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Pacote anticrime ou legalização do genocídio no Brasil? Uma análise das propostas do ministro Sérgio Moro

Politiza

Jovem e mãe, Iza Lourença é feminista negra marxista e trabalhadora do metrô de Belo Horizonte. Eleita vereadora em 2020 pelo PSOL, com 7.771 votos. Também coordena o projeto Consciência Barreiro – um cursinho popular na região onde mora – e é ativista do movimento anticapitalista Afronte e da Resistência Feminista.

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentou no mês de fevereiro um “Pacote anticrime” – um projeto de alteração em 14 leis brasileiras, que será apreciado e votado no Congresso Federal.

A aparência que o Governo Federal e Moro querem dar ao projeto é de que se trata de um pacote anticorrupção. Mas, na realidade, a aprovação desse projeto significará a verdadeira licença para matar para a Polícia que mais mata no mundo. Isso fica ainda mais evidente quando se tem notícia de que o Palácio do Planalto decidiu separar a proposta de criminalização do Caixa 2 do pacote, afim de ficar mais fácil aprovar as outras 13 medidas, dentre elas as que legalizam ações arbitrárias da justiça brasileira.

O que muda com a lei anticrime?

Além dos 4 pontos que dizem respeito diretamente à corrupção, o projeto propõe uma série de mudanças que visam endurecer e aumentar o sistema carcerário brasileiro. Vale lembrar que o Brasil é o país que mais cresce em número de pessoas privadas de liberdade no mundo.

O que está em jogo no país, com a possibilidade de aprovação desse projeto, é formalizar leis que ferem a democracia e avançam na política genocida que encarcera e mata os jovens brasileiros todos os dias. Nas palavras da pesquisadora Dina Alves, “Moro é apenas um garoto de recado da Justiça para formalizar o genocídio antinegro’’.

Prisão após segunda instância

A Constituição brasileira garante que nenhuma pessoa comece a cumprir sua pena antes de ter seu processo julgado sem possibilidade de recurso à instâncias superiores. O julgamento em segunda instância ocorre nos Tribunais de Justiça dos estados, cabendo recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF). Foi por isso que, em 2009, o STF votou a compreensão de que uma pessoa processada só poderia ser presa ao final do julgamento na corte superior, ou seja, não poderia ser presa após o julgamento em segunda instância. Acontece que o ex-juiz Sérgio Moro prendeu o ex-presidente Lula em 2018 após sua condenação apenas em segunda instância, com o aval do próprio STF.

A proposta do ministro, então, é formalizar, por meio do projeto de lei, a prisão após o julgamento em segunda instância, atacando assim o princípio da presunção de inocência – a garantia constitucional de que toda pessoa é inocente até que seja provado e julgado o contrário. Prender uma pessoa antes do seu julgamento final significa alterar a constituição. Sendo assim, o projeto de Moro deveria ter sido proposto como Proposta de Emenda à Constituição (PEC), não como um projeto de lei comum. Mas uma PEC precisaria ser aprovada por 2/3 no Congresso, isso seria incompatível com a urgência do ministro e do presidente na aprovação desse projeto.

Eles tem pressa para encarcerar mais pessoas sem julgamento final em um país no qual 40% da população prisional é composta de pessoas que não foram julgadas e cumprem prisão preventiva, segundo o próprio Conselho Nacional de Justiça. Essa medida levará ao agravamento das condições já desumanas das prisões brasileiras, sucateadas e superlotadas.

A questão da Legítima Defesa

A lei atual define como legitima defesa a situação em que o policial, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

A proposta de Moro é considerar legítima defesa situações em que o agente policial ou de segurança pública, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, “previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”. Isso quer dizer que um policial pode atirar não apenas quando se encontrar diante de um conflito e sim para prevenir o eventual conflito. Ou seja, Moro quer garantir mais liberdade para os policiais que atiraram e, após atirar, algemaram Kauan Peixoto, de 12 anos na baixada fluminense ou para os policiais que atiraram em Marcos Vinicius de 14 anos na Maré, que usava seu uniforme ao ir para escola. O Ministro quer mais liberdade para os policiais que dispararam 111 tiros contra um carro com cinco adolescentes que saíram para comemorar o primeiro salário do amigo. Os policiais atiraram, sem que existisse nenhum conflito, 111 vezes. Esses casos, que não são raros no Brasil, é que se enquadrarão na “legítima defesa” dos policiais que poderão atirar para matar se você colocar a mão no bolso ou se estiver portando um guarda-chuva.

