Ensaio sobre o materialismo dialético

Álvaro Frota*, do Rio de Janeiro, RJ

Quando uma pessoa pensa, está construindo representações do mundo exterior em sua mente, visando acumular e processar informações que lhe permitam interagir com esse mesmo mundo exterior. O ato humano de pensar é o ato de transformar a realidade material em ideias e de processar as informações contidas nessas ideias, visando a interação com o mundo e com os demais seres humanos. A construção do conhecimento, assim, é o processo através do qual o cérebro do “animal político” autodenominado “homo sapiens” apreende parcelas cada vez maiores do mundo em que vive e se reproduz, armazenando conhecimentos na forma de impulsos eletromagnéticos em seus neurônios.

O ser humano transforma a matéria em ideias visando, em última instância, a transformação da matéria segundo os interesses humanos. Movida por suas necessidades e através de seus pensamentos e ações, a civilização humana construiu sobre o Planeta Terra duas outras naturezas ao lado da natureza preexistente. Uma segunda natureza compreende todas as realizações humanas de caráter concreto, tudo o que se destruiu, construiu ou se modificou materialmente na natureza inicial pela ação dos seres humanos. E uma terceira natureza compreende todas as realizações dos cérebros humanos, todas as ciências, culturas, ideologias, religiões, tradições, artes, tudo o que pode ser chamado de espírito humano ou de realidade espiritual.

Matéria e espírito

Assim como se transforma em energia podemos dizer que a matéria se transforma em espírito, através dos pensamentos e ações humanas, ou que a realidade material se transforma, pela atividade humana, em realidade virtual. Se compreendermos que matéria e energia são a mesma coisa e, embora uma se transforme na outra, a totalidade sempre se mantém, compreenderemos também que o espírito humano é essencialmente material. Qualquer um que busque o espírito humano encontrará, assim, no limite, alguma forma de matéria, embora não a matéria a que nossos cinco sentidos estejam acostumados a perceber.

De um ponto de vista amplo, a Filosofia é a ciência que estuda as relações entre matéria e espírito. Um ponto de vista particular concebe a Filosofia como a ciência que estuda o relacionamento entre a realidade objetiva e suas representações no pensamento. Segundo essa concepção, tais representações cerebrais e, portanto, espirituais, uma vez construídas, passam também a fazer parte da realidade em que todos estamos imersos corporal e espiritualmente.

Na medida em que ideias nascidas como impulsos eletromagnéticos dos neurônios são expressas em determinada linguagem, como o português ou a matemática, e são transmitidas de um ser humano a outro, oralmente ou através de mídias como o papel de um livro, as ondas de uma rádio ou televisão, o disquete de um computador ou a Internet pode-se afirmar que o espírito humano é tão parte da realidade como o corpo que permanentemente o está gerando.

Assim, de acordo com esse ponto de vista, a realidade virtual construída pelos pensamentos e ações humanas não deixa de ser uma realidade material. As informações que estão dentro de um computador são completamente materiais, são polos eletromagnéticos gravados em uma superfície especial que gira. Mas tais informações foram, em sua origem, criadas pelo cérebro humano e, em consequência, constituem-se em realidade virtual.

O mesmo vale para o que está dentro de um cérebro humano. Nossas ideias e pensamentos são impulsos eletromagnéticos gerados e movimentados através de reações bioquímicas chamadas sinapses, as quais ocorrem nos neurônios. São, portanto, realidade material mas, ao mesmo tempo, são representações da realidade e constituem-se nos elementos básicos da realidade virtual. O cérebro humano, um organismo material, é o elemento construtor de toda a realidade virtual e, portanto, de todo o mundo espiritual.

Nem todas as formas de pensar garantem que a representação mental de um objeto estudado seja fidedigna ao objeto real, de onde a importância do estudo da Filosofia. Existem diferentes métodos filosóficos, que correspondem a diferentes formas de pensar e de compreender o mundo mas, de uma forma geral, todos eles estudam as relações entre matéria e espírito a partir da indução e da dedução.

Indução e dedução

A indução é a generalização de fatos materiais estabelecidos sobre de um objeto de estudo, visando a elaboração de um modelo ou de uma teoria que represente esse objeto no plano das ideias. Uma teoria pode ser definida como um conjunto de ideias logicamente relacionadas que expressa a realidade através de uma síntese de suas múltiplas determinações.

