*Este artigo foi originalmente publicado em Socialist Worker, em 10/09/2013. Tradução para o português: Renata Vereza.
Uma das acusações mais comuns contra o marxismo é que como teoria está focado na “classe” às expensas do gênero
É importante estabelecer desde o princípio que a história das organizações que se dizem “marxistas” nem sempre foi positiva no que diz respeito às categorias de opressão, como o gênero e a raça. Todo mundo conhece alguém a quem um homem “marxista” tenha dito que assuntos “menores” como o sexismo ou o racismo se resolverão “depois da revolução”, portanto, nesse meio tempo, todos devemos por as mãos à obra e trabalhar em nossa luta de classes. Os incidentes de assédio sexual por parte de homens marxistas desafortunadamente também não são raros nas organizações de esquerda, tanto no passado quanto no presente.
Em diversos exemplos de verdadeiro assédio, as mulheres relataram sentir-se rejeitadas, minadas e institucionalmente descartadas dentro das organizações. As vozes de mulheres ativistas como as comunistas indianas envolvidas na histórica luta de Telengana de 1947, comunistas britânicas como Doris Lessing, ou Peggy Dennis, membro destacado do Partido Comunista dos Estados Unidos, contam histórias desalentadoras de sexismo e desapontamento nas organizações que elas viam como o trabalho de suas vidas e fonte de esperança.
Esse registro é particularmente terrível porque muitas de nós nos tornamos marxistas precisamente por que se supõe que revolucionários marxistas são os mais intolerantes com a opressão de gênero. Nos unimos às organizações revolucionárias porque pensamos no marxismo como uma teoria insurgente, que luta por – mas que nunca fica satisfeita com – qualquer reforma que ofereça o sistema e que apela à demolição completa do capitalismo – e é uma das melhores armas para lutar pela liberação feminina e pela justiça de gênero. Esse é o motivo, se somos revolucionários sérios e não irreflexivos predicadores do dogma, pelo qual temos que considerar que existem dois aspectos mutualmente contraditórios da história do marxismo que temos que levar em conta.
Teoria Marxista
Há um insight subdesenvolvido no coração da análise de Marx sobre o capitalismo. N’O Capital, Livro 1, Marx identifica a “força de trabalho”, ou nossa capacidade de trabalhar, como a “mercadoria especial” que o capitalista necessita para colocar o sistema em movimento e mantê-lo em funcionamento. Nossa força de trabalho, nos diz Marx, tem a “propriedade peculiar de ser uma fonte de valor” porque com essa força de trabalho criamos mercadorias e valor para o capitalismo. A apropriação do nosso trabalho excedente pelos capitalistas é a fonte de seu domínio. Então, sem essa força de trabalho o sistema colapsaria.
Mas Marx é frustrantemente silencioso sobre o resto da história. Se a força de trabalho produz valor, como então a força de trabalho produz a si mesma? Certamente os trabalhadores não brotam do chão para chegar ao mercado, frescos e prontos para vender sua força de trabalho ao capitalista.
Esse é o ponto a partir de onde posteriores estudiosos marxistas como Lise Vogel, Martha Gimenez, Johanna Brenner e, mais recentemente, Susan Ferguson e David McNally se apropriaram da visão transformadora, mas incompleta, de Marx e a desenvolveram ainda mais. Talvez seja importante para nós lembrarmos nesse contexto o potencial e a criatividade inerentes a tradição marxista, corretamente referida como uma tradição viva, a qual permitiu às novas gerações de marxistas examiná-la criticamente e expandi-la.