O novo § 2o do art. 23 do Código Penal, a partir da proposta apresentada, autorizaria o juiz, ao analisar requisitos de legítima defesa, deixar de aplicar a lei e a pena prevista caso o “excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Isso elevará ainda mais a taxa de assassinatos cometidos por policiais, que poderão simplesmente argumentar em sua defesa que estavam com medo e agiram a partir de violenta emoção. A violenta emoção vinda da polícia brasileira será legalizada.

E não para por aí. Também é grave deferir poderes em forma de lei à autoridade policial para, no caso de prisão em flagrante, o policial poder decidir sobre a prisão do flagrado se compreender que o envolvido agiu em legítima defesa ou outra razão de excludente de ilicitude. A decisão do policial de decidir sobre a prisão diante de um flagrante retira do controle de um Juiz formado de fazer tal julgamento. Os policiais poderão livrar uma pessoa no ato da ocorrência, seguindo suas próprias convicções. Esse poder será formalmente concedido à polícia brasileira, que recebe quatro denúncias por dia no Ministério Público de vítimas de violência policial.

Essa proposta inclui a possibilidade de audiências de custódia serem realizadas através de videoconferências. Quando uma pessoa é presa em flagrante, a audiência de custódia acontece para que o juiz ou a juíza julgue a necessidade de prisão cautelar da pessoa acusada do crime. Realizar tais audiências por videoconferência impede a percepção da real situação do acusado que pode, por exemplo, estar sendo coagido do outro lado da tela sem que isso seja detectável.

É importante destacar também que essa proposta coloca os praças (policiais que pertencem à categoria inferior da hierarquia militar) em uma situação de ainda mais vulnerabilidade. Se a pessoa que está cometendo um crime sabe que pode morrer nas mãos da polícia ou mesmo que não terá nenhuma garantia de sua vida, a sua primeira reação será atirar contra a PM. Essa guerra promovida pelo Estado, em conjunto com essa proposta, apresentada por aqueles que elaboram de dentro da segurança do palácio do planalto, concretamente vai matar ainda mais os dois lados do conflito, já que o Brasil tem a polícia que mais mata e também a que mais morre no mundo. E da parte da PM, os assassinados também tem a pele negra.

Importação do “plea bargain” – “Barganha”

O Ministro mais uma vez resolveu importar métodos estadunidenses para o Brasil. O plea bargain possibilita acordos entre o Estado (poder judiciário) e o investigado. O acordo parece simples: o investigado delata o que sabe e, em troca, ameniza sua pena.

Mas em um país no qual a maioria da população carcerária é jovem, pobre e com escolaridade no máximo até o ensino fundamental, as coisas se complicam. Diante das arbitrariedades do Estado, para não ter que enfrentar a justiça seletiva e responder por um crime maior, um inocente fatalmente vai se sentir impelido a fazer um acordo pela garantia de uma pena menor. Se essa prática já está sedo cada vez mais criticada nos EUA, onde os promotores são eleitos e tem pelo menos uma mínima representatividade, imagine os efeitos dela no Brasil, onde os promotores também tem raça e poder econômico. Mais de 50% da população brasileira é negra e, segundo o último Censo do Poder Judiciário, em 2013, apenas 14,2% dos magistrados brasileiros se declaram pardos e 1,4%, pretos.

Em contrapartida, mais de 60% da população encarcerada é negra. Diante disso, não precisa de muito tempo para chegar à conclusão que aqueles e aquelas que serão encarceradas injustamente em maior quantidade são negras, pobres, jovens e com baixa escolaridade. Considerando ainda que as audiências de custódias podem passar a acontecer por vídeo conferência, a pergunta que fica é: quantos laranjas assumirão a culpa dos verdadeiros bandidos e milicianos no Brasil?

 

O caso dos EUA

É necessário pincelar a situação da população encarcerada nos Estados Unidos da América, uma vez que o governo está importando para o Brasil a política penal norte americana – que conta com a maior população carcerária do mundo. Os EUA tem mais de 2,3 milhões de pessoas privadas de liberdade (enquanto o brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial com 726 mil presos). Os EUA representa 5% da população mundial e 25% da população encarcerada mundialmente. Mas não é qualquer cidadão estadunidense que é preso. A estatística do Ministério da Justiça dos EUA aponta que 1 em cada 3 negros residentes no país tem chance de ser preso. No caso de pessoas brancas a relação é de 1 branco em cada 17. Isso quer dizer que a população negra estadunidense que representa 12% do total no país, é 40% no sistema carcerário.

