“Uma das lições que Hitler deixou é como, às vezes, é estúpido ser inteligente”, escreveram há mais de meio século Adorno e Horkheimer. Estes filósofos alemães frankfurtianos se referiam aos europeus intelectualizados e modernos que, durante a década de 1920, adotaram na Alemanha uma série de argumentos de lógica supostamente impecável para afirmar que seria impossível a ascensão do nazismo ao poder.
Quando Jair Bolsonaro não era nada além do que um parlamentar do chamado “baixo clero”, setor mais conservador e corrupto do congresso nacional; quando não era nada além do que um militar frustrado e político medíocre, desconhecido nacionalmente, lembro de ver frequentemente intelectuais apresentarem explicações articuladas e cheias de dados a respeito da impossibilidade de Bolsonaro chegar à Presidência.
Um professor universitário amigo que estuda há décadas as eleições e o conservadorismo chegou a dizer que a nossa sociedade não havia ainda chegado a tamanho nível de conservadorismo e desespero para eleger um fascista.
Não perceberam que Bolsonaro vinha, paulatinamente, ganhando a cena com a difusão nas redes sociais do seu discurso em “defesa da ordem”, baseada na tradição, no conceito heteronormativo de família, na prosperidade da supremacia branca e profundamente contra as conquistas das mulheres, dos negros e de minorias, como a comunidade LGBT e os povos indígenas. De político desconhecido à outsider famoso nas redes sociais, ele se tornou a opção de quem está revoltado com a captura da pólis promovida pelo capital.
Agora, diante do fato de Bolsonaro ter sido eleito, a lógica da negação continua, mas com a mudança do objeto. Após quase três meses de governo Bolsonaro, não querem ver outro óbvio: o avanço do fascismo no Brasil contemporâneo.
Não obstante a tradição de estudos a respeito do fascismo na Europa, além dos trabalhos sobre o fenômeno visto sob a perspectiva da periferia, uma série de intelectuais insiste em apontar, a meu ver erroneamente, que se trata somente do avanço da extrema-direita no país – e que, apesar de características proto-fascistas, não se enquadraria no conceito de fascismo.
Tendo em vista isso, talvez contribua para o debate analisarmos sob uma perspectiva histórica mais ampla porque tantos fenômenos como Bolsonaro surgem na contemporaneidade. Para tanto, é fundamental vislumbrar que vivemos uma crise histórica que vai para além de uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as vividas no passado. O filósofo húngaro István Mészáros interpreta esse momento da história do sistema capitalista como uma crise estrutural, severa, do próprio sistema do capital, na qual esse sistema, caracteristicamente incontrolável e destrutivo, dá-se de encontro a partir dos anos de 1970 com seus próprios limites intrínsecos.
Acima de tudo, essa crise estrutural faz emergir uma nova temporalidade histórica do processo civilizatório, permeada por um conjunto de processos que configuram a fenomenologia do sistema capitalista global em seus “trinta anos perversos” (1980-2010).
Após a crise estrutural, o capitalismo global mergulha em uma época histórica de reestruturações nas diversas instâncias da vida social. No campo político-econômico, uma intensa campanha apresentava o neoliberalismo como novo espectro de políticas e reformas econômicas, advogando em favor de políticas de liberalização econômica extensas, como as privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação, livre-comércio, corte de despesas governamentais a fim de reforçar o papel do setor privado.
Para garantir os interesses do capital, os governos e organismos internacionais iniciaram o processo de alteração da dinâmica da acumulação capitalista, iniciando a consolidação da financeirização do capital – o que alterou o regime capitalista, de fordista para o regime financeiro. O regime fordista que dependia, essencialmente, do ciclo de produção, consumo, distribuição e troca de mercadorias, é transcendido para uma nova fase, com o intuito de superar os limites da acumulação capitalista. Nessa nova fase, o que interessa e realmente importa é a relação em que o dinheiro emprestado volta como dinheiro e lucro, através da cobrança de juros. Qualquer um que tenha feito um empréstimo consignado já sentiu na pele o que é ver a própria renda ser tomada por conta da cobrança altíssima de juros.