Olhando de perto O Capital de Marx, estes estudiosos argumentam que a chave do sistema, nossa força de trabalho, na verdade se produz e se reproduz fora da produção capitalista, em um espaço “baseado em parentesco” chamado família. Em uma passagem excelente, Vogel explica claramente a conexão entre luta de classes e opressão das mulheres:
A luta de classes sobre as condições de produção representa a dinâmica central do desenvolvimento social nas sociedades caracterizadas pela exploração. Nestas sociedades, o trabalho excedente é apropriado por uma classe dominante e uma condição essencial para a produção é a …renovação de uma classe subordinada de produtores diretos comprometidos com o processo laboral. Normalmente, a reposição geracional fornece a maioria dos novos trabalhadores necessários para repor essa classe e a capacidade das mulheres para ter filhos tem um papel decisivo na sociedade de classes… Nas classes proprietárias… a opressão das mulheres flui do seu papel na manutenção e na herança da propriedade… nas classes subordinadas… a opressão feminina… deriva do envolvimento das mulheres no processo que renova os produtores diretos, assim como de seu envolvimento na produção. [1]
Este é essencialmente o argumento principal do que Vogel e estas outras marxistas posteriores chamam de “teoria da reprodução social”. A teoria da reprodução social mostra como a “produção de bens e serviços e a produção da vida são partes de um processo integrado”, como expressou Meg Luxton. Se a economia formal é o local da produção de bens e serviços, as pessoas que produzem tais coisas se produzem a si mesmas fora do âmbito da economia formal a um custo muito baixo para o capital.
Em geral, a força de trabalho é reproduzida por três processos interconectados
1 – Por atividades que regeneram a trabalhadora fora do processo de produção e que a permitem regressar a ele. Estas incluem, entre muitas outras, comida, uma cama para dormir, mas também os cuidados com o as questões psíquicas que mantém uma pessoa inteira.
2 – Por atividades que mantém e regeneram aos não trabalhadores fora do processo de produção – quer dizer aqueles que são trabalhadores futuros ou passados, como as crianças e os adultos fora da força de trabalho por N razões, quer seja a velhice, a invalidez ou o desemprego.
3 – Reproduzindo novos trabalhadores, através do parto
Estas atividades, que formam a base mesma do capitalismo no sentido de que reproduzem o trabalhador, são feitas completamente grátis para o sistema por mulheres e homens dentro dos lares e da comunidade. Nos Estados Unidos, as mulheres ainda carregam uma parte desproporcional desse trabalho doméstico.
Segundo uma pesquisa de 2012 [2], as mulheres nos Estados Unidos realizaram 25,9 horas semanais de trabalho doméstico não remunerado em 2010, enquanto que os homens realizaram 18,8 horas, uma diferença de mais de nove horas. A pesquisa inclui tarefas tais como o cuidado com as crianças, a cozinha, as compras e as tarefas domésticas, os trabalhos ocasionais, a jardinagem, entre outros.
Segundo a revista Forbes[3], se o trabalho doméstico não remunerado fosse incluído no cálculo do PIB “o teria elevado em uns 26% em 2010”. Mas, claro, também temos que agregar a esta já formidável lista tarefas adicionais não indexáveis, tais como fornecer atenção psíquica e apoio tanto aos empregados como aos não empregados do lar. Qualquer uma que tenha precisado acalmar uma criança depois de um dia duro em seu próprio local de trabalho ou cuidar de um pai idoso depois de um turno esgotante, sabe o quão importante podem ser essas tarefas aparentemente não materiais.
A ideia mais importante da teoria da reprodução social é que o capitalismo é um sistema unitário que pode integrar com êxito, ainda que de maneira desigual, a esfera da reprodução e a esfera da produção. As mudanças em uma esfera têm efeito na outra. Salários baixos e a tendência neoliberal a redução dos custos no trabalho podem gerar execuções hipotecárias e violência doméstica no lar.
Por que esta é a ideia mais importante? Porque dá substância histórica real a compreensão de: a) quem é um “trabalhador” e b) de que maneiras o trabalhador pode lutar contra o sistema. O mais importante é que esta teoria nos ajuda a compreender que qualquer vitória pelos direitos de gênero que realizarmos tanto na economia formal quanto fora dela somente pode ser temporária porque a base material da opressão das mulheres está ligada ao sistema em seu conjunto. Qualquer conversa sobre o fim da opressão e da emancipação necessita recorrer a uma conversa simultânea sobre o fim do sistema em si.