A dedução é a busca das consequências lógicas de um modelo ou de uma teoria, visando a previsão de futuros comportamentos materiais do objeto estudado. A dedução permite a comparação das previsões teóricas com os acontecimentos práticos e o resultado dessa confrontação entre teoria e realidade acarreta nova indução, fechando-se um ciclo de indução e dedução matéria → espírito → matéria.

Todos nós realizamos ciclos mentais de indução e dedução intuitiva e quotidianamente. Quando uma criança acende um palito de fósforo e acidentalmente queima um dedo, seu cérebro realizará uma indução: “Esta chama fez doer meu dedo.” (matéria). Logo: “Todo fogo causa dor.” (espírito). Na próxima vez que se deparar com uma chama, a criança realizará uma dedução: “Todo fogo causa dor.” (espírito). Logo: “Se tocar este fogo, eu irei sentir dor.” (matéria). O conhecimento acumulado orienta a ação da criança mas, certamente, não mata a curiosidade infantil e nem a impede de prosseguir “brincando com fogo”…

Em uma pesquisa eleitoral por amostragem, um estatístico faz uma indução: “Nos eleitores entrevistados, o candidato Fulano obteve a maioria das intenções de voto.” (matéria). Logo: “Fulano detém a maioria das intenções de voto em todo o eleitorado.” (espírito). De posse desse conhecimento acumulado, o candidato Fulano realizará uma dedução: “Detenho hoje a maioria das intenções de voto.” (espírito). Logo: “Se a campanha política se mantiver estável, serei eleito quando ocorrerem as eleições.” (matéria).

A indução, generalizando uma parte para construir a idéia que representa um todo, nunca pode resultar em completa certeza acerca da idéia estabelecida. A generalização da parte para o todo sempre carrega consigo uma incerteza inerente.

Se protegermos a mão da criança com uma película plástica especial, dessas que os dublês do cinema utilizam nas cenas de fogo, e pedirmos à criança que coloque o dedo no fogo, ela relutará, pois em seu espírito está gravada a idéia “Todo fogo causa dor”. A curiosidade infantil, contudo, a fará comprovar pela prática que existe uma exceção à norma e uma nova indução se estabelecerá: “Este fogo não causou dor à minha mão.” (matéria). Logo: “Nem todo fogo causa dor.” (espírito).

Três questões básicas da filosofia

Se todos os métodos filosóficos pressupõem que matéria e espírito se relacionam através da indução e dedução, as diferenças entre eles decorrem da forma a como respondem às três questões básicas da filosofia: 1) o que vem primeiro: matéria ou espírito? 2) as ideias são estáticas ou se movimentam? e 3) existe um destino predeterminado?

O método filosófico é chamado de idealista quando supõe que as ideias existem por si mesmas, não necessitam da existência prévia do cérebro humano, precedem e determinam o mundo material. Em contraposição, o método filosófico é chamado de materialista quando considera que as ideias nascem da matéria, sendo, em última análise, impulsos eletromagnéticos que percorrem os neurônios humanos.

O método filosófico é chamado de metafísico quando considera que uma idéia é sempre igual a ela mesma. Para a metafísica, as ideias são estáticas, não se transformam ao longo do tempo, não se fundem umas com as outras gerando novas ideias. Ao contrário, o método é chamado de dialético quando supõe que o movimento é condição intrínseca da matéria e se reproduz no movimento das ideias. Para a dialética, as ideias se transformam ao longo do tempo e as contradições que existem entre as diferentes ideias resultam em sínteses que produzem novas ideias mais abrangentes.

O método filosófico é chamado de determinista se supõe que todas as relações do universo são causais, sendo o futuro completamente predeterminado pelo presente e pelo passado. Inversamente, o método é chamado de indeterminista quando supõe que o futuro, embora seja consequência do presente e do passado, nunca pode ser previsto de forma completa, existindo sempre possibilidades que escapam ao pensamento.

A metafísica idealista

Conforme as respostas que se dão às três questões básicas da filosofia, dois métodos filosóficos se sobressaem. O primeiro deles, a metafísica idealista, é o método que supõe a existência de uma idéia primeira e imutável, predecessora e causadora do mundo material, o qual, em consequência, deve ser também considerado imutável e completamente determinado.

