Hoje, depois de treze dias da tragédia no Centro de Treinamento do Flamengo, volto a escrever sobre. Agora me limito somente ao que aconteceu no Ninho do Urubu, e como chegamos ao incêndio. Antes de tudo, quero dizer que, para mim, o Flamengo é o maior culpado, mas não cometeu o crime sozinho.
Vamos do começo. O Fla em 2010 solicitou ao Corpo de Bombeiros do RJ o Projeto de Segurança contra Incêndio para o CT e, desde então os bombeiros tinham feito vistorias constantes no local, a última em novembro de 2018. Acontece que, nem o Ninho do Urubu como um todo, nem os dormitórios em que estavam os meninos tinham licença. Os dormitórios, inclusive, nem poderiam existir ali. E existem desde 2011. O clube quando solicitou o alvará de funcionamento comunicou à Prefeitura de que aquele espaço seria um estacionamento.
Nesse período entre 2010 e 2018 o Fla recebeu mais de 30 multas da Prefeitura. Pagou 10, ignorou todas as outras. Ignorou também a decisão de interdição que o CT sofreu em outubro de 2017. Essa postura do Clube atesta que ele têm responsabilidade na tragédia. Fez pouco caso das multas, ignorou a intenção de interdição da Prefeitura e continuou cada dia mais aumentando suas receitas através dos lucros bilionários com as vendas dos jogadores do time profissional e também de garotos da base que dormiam nos contêineres incendiados.
Também por isso, os dirigentes e responsáveis técnicos do Fla naquela época nem sequer na planta do CT colocaram os dormitórios. Aliás, falando sobre eles mais uma vez, dormitórios é elogio. Os meninos foram praticamente carbonizados, um efeito estufa aconteceu dentro dos contêineres.
A deterioração dos corpos chegou ao ponto de que fosse necessário ter exames de DNA para identificação. O contêiner que os meninos usavam para dormir era feito de paredes de metal, pré moldadas, usando uma técnica chamada Sanduíche. Ou seja, entre as partes de metal há uma espuma de Poliuretano. Quando incendiada a espuma solta o gás cianeto. Um dos 20 mais letais do mundo. Ao inalar o gás, nossa morte ocorre em questão de minutos. A medicina chama de asfixia química.
Essa mesma espuma já é conhecida pelo Brasil. Em 2013 uma tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria, no RS, matou mais de 240 pessoas, deixando mais de 650 feridos. Muitos na boate morreram asfixiados, com o mesmo gás cianeto dos contêineres dos Garotos do Ninho. Inclusive, as duas tragédias têm semelhança justamente nesse ponto, as duas foram pioradas, ou até causadas pela presença do gás. O mesmo que também foi usado pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial.
Em nenhum momento quero dizer que o Flamengo é nazista, nem suas práticas. Também não quero dizer que a empresa que produz os contêineres é discípula de Hitler. O que afirmo é que, sendo um clube de primeira linha, com receita de mais de 700 milhões de reais por ano, o Flamengo tinha a obrigação de evitar os riscos ao máximo. Excluindo, por exemplo, as estruturas que tivessem a presença do Poliuretano. Ou talvez instalassem os aparelhos de ar condicionado com sua fiação individual, e não todos numa só fiação. O clube foi negligente quando colocou seus atletas nessa situação. Podiam até ter colocado os dormitórios na Planta do CT. Não fizeram.
Não consigo acreditar que foi acaso. A CBF, por exemplo, concedeu ao Fla, no início de 2017, o certificado de clube formador de atletas. Entretanto, de acordo com a Lei Pelé, a CBF deveria fazer uma avaliação presencial no local, e em todas as instalações dos atletas. A própria confederação disse que não foi ao CT. Disse também que era obrigação da FERJ, a Federação de Futebol do RJ. Ou seja, a própria CBF faz descaso com o texto claro da lei. Total descaso. Continua na mesma lógica do toma lá dá cá.