A importância da esfera da produção
Se as mulheres proporcionam o principal apoio para o capitalismo fora do local de trabalho através de seu trabalho não remunerado, isso faz com que os problemas do local de trabalho sejam então problemas de homens?
Qualquer um que espere encontrar o estereótipo do século XIX do trabalhador branco em seu macacão com sua chave de porca deveria dar uma olhada ao mercado laboral norte-americano.
A grande maioria das mulheres nos Estados Unidos tem que trabalhar para viver. Isso significa que vendem sua força de trabalho no mercado e são trabalhadoras. As mulheres representam a metade, uns 47%, da força de trabalho norte americana e a porcentagem das mães casadas que trabalham aumentou de 37% em 1968 para 65% em 2011. Segundo um estudo do Centro de Pesquisas Pew [4] publicado este ano, um recorde de 40% das mães estadunidenses são o principal sustento de suas famílias, em comparação com meros 11% em 1960.
Se bem que a filiação sindical é baixa para todos os trabalhadores do EUA, a quantidade de mulheres sindicalizadas não está muito atrás do número de homens sindicalizados. Segundo a agência de estatísticas laborais dos EUA [5], mesmo depois da forte queda na filiação sindical desde a recessão, as cifras de 2012 demonstram que a taxa de sindicalização foi de 12% para os homens, comparado com 10,5% para as mulheres. Esses dados também mostram que os trabalhadores negros eram mais propensos a ser membros de sindicatos que brancos, asiáticos ou latinos homólogos.
Portanto, disso se deduz que qualquer um que argumente que os problemas das mulheres têm a ver somente com o que experimentamos ou suportamos no lar (violência sexual, saúde reprodutiva, cuidado infantil, etc.), ou fora da esfera de produção, está simplesmente incorreto. Qualquer discussão sobre os salários ou o local de trabalho, sobre a organização laboral ou sobre a luta por benefícios é um tema altamente relacionado com o gênero.
Mas há duas tendências radicalmente contraditórias que marcam todas as noticias recentes sobre as mulheres. Uma é a pauperização insuportável da grande maioria das mulheres e a outra é a ascensão de um grupo incrivelmente próspero e multiétnico de mulheres na classe dominante.
Mais de três quartos dos trabalhadores nas dez categoriais de trabalho com salários mais baixos são mulheres e mais de um terço são mulheres de cor. [6] Escrevi antes sobre como os Estados Unidos é um dos quatro únicos países do mundo que carecem de licença maternidade remunerada, o que faz com que seja extremamente difícil para as mulheres serem mães trabalhadoras. Além disso, um terço dos trabalhadores norte-americanos não tem acesso a licença médica remunerada e só 42% tem licença remunerada em caso de doença própria ou na família. [7] Como assinalam corretamente os ativistas sindicais:
Qual é o impacto na saúde pública quando as pessoas trabalhadoras não podem se dar ao luxo de tirar uma licença médica durante uma epidemia de gripe? Quem cuida de uma criança doente? Quem está em casa para preparar o jantar e ajudar com o dever de casa? Quem pode dedicar tempo a um pai ancião enfermo? [8]
Como as mulheres devem equilibrar a carga de trabalho não remunerado no lar com o trabalho integral remunerado no local de trabalho? A verdadeira resposta é que elas não podem.
Em 1990, a participação das mulheres na força de trabalho foi de 74%, o que coloca aos Estados Unidos no sexto lugar nesta medição entre 22 países desenvolvidos. Graças as políticas neoliberais das duas décadas seguintes, a participação das mulheres aumentou somente uma fração para 75,2%, enquanto que em outros países industrializados, aumentou de 67% para cerca de 80%.