A metafísica idealista é determinista. Explica que não existe indeterminismo, mas apenas conhecimento insuficiente sobre os fenômenos estudados. Se existisse conhecimento suficiente, tudo poderia ser previsto com completa certeza. De fato, se uma idéia primeira antecede a materialidade do universo, o futuro dessa materialidade pode ser deduzido dessa idéia, embora o ser humano seja incapaz de alcançar a inteligência da idéia que lhe antecede e de compreender as deduções necessárias.

Para explicar o que é conhecido, a metafísica idealista lança mão da lógica formal. Esta constrói conjuntos de postulados ou axiomas, ideias primeiras que são aceitas por definição (portanto, sem questionamentos internos à teoria) e a partir dos quais pode-se deduzir tudo o mais. A geometria euclidiana, por exemplo, parte do axioma de que dois pontos geram uma única reta e que três pontos geram um único plano para construir toda uma representação do universo. A teoria dos conjuntos é outro exemplo de lógica formal axiomática, bem como a moderna definição de Probabilidade.

Para explicar o que não se conhece, contudo, a metafísica idealista leva a lógica formal a um limite extremo e identifica-se com a religião, no sentido amplo da palavra, para a qual Deus criou o universo e detém total conhecimento e poder sobre o futuro, mas possui desígnios que são inacessíveis aos seres humanos. Levando a utilização de axiomas ao seu limite, a metafísica idealista explica o desconhecido através de um dogma, uma verdade da qual não se pode duvidar, pressupondo a existência de Deus, que se constitui na idéia primeira, a partir da qual é construída toda a explicação da realidade, desde a origem do universo até a realidade humana atual.

 

O materialismo dialético

O segundo método filosófico, o materialismo dialético, explica que as ideias são consequência da matéria e parte primordial do esforço que o animal “homo sapiens” realiza para viver, se relacionar socialmente e se reproduzir sobre o Planeta Terra. Sendo consequência da matéria, as ideias possuem movimento, se modificam, geram novas ideias e influenciam decisivamente as transformações do mundo material.

De acordo com o materialismo dialético, cada uma das ações humanas sobre a matéria é precedida por uma necessidade material que incita o cérebro a gerar a idéia da ação. Entre ter sede e tomar água há a idéia de se levar a mão ao copo, da mesma forma que entre a necessidade urbana de água e a rede de água encanada há o projeto das tubulações. A atividade humana origina infindáveis ciclos de indução e dedução matéria → espírito → matéria que ampliam o conhecimento e modificam a realidade.

O materialismo dialético explica a dicotomia determinismo / indeterminismo como uma unidade de contrários. Os aspectos globais do mundo material são governado por relações causais e determinadas. O movimento dos planetas, estrelas e galáxias obedece às leis de gravitação universal. Um prédio pode ser projetado com base nas leis da física e da resistência dos materiais e, após ser corretamente construído, irá permanecer em pé, comprovando o determinismo.

Ao lado da realidade determinada, contudo, existe a realidade indeterminada. O comportamento das partículas fundamentais da matéria é indeterminado: a Mecânica Quântica explica que se a posição de uma partícula é conhecida, sua velocidade será desconhecida, e vice versa. Sabendo-se onde a partícula está, não é possível saber para onde a partícula irá. E sabendo-se a direção e intensidade do movimento da partícula, não é possível saber sua posição. Assim, o conhecimento do estado (da posição e do movimento) de um conjunto de partículas nunca pode ser completo, o que impede qualquer previsão exata do futuro.

Dado o fato de que os seres humanos interferem na natureza, a vontade humana é uma segunda fonte de indeterminismo no universo. No limite, não é possível controlar a mente humana e as ações decorrentes de seus pensamentos.

Para o materialismo dialético, assim, o universo é simultaneamente determinado e indeterminado. O incessante movimento da matéria e as próprias características desse movimento impõem que o futuro possa ser previsto apenas até certo limite, sendo impossível qualquer previsão totalmente determinista. Se o prédio permanecerá de pé após ser construído, comprovando o determinismo, não será possível prever, numa escala de tempo ampliada, como se dará seu processo de degradação física e por quantos anos, décadas ou séculos continuará intacto. Como também não é possível prever que destino reserva para o prédio a mesma vontade humana que um dia o construiu. Logo, a realidade do prédio será determinada ou indeterminada, dependendo da escala de tempo com a qual examinamos o fenômeno.