Na América Latina, o neoliberalismo é implantando principalmente a partir dos anos de 1980. Considerada a “década perdida” para o desenvolvimento desse continente, muitos países latino-americanos foram, como parte da renegociação de sua dívida externa, “orientados” a implementarem uma série de políticas e reformas neoliberais – receituário que ficou conhecido como “Consenso de Washington” –, que promoveu a abertura, desregulação e privatização de suas economias nacionais. Isso ampliou o decréscimo dos resultados sociais e econômicos e apresentou-se no fim dos anos 1990 como incapaz de superar os problemas estruturais desses países, apesar de em alguns deles o processo inflacionário ter sido controlado.
A variante neoliberal implementada no Brasil em fins dos anos 1990 e, principalmente, durante os anos 2000, é de caráter moderado. A classe dominante passa a impor uma série de reformas, por intermédio do Estado, com o intuito de promover a atualização gradual do capitalismo brasileiro. Esse processo se dá de cima para baixo, não envolvendo as classes subalternas; consequentemente, trata-se da perpetuação de um movimento de uma hegemonia, ainda que restrita, da classe dominante sobre nós — os “de baixo”.
Contudo, após a crise de 2008, a contingência apresentou a necessidade de reordenação diante da crise aberta, intensificando ainda mais as relações de exploração nas relações sociais capitalistas; acima de tudo, tal mudança não permitia mais espaço para o neoliberalismo moderado.
As contradições sociais criadas pela radicalização da exploração dos de baixo em um sistema capitalista dependente-associado, acirradas pela crise do modelo neoliberal moderado, explode no seio da sociedade brasileira em uma série de manifestações, como as jornadas de junho de 2013; como os protestos de 2014 contra os desmandos na preparação para Copa do Mundo e para as Olimpíadas; como as manifestações de 2015 pró-impeachment e as ocupações de escolas em 2016; as manifestações de 2017 e 2018 contra o governo Temer.
A classe dominante, o bloco no poder, não consegue, então, responder aos anseios e ao desencanto da classe dominada, não atendendo mais (ou não atendendo plenamente) às carências de orientação dos “de baixo”; o equilíbrio entre força e consenso é dissolvido e a classe dominante entra, assim, em uma crise de hegemonia, na qual perdem o papel de dirigentes.
O historiador Leandro Konder, em “Introdução ao fascismo”, aponta que a crise de hegemonia da classe dominante não é suficiente para o avanço do fascismo em um país. É preciso que isso seja fermentado no seio da sociedade numa conjuntura da luta de classes muito específica, em que, ao mesmo tempo, ocorre a crise de hegemonia da classe dominante e a crise de ideologia da classe trabalhadora e de suas organizações.
A crise da ideologia do conjunto da classe trabalhadora e de suas organizações trata-se do momento em que essa classe depara-se com uma conjuntura em que as formas como estão acostumados a lidar com os desafios da realidade, como o sistema político-institucional, não funcionam mais e as novas formas ainda estão engatinhando. Diante dessa falta de um horizonte definido, essa classe perde uma visão de longo prazo e as suas ações, não raro, consistem quase que exclusivamente em reagir às crises mais recentes.
O avanço do fascismo também pressupõe outras condições históricas especiais, como a formação de uma sociedade de massas de consumo dirigido – o que, em nosso país, foi fortalecido principalmente pelo projeto lulista. Esse projeto possibilitou uma conciliação de classes com ganhos limitados às classes trabalhadoras, processo que não foi acompanhado pela mobilização e organização desse conjunto da população, o que poderia permitir que a sua ascensão social fosse acompanhada da elevação da consciência de classe.
Em consequência, a constituição de consumidores numa conjuntura em que as instituições de organização, como sindicatos e partidos, foram aparelhadas pelos governos petistas, intensificando no caso dos sindicatos o “sindicalismo de estado”, cria um abismo entre a população e os seus meios de mobilização.
Consequentemente, as classes trabalhadoras conseguem até se mobilizar, realizando protestos espontâneos, como vimos em muitas das manifestações dos últimos anos de 2013 para cá – exemplo emblemático disso é a greve dos caminhoneiros realizada em 2018 contra o aumento constante do preço do diesel –, mas não se organizar a partir da figura de um movimento com um projeto claro, antifascista, popular e democrático.