Não só as mulheres são obrigadas a trabalhar em tempo parcial, mas a hostilidade do local de trabalho com a natureza de gênero do trabalho doméstico é também o porquê de somente 9% das mães trabalharem mais de 50 horas por semana.
Vamos pensar nisso por um minuto. Se as mães trabalharem, digamos 55 horas por semana e atribuímos um tempo médio de deslocamento, os sociólogos demonstraram que elas terão que sair de casa as 08h30 da manhã e regressar as 08h30 da noite todos os dias de trabalho.[9]
Apesar dos vastos poderes da internet, as crianças ainda têm que ser buscadas na escola e alimentada por um ser humano vivo e os pais idosos devem ser atendidos pela mesma pessoa. Na maioria dos casos, nos Estados Unidos, esta pessoa segue sendo uma mulher.
Depreende-se da pesquisa acima que qualquer problema relacionado com o lugar de trabalho também se refere às mulheres e ao gênero. As políticas que governam os locais de trabalho têm o poder de afetar às mulheres tanto no trabalho quanto no lar. Mas pelo que deveríamos lutar? Deveríamos lutar pela igualdade salarial em uma economia de salários baixos? Deveríamos lutar pela atenção médica universal, o que facilitaria nossa carga de trabalho? Deveríamos lutar como “mulheres” ou deveríamos lutar como “’trabalhadoras”?
Há um grupo particularmente ativo de mulheres que surgiram na mídia nos últimos tempos para defender os direitos das mulheres. Joan C. Williams é uma socióloga muito perspicaz, cujo trabalho sobre classe e gênero deve ser lido amplamente. Mas, recentemente, fez a decepcionante observação de que “o feminismo executivo é exatamente o que necessitamos para impulsionar a estancada revolução de gênero”. [10]Por “feminismo executivo” literalmente se refere ao “feminismo” dos diretores executivos das grandes multinacionais. Ela nomeou a Sheryl Sandberg e a professora de Princeton Anne Marie Slaughter como as líderes dessa “nova fronteira feminista”.
Muitos podem se deleitar com a invasão das salas de reunião corporativas por um punhado de mulheres. Estas salas de reunião e seus campos de golfe contíguos têm sido os bastiões do privilégio masculino de classe alta durante séculos. Contudo, isso nos leva a uma pergunta central: quais são os direitos de gênero se os separarmos da questão da classe? Atuarão as mulheres CEO (diretoras-executivas) no interesse de todas as mulheres?
As melhores políticas para promover os interesses da maioria das mulheres são também as mesmas políticas que reduzem os lucros do capitalismo como um sistema de produção.
Por exemplo, a saúde pública garantiria que todos os homens, mulheres e crianças, tendo ou não um emprego remunerado, tenham acesso à atenção médica gratuita. Isso reduziria a dependência de uma mulher desempregada de seu parceiro empregado e poderia eventualmente lhe permitir o controle sobre sua saúde e decisões reprodutivas, sem mencionar o apoio à saúde e a atenção com sua família. Ela poderá eleger quando e se quer ter filhos e obter ajuda doméstica gratuita para os membros idosos da família, o que reduziria drasticamente seu próprio trabalho no lar.
Entretanto, a indústria médica é um negócio multimilionário que lutaria contra isso com unhas e dentes. Da mesma maneira, é do interesse das mulheres que tenhamos um salário digno para todos os trabalhadores, já que as mulheres se encontram desproporcionalmente entre as pessoas pior pagas da economia. Ali também, nos chocaríamos com os lucros do Capitalismo e seria uma batalha difícil de ganhar.
As Sheryl Sandbergs do mundo são claras guerreiras de classe que utilizam a linguagem dos direitos das mulheres para reforçar um sistema que só beneficia sua própria classe. A milionária Sandberg inclusive se negou a pagar seus próprios estagiários até que um protesto público a fez mudar de decisão.
A mensagem central que vem desta nova geração de mulheres CEO é que trabalhar e trabalhar mais pesado liberará às mulheres.