O materialismo dialético não rejeita a lógica formal mas a utiliza como ponto de partida para a construção do conhecimento e, ao mesmo tempo, aponta sua principal limitação: a impossibilidade da teoria questionar internamente os postulados e axiomas a partir dos quais é construída. A dialética amplia a lógica formal, na qual as ideias não possuem movimento, estabelecendo as leis que regem o movimento e transformação das ideias: o princípio da totalidade, o relacionamento entre o todo e a parte, a unidade de contrários e a transformação da quantidade em qualidade.

O método científico

Se estuda as leis gerais do relacionamento entre matéria e espírito, a Filosofia não realiza ela própria a criação do conhecimento humano, o que fica a cargo das diversas ciências. Cada ciência, com seus particulares objetos de estudo, realiza seus ciclos de indução e dedução visando o acumulo de conhecimento.

Os fatos materiais da realidade são transformados em modelos ou teorias, ou seja, em conjuntos de ideias logicamente relacionadas que expressam uma síntese das múltiplas determinações da realidade, através da observação e da experimentação.

A observação e a experimentação científicas correspondem à indução filosófica: de uma parte material se constrói a idéia que representa um todo. A experimentação é definida como uma ação sobre a realidade em condições tais que os principais aspectos desta são controlados pelo observador, seguida da observação dos efeitos gerados por tal ação.

Um método filosófico que reúna o materialismo e a metafísica pode confundir a observação de um fenômeno com sua mensuração, declarando que só é observável o que pode ser mensurado. Mensurar a realidade é obter uma representação numérica desta, é a transformação da realidade objetiva em dados, que são uma forma particular de realidade virtual. Dados não são apenas números, mas são números que possuem um sentido definido por um quadro conceitual, que representa a realidade de acordo com determinada teoria.

De acordo com o método filosófico materialista e dialético, a observação possui significado mais amplo e engloba a mensuração, podendo ser definida como qualquer a atuação coordenada dos cinco sentidos humanos. É através da audição, da visão, do olfato e do paladar, que podem ou não serem amplificados através da utilização de tecnologias, que o cérebro humano observa a realidade que o cerca. Deste ponto de vista, a observação não rejeita a mensuração; observar engloba mensurar mas não se resume a mensurar.

A observação de um fenômeno natural ou tecnológico em geral se resume à mensuração de suas características determinantes e, por isso, muitos cientistas e pesquisadores das ciências naturais e tecnológicas pretendem que estas sejam “exatas”. No entanto, toda mensuração da natureza se constitui, em última análise, em um experimento com precisão e exatidão limitadas, de forma que de “exatas” as ciências naturais e tecnológicas possuem apenas a fama. Se o universo é tanto determinado como indeterminado, nenhuma ciência pode se autodeclarar exata.

A observação de fenômenos sociais, políticos, culturais, ideológicos, artísticos, religiosos e psicológicos pode resultar na mensuração de um ou mais de seus aspectos, através de variáveis aleatórias operacionalmente construídas. Mas a observação de tais fenômenos pelas ciências humanas, com vistas à elaboração de teorias, transcende em muito sua mensuração. Quando um cientista social escuta o depoimento de uma pessoa que é sujeito de sua pesquisa, está observando a realidade tanto quanto um físico que realiza uma complicada mensuração da realidade subatômica.

Método científico e materialismo dialético

Uma vez construída, a partir da realidade e através da observação e da experimentação, uma teoria é utilizada para predizer o comportamento futuro dessa mesma realidade, coisa que corresponde à dedução filosófica.

Se o que foi deduzido de uma teoria não ocorrer quando novas observações e experimentações forem realizadas, essa teoria se mostrará inadequada e deverá ser revista ou substituída por outra. Os ciclos de indução e dedução matéria → espírito → matéria realizadas pelas diferentes ciências, dessa forma, abrem constantemente caminho para a produção de teorias cada vez mais gerais e mais precisas em sua função de representar a realidade.

O método científico é materialista pois parte da observação do mundo material e é dialético, pois leva em conta o movimento da matéria e das ideias. Coerentemente, considera que o comportamento da realidade objetiva pode ser determinado ou indeterminado, dependendo dos limites de observação do fenômeno em estudo.

