, são parte integrante das relações Estado em sentido amplo (sociedade política e sociedade civil).

O historiador Flavio Casimiro no seu “A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil Contemporâneo” (Expressão Popular, 2018), demonstra que a partir da década de 1980, surgem no Brasil uma série de aparelhos privados de hegemonia, constituindo uma Nova Direita, que impõem um novo modus operandi de ação político-ideológica das classes dominantes no Brasil. É um processo gestado e em curso a partir da redemocratização, ganhando amplitude e intensidade, radicalizando também o seu discurso ao longo do tempo. Trata-se de uma representação política não partidária dos segmentos da direita liberal conservadora, atualizada, militante e, muitas vezes, truculenta, sendo estes os principais aparelhos: Instituto Liberal (IL); Instituto de Estudos Empresariais (IEE) e o Fórum da Liberdade; Instituto Millenium (IMIL); Instituto Von Mises Brasil (IMB); Estudantes Pela Liberdade e o Movimento Brasil Livre (MBL). Todas essas organizações possuem vinculação com a burguesia nativa e internacional.

Não seria necessária uma lupa para constatar que essa ampla e sólida rede de organizações significa uma ofensiva contra nós, os “de baixo”. Diante disso, creio que a expressão “patrulha ideológica da burguesia” cabe muito bem ao MBL, tendo em vista se tratar de uma organização voltada para aplicação e defesa das ideias dominantes. Por isso, ainda que defendam o atual governo Bolsonaro, e ainda que tenham apoiado o governo Temer, não deixaram de fazer críticas ao governo anterior, assim como não deixam de fazer em relação ao atual. Fazem isso porque são, acima de tudo, defensores caninos do grande capital. Atuam enquanto grupo de pressão diretamente sobre as diversas escalas do Estado, de modo a assegurarem que, para os governantes, os interesses do capital estejam sempre em primeiro lugar. Progressivamente, isso processa uma espécie de reprivatização não oficial, de forma a assegurar e ocultar a dominação, para que os dominados não só se mantenham nessa condição, como também não se rebelem contra.

 

*João Elter é professor de História.

Marcado como:
extrema direita / mbl