É certo que a independência econômica das mulheres é um direito duramente conquistado que deve ser reforçado constantemente mediante a luta. É por isso que encontramos nos escritos dos primeiros marxistas, como Nadezhda Krupskaya, uma forte ênfase no trabalho das mulheres na esfera da produção e seu potencial emancipador.
Mas a ‘independência” econômica parece muito melhor em Sheryl Sandberg do que na mãe que trabalha no Taco Bell – porque a relação de Sandberg com o capitalismo, como uma chefe, é de controle, enquanto que a da mãe trabalhadora é de uma perda total de controle. No caso desta última, seu trabalho lhe proporciona uma limitada independência econômica de seu parceiro(a), mas uma completa dependência dos caprichos do mercado.
Quando Sandberg diz que as mulheres precisam trabalhar mais arduamente para obter recompensas, ela está pedindo a uma certa classe de mulheres – a sua – que arranque mais controle dos homens de sua classe, enquanto mantém intacto o sistema que funciona através do trabalho remunerado e não remunerado da maioria das mulheres.
De fato, acadêmicas como Karen Nussbaum argumentam que o sistema criou alguns poucos espaços para as mulheres da classe dominante no topo, a fim de evitar mudanças institucionais mais profundas que transformariam a relação da maioria das mulheres com o trabalho:
Para conter as crescentes demandas das mulheres trabalhadoras, os empregadores criaram oportunidades para algumas mulheres, abrindo empregos profissionais e gerenciais para as graduadas universitárias, resistindo assim a demanda por mudanças institucionais que melhorariam os empregos para todas as mulheres. As mulheres em ambos os extremos da força de trabalho continuaram compartilhando as preocupações comuns da igualdade salarial e das políticas de trabalho-família, mas a intensidade desses temas diferiu na medida que as condições dos grupos iam mudando. Os empregadores haviam criado uma válvula de segurança. As mulheres educadas na universidade que haviam sido caixas de banco se converteram em gerentes de sucursais; as que faziam trabalho administrativo nas editoras estavam se convertendo em editoras. A porcentagem de mulheres gerentes ou em cargos técnicos de nível superior duplicou entre 1970 e 2004, de 19 para 38%. [11]
É reducionista dizer que as batalhas de gênero em nossa sociedade são as mesmas batalhas que as de classe. Mas é correto dizer: a) seguindo a linha de Lise Vogel, que a luta de classes representa a “dinâmica central” do desenvolvimento social e b) que é do interesse do capitalismo como sistema evitar qualquer mudança ampla nas relações de gênero, porque as mudanças reais no gênero, em última análise, afetarão os lucros.
A importância da esfera da reprodução
É lógico então que a melhor maneira de lutar pelos direitos das mulheres na esfera da produção seja através das nossas organizações laborais. Existem alguns momentos verdadeiramente inspiradores na história dos trabalhadores nos quais os sindicatos lutaram pelo direito ao aborto, à igualdade salarial e contra a homofobia.
Contudo, a classe trabalhadora não trabalha somente no seu local de trabalho. Uma mulher trabalhadora também dorme em sua casa, seus filhos jogam no parque público e vão à escola local e, algumas vezes, pedem ajuda a sua mãe aposentada para cozinhar. Em outras palavras, as principais funções que reproduzem a classe trabalhadora ocorrem fora do local de trabalho.
Quem entende melhor este processo? O capitalismo. Este é a razão pela qual o capitalismo ataca brutalmente a reprodução social para ganhar a batalha na produção. É por isso que ataca os serviços públicos, empurra a carga de cuidados para as famílias individuais, reduz o cuidado social para fazer com que toda a classe trabalhadora seja vulnerável e menos capaz de resistir aos seus ataques no local de trabalho.
Quem mais entende este processo? Os marxistas revolucionários. É por isso que podemos ser o vínculo entre a esfera da reprodução, a comunidade onde a escola está sendo fechada, o lar onde a mulher é submetida à violência; e a esfera da produção, onde lutamos por benefícios e por salários mais altos.
