Há cerca de dois anos, também na quarta-feira de cinzas, escrevi um texto a este portal sobre qual havia sido, para mim, o enredo do carnaval paulistano. Via nas circunstâncias da política daquele momento um cenário desalentador para os bons foliões. João Dória havia acabado de assumir a prefeitura. Prometia, entre outras coisas, organizar – a sua moda – o carnaval. Quis confiná-lo a avenidas estéreis, que pudessem fazer da festa do povo um produto mais adequado às expectativas das empresas que ameaçavam retirar seus patrocínios.
No entanto, o carnaval, uma das principais expressões da cultura brasileira, resistiu. As ruas, do centro e das periferias, foram todas ocupadas pela música e pelos sorrisos de seu povo. Novos blocos nasceram, organizados colaborativamente, recusando as rédeas que o prefeito pretendia impor. Mesmo o Anhembi resistiu. Enquanto assumia o poder um herdeiro de senhores de engenho, a escola campeã – a Acadêmicos do Tatuapé – fez da avenida uma kizomba, narrando a força da Mãe África em seu samba-enredo.
Dois anos depois, as cenas da política se tornaram apenas mais desalentadoras. Jair Bolsonaro se tornou presidente, trazendo junto consigo um enorme fortalecimento de ideias conservadoras e reacionárias. E, com elas, a pretensão de reescrever novamente a história das relações raciais no país. Diante do ascenso do movimento negro e do radical despertar racial de toda uma nova geração, começou a convencer parte da população da mentira de que o racismo não importa. Desqualificou os gritos de dor e revolta do povo preto enquanto expressões de ressentimento.
Mas, então, novamente chegou o carnaval. E, com ele, vários sambas-enredos que exaltam o povo preto e narram as suas lutas. O protagonismo das mulheres negras nas lutas pela transformação social – tanto aquelas que ainda sobrevivem nos livros de história, quanto aquelas cujas histórias jamais haviam sido contadas – foi tema recorrente tanto no Anhembi, quanto na Sapucaí. Marielle Franco se tornou estandarte de nossa maior festa popular.
De volta às ruas de São Paulo, os foliões embalavam no ritmo das marchinhas seus gritos contra o presidente. A crítica e a sátira também estiveram presentes nas fantasias. A mamadeira de piroca finalmente se tornou realidade. Vi por aí diversas versões do tal do Queiroz. Não faltou também menino usando rosa e menina, vestindo azul. Mas, por falar em cor, o laranja jamais foi uma cor tão amplamente amada! E aposto que engenheiro agrônomo algum podia imaginar que o asfalto paulistano fosse tão fértil às laranjeiras.
E a reação do presidente? Publicou um vídeo quase pornográfico em seu twitter oficial para denunciar a suposta imoralidade do carnaval. Conseguiu apenas nos dar motivos para continuarmos fazendo piada ainda que já seja a quarta-feira de cinzas. Ainda assim, não podemos achar que ele recuará em sua ofensiva conservadora. A nossa única certeza é a de que, não importa o que aconteça, a cultura continuará resistindo à barbárie. Na verdade, podemos ter também uma outra certeza: ano que vem terá carnaval novamente.
FOTO: Desfile da Mangueira. Tomaz Silva/Agência Brasil
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