Para completar, o Flamengo, após três reuniões com o Ministério Público do RJ e a Defensoria Pública não pagou nenhuma indenização às vítimas. E pior, ofereceu R$ 400 mil por vítima e um salário mínimo durante 10 anos para cada família atingida. Um total de R$ 5,2 mi seria gastos em indenizações. O MP e a Defensoria Pública do RJ não entraram em acordo com o Clube. A pedida dos órgãos públicos são de R$2 mi por vítima e, R$ 10 mil por mês para cada família, até que os meninos tivessem completado 45 anos. A solicitação dos órgãos públicos chega a um total de R$ 52 milhões.
O que fica evidente é que pro Clube, os Garotos nada valem. Nem as suas vidas. Nem a dor das famílias. Isso não importa. Quando o clube propõe que o valor final das indenizações seja menos do que 1% da sua receita total, atesta mais uma vez que tanto faz. Tanto faz prós empresários e cartolas do futebol brasileiro se 10 meninos morreram, sendo na sua maioria negros. Tanto faz pra eles se as famílias sentem dor ou não. É desumana a postura do clube. O Flamengo não está numa situação em que pode exigir algo.
Após uma nova vistoria do MP houve um pedido de interdição do CT feito pelo órgão público, na sexta feira, dia 15 de fevereiro. Ignorado novamente pelo Fla. O Clube ainda treina nas instalações e os atletas continuam usando outros alojamentos, porém sem pernoites, o que na verdade, não muda absolutamente nada.
É uma vergonha pro futebol mundial. Na terra de Pelé a lei com o nome do Rei é desrespeitada sem mais nem menos. Fazem descaso e dão um recado aos atletas da base: Salve-se quem puder. Quem chegar ao profissional, continue nos dando dinheiro. Quem não conseguir, se vire.
O Flamengo pagou os velórios de todos os jogadores. Mais nada. Para além disso o clube também dispôs os seus médicos e psicólogos para auxiliar na recuperação de todos os sobreviventes. Entretanto, essa estrutura já estava a serviço dos atletas, já jogavam profissionalmente nas categorias de base do Clube. Isso é somente uma obrigação cumprida. Nada além, nada além. O Flamengo não faz esforço para que a tragédia que levou os 10 Garotos do Ninho seja um marco na história.
O próprio CEO do Fla, Reinaldo Belotti, um dia depois da tragédia disse que “a falta de licenças ou alvarás do CT, em nada tem a ver com o “acidente”. Ou seja, o Fla desde o começo não assumiu a culpa. Nunca fez força pra isso. Fugiu da responsabilidade e vai continuar fugindo.
Os grandes empresários fazem isso com naturalidade. Os “acidentes” para eles, são fatos anunciados para nós, praticamente. É pedir demais que se preocupem com as vidas? O Flamengo nunca sinalizou aos bombeiros nem à Prefeitura que existiam contêineres desde 2011 no CT, onde dormiam os atletas. Se isso não é assumir o risco iminente de qualquer tipo de tragédia, o que é? Se isso não é fazer pouco caso com os que passam por aquelas paredes de ferro, o que é?
Precisamos decidir, e já passou da hora. Os responsáveis dos absurdos que acontecem no nosso Brasil têm nome. Ou estamos do lado dos trabalhadores e trabalhadoras de Brumadinho e Mariana, que sequer tiveram tempo de se salvar e do lado dos que querem justiça para os Garotos do Ninho e uma vida com mais empatia. Ou estamos do lado das milícias, dos grandes empresários, das grandes mineradoras multinacionais e daqueles que nos exploram dia a dia. De todas as formas. Eu já escolhi meu lado, sem dúvida estou do lado dos que não querem mais armas, nem mais tragédias anunciadas. Do lado daqueles que querem preservação da vida e uma luta pela dignidade da vida. E vocês?
FOTO: Equipe sub-17 do Flamengo. Divulgação FERJ
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