Nós fazemos isso de duas maneiras. Nós (a) proporcionamos o vínculo analítico entre as “duas esferas” do sistema único, através da teoria marxista; e (b) atuamos como uma tribuna dos oprimidos, particularmente quando a luta não se generalizou no local de trabalho. Pois não é verdade que a classe trabalhadora não possa lutar na esfera da reprodução. No entanto, é verdade que só se pode ganhar contra o sistema na esfera da produção.
Algumas das lutas mais importantes na história da classe trabalhadora começaram fora da esfera da produção. As duas revoluções mais importantes do mundo moderno, a francesa e a russa, começaram como revoltas por pão, dirigidas por mulheres.
A compreensão do capitalismo como um sistema integrado, onde a produção está sustentada pela reprodução social, pode ajudar os ativistas a compreender a importância das lutas políticas em qualquer das esferas e a necessidade de uni-las.
Tomemos o caso dos direitos reprodutivos, uma das lutas críticas de nossos tempos, que não é diretamente uma luta no local de trabalho. Os direitos reprodutivos se referem simplesmente à capacidade das mulheres terem acesso ao aborto e a contracepção?
Na realidade os direitos reprodutivos deveriam se chamar justiça reprodutiva. Os direitos das mulheres em eleger não somente o direito a não ter bebês, mas também o direito a tê-los. A história das mulheres afro americanas e de outras mulheres de cor nos Estados Unidos está manchada por casos de esterilização forçada por parte do Estado. Ao longo da década de 1960, os estados de Illinois, Iowa, Ohio, Virginia e Tennessee consideraram leis de esterilização compulsória para a mães negras como assistência social. Quando o contraceptivo Norplant foi lançado pela primeira vez no mercado, um editorial no Philadelphia Inquirer sugeriu que era uma solução para a pobreza da população. Um destino similar aguardava as mulheres de Porto Rico. Quando a indústria norte americana, sob o programa econômico da “operação Bootstrap”, foi à ilha em busca de mão de obra barata nos anos 1930 e 1940, muitas fábricas administraram clínicas de controle de natalidade para mulheres trabalhadoras e algumas se negaram a contratar mulheres a menos que tivessem sido esterilizadas.
Além disso, a opção reprodutiva não pode ser só sobre o controle dos nossos ovários. Trata-se de controlar nossas vidas: se queremos ter filhos, quando tê-los, quantos ter, o tempo para cuidar deles, que existam escolas públicas para enviá-los, que nem eles nem seus pais estejam atrás das grades e o mais importante, receber um salário decente para poder tomar decisões sobre todas essas coisas.
O New York Times informou esta semana que houve uma diminuição de 9 por cento na taxa de fertilidade de 2007 a 2011, uma queda que os demógrafos creem que “começou depois que a recessão se estendeu e as estadunidenses começaram a se sentir menos seguras sobre suas situações econômicas”. Em outras palavras, o Times acaba de descobrir que a maioria das mulheres comuns e correntes preferem ter filhos quando sente que tem meios econômicos para alimentá-los e cria-los!
Portanto, a questão da reprodução está ligada às questões mais fundamentais de nossa sociedade: quem trabalha, pra quem e por quanto tempo.
Por uma luta integrada contra o capitalismo
Neste momento particular da crise neoliberal, o gênero está sendo utilizado como a arma de luta de classe por parte do capital. A reiterada defesa de casos de violação por figuras do establishment, o severo ataque aos direitos reprodutivos e a crescente transfobia são resultados do capitalismo tentando de diversas formas resolver a crise econômica mediante ataques à vida da classe trabalhadora, tanto no trabalho, quanto no lar.
Nossa solução como revolucionários marxistas não é simplesmente falar sobre a importância da luta de classes, mas vincular as lutas da economia formal com as que estão fora dela. Para que isso aconteça, é menos importante que “ganhemos a discussão” com as identidades oprimidas. É mais importante que ganhemos sua confiança, sendo os lutadores mais intransigentes na casa e no trabalho.