O documentário “A 13ª Emenda” apresenta a realidade da população carcerária nos EUA. A Emenda da Constituição estadunidense diz: “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Isso quer dizer que na maior potência mundial, 1 em cada 3 negros pode, legalmente, ser escravizado através do sistema penitenciário.

O documentário mostra como a política daquele país é marcada pela expansão do sistema penal, com o objetivo consciente de aumentar a população encarcerada do país para, dessa forma, incrementar o lucro de empresas privadas multibilionárias que atuam no setor. Os presos trabalham forçadamente e recebem uma quantia insignificante pelo trabalho.

Enquanto o salário mais barato nos EUA corresponde a 7,25 dólares a hora, o salário pago para os presos é de 92 centavos a hora. Isso significa um valor menor que o salário mínimo brasileiro, por exemplo. Empresas como a Microsoft e Victoria Secrets lucram abertamente com esse sistema de escravidão moderna.

Isso acontece com mais um agravante: através do Plea Bargain o governo estadunidense praticamente compra a culpa das pessoas com a oferta de uma pena menor, uma vez que não assumir a culpa para um jovem nos EUA pode lhe custar ter que aguentar situações de grande violência e aplicação de uma pena alta. Dessa forma, qualquer indivíduo, por mais inocente que seja, está sujeito a se declarar culpado.

Lembrando que os casos de violência policial contra negros e negras no EUA vem tomando cada vez mais visibilidade, como o caso de Eric Garner – negro sufocado por policiais em 2014 nos EUA enquanto dizia “não consigo respirar”. Este e muitos outros casos levou ao levante Black Lives Matter, em que milhares de jovens negros ocuparam as ruas para dizer Vidas Negras Importam.

 

Quantos mais tem que morrer para essa guerra acabar?

Diante da gravidade do impacto que as medidas propostas pelo governo federal pode ter sobre a vida da população mais vulnerável e às garantias democráticas no Brasil, diversas organizações do movimento negro organizado enviaram uma carta à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A carta solicita um posicionamento público contrário às medidas; o envio de observadores internacionais para acompanhar os tramites deste pacote, com o intuito de comentar e se posicionar publicamente a cada momento, emitindo tais entendimentos à opinião pública brasileira; o estabelecimento de um canal de diálogo permanente entre a Comissão e o movimento negro brasileiro; a instauração de audiências junto à Comissão afim de ouvir as demandas e registrar impressões do movimento negro sobre o momento político brasileiro; além de outras medidas que a Comissão Interamericana considerar pertinentes para a garantia dos direitos da população negra, pobre, moradora de favelas, periferias urbanas e do campo.

As medidas que visam endurecer as penas no país vão na contramão da tendência mundial de aplicar penas duras apenas em último caso, quando as outras instâncias sociais não podem mais atuar. O gasto exacerbado com uma segurança cada vez mais militarizada no Brasil em nada tem diminuído os números da criminalidade no país. Enquanto o ministro está preocupado em investigar e punir mais rigidamente os delitos cometidos pela população mais pobre, flexibiliza os crimes cometidos pelas forças do Estado e aqueles que tem condições de pagar para que outros assumam a culpa em seu lugar.

No país em que existe grupos paramilitares e milicianos, fortemente envolvidos com o Estado, Moro propõe um pacote anticrime sem nenhuma ação efetiva e de inteligência que busque acabar com o esquema que realmente produz a violência no país. Queremos respostas sobre os mandantes do brutal assassinato de Marielle e mantém-se central a pergunta que própria vereadora fez antes de lhe arrancarem a vida: quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?

Bolsonaro e Moro querem aprovar esse pacote ainda no primeiro semestre deste ano. É papel não só do movimento negro, mas do conjunto dos movimentos sociais e entidades de Direitos Humanos abraçar a luta contra a aprovação desse pacote que vai legalizar a violência policial e as arbitrariedades judiciais que encarceram e matam a juventude negra brasileira.

 

FOTO PRINCIPAL Imagem do clipe boca de lobo, de Crioulo

Marcado como:
posse de armas