Cajueiro dos papagaios, cidade porto. Em pleno século XIX o escoamento da cana-de-açúcar, que brotava pelos braços escravos do Vale do Cotinguiba, forçou os governantes do período a buscar uma nova capital. Os tempos de cidade-forte, com visibilidade e localização militar contra invasões francesas e retomadas dos povos originários já havia passado, triste de João Bebe Água. A banda direita do Rio Sergipe, frente à Boca da Barra que escancara a foz para quem se arriscar, haveria de servir. Assim foi.
Uma Casa de Rendas, uma Cadeia, um prédio administrativo e tchau e benção: eis a paisagem da atual Praça General Valadão, marco zero de Aracaju. Em 1855 é fundada a nova capital, sob os auspícios do engenheiro militar Sebastião Pirro. Diferente da propaganda oficiosa plantada pelas agências de turismo em plena ditadura civil-militar, Aracaju não nasce do Santo Antônio coisíssima nenhuma, a cidade nasce de costas ao povoado e assim permanece até 1910, quando a ligação de bonde é concluída. Mais fácil falsificar uma origem romanceada no alto da Colina que reconhecer que esta cidade foi projetada e pensada para poucos. Nada de cruz nem igreja matriz, o modelo de cidade do século XIX colocava no centro de sua fundação as instituições do Estado Burguês: cadeia para disciplinar e punir, casa de rendas para organizar as finanças e centro administrativo para organizar a próspera burocracia estatal.
O Quadrado de Pirro nunca poupou ninguém. Para ocupar a área projetada pelo engenheiro militar fortemente influenciado pela Reforma de Paris – a relação entre a Reforma e a Comuna de Paris e, consequentemente, o projeto de Aracaju, é algo a ser investigado – era necessário cumprir determinados parâmetros, como ter Casa de Alvenaria, dentre outras regras que na prática servia para expulsar as populações que fugiam da seca no início do século XX. Os Códigos de Postura de 1910, 1916 e 1922 disciplinavam estas “regras”. Aglutinadas no parque têxtil industrial como força de trabalho, os sertanejos eram expulsos da região nobre do Quadrado de Pirro. O tabuleiro de Aracaju nunca acolheu corretamente os seus peões.
Coberta de mangue, lagoas naturais, faixas de Mata Atlântica e restinga em sua parte sul, a história de Aracaju também é a história dos aterramentos ilegais e criminosos. Areia e concreto do centro às regiões periféricas dos expulsos do quadrado. Abraçada entre os rios do Sal, Sergipe, Poxim e Vaza Barris, o território de Aracaju desenha uma perna de bailarina em sua topografia. Bairros inteiros foram aterrados, como a construção do bairro Coroa do Meio nos anos 80, roubando uma fatia poderosa da faixa do mar. Uma cidade cujo projeto de exploração está diametralmente contrário à manutenção de seus biomas, contrário aos braços humanos que a sustentam.
O Plano Diretor, instrumento de ordenamento e planejamento da cidade, está de molho em disputas desiguais por toda a década de 2010. As construtoras, as empresas de coleta de lixo e tratamento de resíduos sólidos e o lobby do transporte público seguem dando as cartas pela capital sergipana, financiamento as principais campanhas eleitorais e ocupando espaços cada vez mais vistosos em nosso tabuleiro.
O Bairro 17 de Março, que leva o nome do aniversário da cidade, ainda não goza de equipamentos públicos dignos, por mais que se reconheça o avanço na construção da EMEI José Souza e da creche municipal, importantes, mas ainda insuficientes. A maior ocupação popular da capital sergipana, a Mangabeiras, conta com duas mil famílias em média, e não há qualquer projeto ou política pública que abarque de fato aquela comunidade. Assim como o “Morro do Bomfim” nos anos 50, comunidade que ficava nas proximidades da Rodoviária Velha e sofreu um dos maiores despejos de nossa história recente, as famílias das Mangabeiras seguem à margem do Estado. Os números de ocorrências e registros policiais também assombram o cotidiano da cidade, Aracaju figura entre as capitais mais violentas do país.
Mas nem tudo é partitura de nossa modernidade excludente, o jogo está sendo jogado e outro projeto de cidade é possível e necessário. Um projeto de cidade que não paute os direitos de esgotamento sanitário com aterramento de lagoas naturais, como acontece atualmente com a Lagoa Doce do Jabotiana. Um projeto de cidade que não falsifique sua história em detrimento de nosso sofrimento presente, um projeto de cidade que não pense mobilidade urbana com os olhos no bolso das empresas de transporte, que não nos dê a maior tarifa de transporte coletivo do Nordeste, um projeto de cidade que amplie e reforme as ciclovias pelas artérias da Zona Norte e Zona Sul. Um projeto de cidade que enxergue a Zona de Adensamento Restrito, mais conhecida como Zona de Expansão, como um bolsão para a especulação imobiliária. Um projeto de cidade construído por todas as mãos que a sustentam de fato.
“Meu papagaio não tem asa, não tem bico. Nesta terra eu não fico”. Nos anos da ditadura civil-militar, o cantor Antônio Carlos do Aracaju compôs a música “Meu Papagaio” no intuito de denunciar a perseguição política e institucional que vigorava por estas terras. A canção é apropriada pelo calendário da cidade, mas as bases de sua composição permanecem intactas. Propomos, portanto, que comemoremos o aniversário de Aracaju reescrevendo nas ruas o seu destino para os trabalhadores e trabalhadoras que aqui habitam, com direito à educação, saúde, pelo direito de ir e vir, pela manutenção de seus biomas, com esgotamento pleno. Uma cidade onde todos tenham asas pra voar e bico para falar o que bem entender e der na telha, com dignidade e liberdade coletiva.
*Henrique Maynart é jornalista e militante da Resistência/PSOL
Foto de André Moreira.
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