Justamente por ser materialista e dialético, o método científico se utiliza constantemente da lógica formal para obter uma primeira aproximação da realidade. A análise científica de muitos fenômenos se inicia com a hipótese de que não exista o movimento e de que a idéia representante do fenômeno será sempre igual a ela mesma, uma representação metafísica da realidade construída pela lógica formal. A análise científica inicial de muitos outros fenômenos aceita a existência do movimento, mas submetido a rígidas leis de causalidade, outra representação determinista da realidade construída pela lógica formal.

Em ambos os casos, temos uma primeira aproximação metafísica muito útil da realidade, mas que não corresponde à totalidade do fenômeno e que deve ser constantemente questionada através da comparação entre as previsões teóricas e a realidade material. O movimento das ideias gerado pelo constante questionamento teoria x realidade recebe o nome de práxis. A práxis científica, grande responsável pelo avanço do conhecimento humano, assim, é uma forma particular do materialismo dialético.

Método científico e religião

O método científico se contrapõe à metafísica idealista e determinista apenas quando esta leva a lógica formal ao seu extremo e assume a forma de religião, afirmando que o conhecimento é exterior ao ser humano e que todo o conhecimento do universo já existia, consubstanciado em um Deus, no momento em que tal ser superior criou este mesmo universo. De fato, em toda a religião, os deuses começam onde termina o conhecimento humano. Todo o restante, ou toda a ignorância humana, é preenchida e substituída por essa idéia primeira absoluta que tudo explica mas à qual o ser humano nunca tem completo acesso.

O método científico reconhece a ignorância humana A humanidade certamente não está em seu apogeu intelectual, de onde pode-se inferir que mais não sabemos do que sabemos. O ser humano é mais ignorante do que consciente da realidade na qual vive e pensa. Reconhecendo o limite do conhecimento humano, o método científico prescinde da substituição do desconhecido por uma idéia primeira e absoluta mas busca a construção de ideias que mais e mais representem a totalidade do universo.

O método científico não afirma que um dia o conhecimento de todo o universo será alcançado, até porque ainda não é sabido se o universo é finito ou infinito. Não considera que o futuro seja completamente previsível, pois compreende que a matéria é simultaneamente determinada e indeterminada. Em contraposição à explicação do desconhecido através de uma idéia primeira e absoluta, a ciência afirma que o universo é cognoscível, ou passível de vir a ser conhecido mais e mais, não havendo limites para o avanço do conhecimento através de sucessivos ciclos de indução e dedução matéria → espírito → matéria.

A gênese do pensamento humano

O ser humano é, antes de tudo, um animal mamífero, dotado de um cérebro constituído por muitos trilhões de neurônios, os “chips”, por assim dizer, por onde caminham os impulsos eletromagnéticos que formam o pensamento humano. Se o pensamento humano hoje é bastante complexo, nem sempre foi assim. Nos primórdios da humanidade, havia o animal que precedeu o ser humano no espaço terrestre. Não era o macaco, obviamente, pois este é um animal contemporâneo ao ser humano. Mas também não era o ser humano, pois seu cérebro ainda não possuía as capacidades deste. Chamemos tal animal de antropomorfo, pois seu corpo era análogo ao do ser humano.

Tais animais antropomorfos viviam socialmente organizados em bandos e sob a intensa pressão de um meio ambiente hostil. Possuíam, contudo, um detalhe fisiológico que os diferenciava dos demais: o polegar de sua mão era oposto aos demais dedos, coisa que lhe permitia uma forma muito superior de manipulação dos materiais que encontrava no meio ambiente.

Como todos os animais, modificava a natureza à sua volta, à medida em que coletava vegetais, pescava e caçava pequenos animais com os quais se alimentava e permitia a reprodução de sua espécie. Tal como os animais, o agente que realizava a modificação da natureza era o próprio corpo do antropomorfo, ou, mais especificamente, seus braços e suas mãos, sob o comando do cérebro, naturalmente.

Quando a mão de polegar oposto, porém, construiu a primeira ferramenta, o primeiro machado de pedra, modificou a natureza mas tal não foi uma modificação ordinária, pois produziu um instrumento externo ao corpo que, sob o comando do cérebro e através da força dos braços e das mãos, modificava a natureza. Da natureza primordial surgiu um animal capaz de construir uma segunda natureza. A capacidade de produzir ferramentas diferenciou nosso antropomorfo de todos os demais animais de então, pois o permitiu travar a luta diária pela alimentação, subsistência e reprodução da espécie de forma vantajosa em  relação às demais espécies.