Essa é a razão pela qual nas organizações onde lutamos por salários (por exemplo, nossos sindicatos) temos que levantar a questão da justiça reprodutiva; e em nossas organizações onde lutamos contra o sexismo e o racismo, temos que levantar a questão dos salários. Necessitamos de uma geração de mulheres e homens rebeldes para fazer essa conexão em nossos locais de trabalho, em nossos campi e nas ruas. Essa é a verdadeira tradição do marxismo.
* Tithi Bhattacharya é professora de História do Sul da Ásia e Diretora do Centro de Estudos Globais na Universidade de Purdue (EUA). Ela é uma proeminente feminista marxista e uma das organizadoras da Greve Internacional de Mulheres nos Estados Unidos, além de ativista da causa palestina. É coautora do manifesto “Feminismo para os 99%”, junto com Cinzia Arruza e Nancy Fraser (São Paulo: Boitempo, 2019).
NOTAS
1 – Vogel, Lise, Marxism and the oppression of women: towards an unitary theory, Leiden, Brill, 2013 (1ª ed. 1983), p. 129. (ênfase da autora)
2 – Bridigman, B. (e outros), Accounting for Household Production in the National Accounts, 1965–2010 (Maio de 2012), https://apps.bea.gov/scb/pdf/2012/05%20May/0512_household.pdf, último acesso em fevereiro de 2019.
3 – Coverte, Bryce, Putting a Price Tag on Unpaid Housework, Forbes, 30/05/2012, https://www.forbes.com/sites/brycecovert/2012/05/30/putting-a-price-tag-on-unpaid-housework/#4148e07d35c6, última consulta fevereiro de 2019
4 – Wang (e outros) Breadwinner Moms, maio de 2013, http://www.pewsocialtrends.org/2013/05/29/breadwinner-moms/, último acesso em fevereiro de 2019.
5 – Conforme https://www.bls.gov/news.release/pdf/union2.pdf, última consulta em fevereiro de 2019.
6 – Women of color no original, referindo-se a mulheres “não brancas” na classificação usual nos Estados Unidos, o que inclui latinas, asiáticas e mulheres das populações nativas americanas (indígenas).
7 – Tithi Bhattacharya, Marisa Mayer, the family and capitalism, Socialist Worker, março de 2013, https://socialistworker.org/2013/03/14/marissa-mayer-and-the-family, último acesso em fevereiro de 2019.
8 – Improving work-life balance, https://aflcio.org/what-unions-do/empower-workers/work-life-balance, último acesso em fevereiro de 2019.
9 – Williams, Joan, Why men work so many hours?, Harvard Business Review, maio de 2013, https://hbr.org/2013/05/why-men-work-so-many-hours, último acesso em fevereiro de 2019.
10 – Williams, Joan & Dempsey, Rachel, The rise of executive feminism, Harvard Business Review, março de 2013, https://hbr.org/2013/03/the-rise-of-executive-feminism, último acesso fevereiro de 2019.
11 – Nussbaum, Karen, “Working women’s insurgent consciousness”, Cobble, D. S. (ed.), The Sex of Class: Women Transforming American Labor, edited by Dorothy Sue Cobble, 1st ed., Cornell University Press, 2007, p. 165.
12 – Gutiérrez, Elena & Fuentes, Liza, Population Control by Sterilization: The Cases of Puerto Rican and Mexican-Origin Women in the United States, Latino(a) Research Review, Volume 7, Number 3, 2009-2010, https://www.albany.edu/celac/LRR%202010.pdf, último acesso em fevereiro de 2019.
13 – Tavernise, Sabrina, Fertility Rate Stabilizes as the Economy Grows, New York Times, 6/09/2013, https://www.nytimes.com/2013/09/06/health/fertility-rate-stabilizes-as-the-economy-grows.html, último acesso em fevereiro de 2019.
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