A escalada repressiva perpetrada pelos governos Dilma contra os movimentos sociais a partir de 2013, acompanhada da recusa do petismo ao enfrentamento ideológico e a postura contrária ao ideário de transformação radical da sociedade, desqualificando-o como “sonho”, juntamente com o profundo descontentamento da população com a radicalização das medidas neoliberais promovidas por Dilma a partir de 2015 e continuadas e aceleradas no governo Temer, tem também como efeito o fortalecimento do fascismo que, historicamente, atua rompendo, ainda que somente no campo discursivo, com o sistema.
É pela perspectiva da ruptura que os movimentos fascistas contemporâneos se organizam, como afirmou o historiador Lucas Patschiki em “Os litores da nossa burguesia: o Mídia Sem Máscara em Atuação Partidária (2002-2011)”. Aponta o autor que o fascismo nasce junto com o imperialismo e essa onda traz consigo a prerrogativa de aceitar os pressupostos econômicos ultraliberais. O objetivo principal, além de implementar a série de contrarreformas que retiram direitos, rifando os avanços históricos arduamente conquistados pela classe trabalhadora, é a quebra completa da organização dessa mesma classe nos limites estatais-nacionais. Em muitos momentos de crise econômica do sistema capitalista, como a intensa e profunda existente na atualidade, o fascismo se apresenta, não raro pela ruptura institucional, como o capital na sua forma mais selvagem para não deixar que nada nem ninguém atrapalhe ou interrompa o processo de implementação do programa ultraliberal. Neste sentido, o fascismo é não só expressão da reorganização do capital, como também consegue ecoar o descontentamento dos de baixo.
Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro no Brasil e Marine Le Pen na França são alguns exemplos de personagens que conseguem capilarizar o sentimento de crise de hegemonia. Posam de outsiders, no sentido de romper com o sistema político-institucional tradicional, mas não passam de subversivos sem subversão, de antissistema conservadores.
Ao mesmo tempo em que ocorre a crise das organizações da classe trabalhadora, é preciso também para que haja o avanço do fascismo que essa mesma classe sofra uma preparação reacionária ao longo dos anos. Tal deformação é gestada pelos aparelhos privados de hegemonia (exemplo disso são partidos, sindicatos, igrejas, jornais, escolas, entidades ou organizações de variados tipos, origens e objetivos), como o MBL, que trabalham para defender os preceitos ultraliberais – e que, conjuntamente com outros movimentos políticos, foram capazes de minar os mecanismos e forças de luta antifascista.
Assim, a fragilidade das organizações no campo das classes trabalhadoras facilita o avanço ideológico do fascismo. Esse movimento não é espontâneo. Significa uma ofensiva contra nós, os “de baixo”, alicerçada por uma ampla e sólida rede de organizações que contam com grande quantidade de recursos e conexões transnacionais.
O historiador Gilberto Calil, em sua tese intitulada “O integralismo no processo político brasileiro: a trajetória do Partido de Representação Popular (1945-1965)”, aponta que o fascismo em países da periferia possuí uma característica peculiar. Ainda que os fascistas se apresente como defensores do nacionalismo exacerbado em seus discursos, na prática são aliados caninos do países imperialistas. No Brasil isso fica muito claro com as medidas de privatização, dentre outras de beneficiamento dos Estados Unidos, promovidas pelo governo Bolsonaro, ao mesmo tempo em que o Presidente e cia aludem frequentemente ao nacionalismo.
Portanto, trata-se de uma conjuntura muito específica da luta de classes, em que, concomitantemente, as frações hegemônicas do bloco no poder vivem em crise de hegemonia e as classes operárias em crise de ideologia e de suas organizações. Conjuntura que abre as portas para a ascensão ao poder de um “paladino salvador da pátria” que supostamente colocará, via força bruta e de cima para baixo, “ordem na casa”.
O negacionismo desse fenômeno nos debates de esquerda só serve para desmobilizar e fazer vista grossa diante do avanço dos retrocessos. Prova cabal de que, muitas vezes, é estúpido ser inteligente. Há que se questionar quem precisa de inteligência parecida.
Foto: wikipedia
* Professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, mestrando em história na Universidade do Oeste do Paraná e militante da Frente Povo Sem Medo e da Intersindical – Central da Classe Trabalhadora. Esse artigo representa as posições do autor e não necessariamente a opinião do Portal Esquerda Online. Somos uma publicação aberta ao debate e polêmicas da esquerda socialista
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