Organizados socialmente em bandos, os mais velhos passaram tal habilidade adquirida aos mais novos de geração em geração. Dessa forma, o fato do polegar ser oposto aos demais dedos acarretou o aparecimento de uma linguagem, uma forma de comunicação, ainda que primitiva. Junto com a linguagem, surgiram os primeiros conceitos, as primeiras ideais foram elaboradas. Foi necessário criar a idéia de pedra, de pau e de cipó para se criar também a idéia de machado de pedra, de forma a possibilitar às gerações mais novas adquirir o conhecimento de como construir tal ferramenta.

Da comunicação entre os antropomorfos visando a transmissão de conhecimento, surgiu o pensamento elaborado. Visando modificar a natureza primordial em seu proveito, construir e manter uma segunda natureza, o antropomorfo construiu também uma terceira natureza, uma natureza virtual ou espiritual. Quando esse processo se consolidou, milhões de anos depois da primeira ferramenta ter sido construída, já não mais havia o animal antropomorfo e sim o ser humano. O nascimento do ser humano tal como o conhecemos hoje, assim, se confunde com o nascimento do espírito humano.

A gênese de Deus

Era natural que o pensamento humano dos primórdios se maravilhasse consigo mesmo. Já havia as ideias, mas o ser humano ainda não compreendia como e porque pensava, da mesma forma que não compreendia os porquês da grande maioria das coisas que o cercavam. O primeiro modelo de explicação para tudo necessariamente teria que lançar mão do sobrenatural para explicar o que era ignorado. A adoção do método metafísico idealista de pensamento foi natural. Deveria haver uma explicação primordial para tudo e à ela foi dado o nome de Deus.

Ao refletir sobre si mesmo, ao se perguntar de onde vinha e para onde ia, o ser humano primitivo criou a idéia da existência de uma idéia primeira, que tudo justificava e tudo explicava embora essa idéia primeira carecesse, ela mesma, de explicação. Estavam criados os deuses, primeiro à imagem e semelhança da natureza primordial e, depois, à imagem e semelhança dos próprios seres humanos. A medida em que a humanidade avançou e com ela o conhecimento humano, tais deuses foram se transformando, se aglutinando, travando batalhas muito materiais entre si, batalhas que consumiam sangue humano, até o atual conceito de Deus único, que tudo sabe e tudo determina, deixando a todos, todavia, o livre arbítrio para fazerem o que bem entendam.

A um determinado acúmulo de quantidade corresponde uma transformação de qualidade. Muitos e muitos milhares de anos decorreram desde que os primeiros deuses foram criados pelos neurônios humanos até que os próprios neurônios humanos pudessem compreender que o conceito de Deus também havia sido, na verdade, criado por eles. Em sua evolução, o pensamento humano substituiu Deus pelo método filosófico materialista e dialético.

Após ter se apropriado e de grande parte do conhecimento filosófico e econômico de sua época, Karl Marx, o genial filósofo alemão, foi quem formulou a formatação atual do método de pensamento materialista e dialético. Esgotado o debate filosófico, Marx declarou que não mais bastava interpretar a realidade, mas chegara a hora de transformá-la.

Segundo o próprio Marx, contudo, “o espírito de todos os mortos oprime, como em um pesadelo, o cérebro dos vivos”. Assim, mais de um século depois de criado, o método filosófico materialista e dialético é adotado apenas por uma minoria. E como a idéia da existência de um ser todo poderoso permanece tendo existência concreta, visto que afeta concretamente a forma de pensar e de agir da grande maioria da humanidade, os seres humanos que adotam o método filosófico materialista e dialético são as modernas Evas e os modernos Prometeus, os primeiros humanos insurgidos contra a tirania divina

E nós declaramos que sim, desejamos os frutos da árvore do conhecimento! Sim, desejamos os frutos da árvore da vida! Sim, lutamos para que todos os seres humanos sejamos, nós próprios, os deuses de nosso destinos na face do Planeta Terra!

 


 

(*) Escrevi este ensaio com o intuito de ordenar minhas ideias e portanto sem a menor preocupação de citar as fontes. O leitor versado na literatura marxista certamente conhece-as de cor. Aos demais,  devo dizer que as ideias do texto não são minhas, embora os erros o sejam.

Álvaro Frota é uma pessoa que tenta pensar de acordo com o método aqui exposto.

 

Artigo produzido em 06 de outubro de 2005