‘Devemos viver como pessoas’ – Crônicas de um Haiti em chamas

Tradução: Gabriel Santos, Maceió, AL

Texto original: Lautaro Rivera

O clima social está esquentando no Haiti, enquanto as frustrações sociais se acumulam em um barril de pólvora que permanece sempre aceso. Depois das intensas mobilizações do ano passado, com epicentros maciços e radicais nos meses de julho, outubro e novembro, a trégua no final do ano deu origem a um natal materialmente precário, mas calmo. Mas as festividades não passavam de uma breve pausa. Logo as batalhas contra o alto custo de vida, a corrupção endêmica, a crise social e econômica e a ausência de um modelo de nação para a primeira república independente que surgisse da história deste lado do Rio Bravo retornariam pelas ruas do país. Os intensos protestos já levam oito dias e nada parece indicar que eles vão parar.

Os primeiros sintomas deste novo ciclo de protestos se manifestaram em nossa própria cidade, quando jovens insatisfeitos com a ação policial em uma disputa de terras incendiaram a delegacia de polícia na cidade de Montrouis, no departamento de Artibonite. A resposta, previsível, foi a rápida militarização de uma cidade pacífica. No dia seguinte ao incidente, as forças especiais do CIMO já estavam tirando seu longo cochilo em frente ao mercado da cidade, e ninguém conseguia se lembrar de como haviam chegado lá ou com qual propósito. Mas logo o conflito começou a se multiplicar em diferentes áreas do país até o dia explosivo de 7 de fevereiro, aniversário da fuga do país do ditador Jean-Claude Duvalier.

Desde então, começaram a se combinar todo o repertório de ações de rua imagináveis: concentrações esporádicas, imensas mobilizações espontâneas, caravanas de motos, greves de transportadores, a queima de delegacias de polícia e prédios do governo e, sobretudo, milhares de barricadas que rapidamente tomaram a capital e os dez estados do país.

Durante semanas, a escassez de combustível veio piorando. As longas filas que povoavam os postos de gasolina deram lugar a portas fechadas e a pistas vazias, sem carros ou transeuntes. Os últimos litros de circulação legal foram engolidos pelo contrabando, e agora só é possível obter combustível nas ruas, depois de negociações árduas e a preços impossíveis. Nesta grande confusão está o pequeno consumidor que tem toda a perda, desde o motorista que precisa ligar sua motocicleta para comprar sua ração diária de arroz com feijão, até o vendedor que precisa acender seu isqueiro para continuar suas vendas no varejo. As causas da escassez estão relacionadas aos empréstimos contraídos pelo deficitário Estado haitiano, que deve pagamentos milionários à empresa que concentra as importações. Os monopólios, sem remorsos, acertam contas esmagando os dentes de toda a população com o poder de paralisar o país. As ruas estão quase vazias e os preços de todas as coisas, desde o transporte até a comida, estão nas nuvens. A economia diária é desfeita, e a rotina daqueles que lutam por sua subsistência no país mais pobre (ou melhor, empobrecido) de todo o hemisfério está paralisada.

Enquanto a agenda internacional teimosamente olha para a Venezuela atacada, a grave crise haitiana passa, mais uma vez, praticamente despercebida. E é que as razões para o isolamento experimentado pelo país caribenho, apresentam nos fatores políticos e econômicos motivos ainda mais cruciais que sua condição insular ou sua singularidade linguística.

O governo nacional ensimesmado Jovenel Moïse, atravessado por oito dias de protestos e rejeitado por praticamente todos os setores da vida nacional haitiana acaba por fazer um alinhamento com diplomacia de guerra americano, reconhecendo junto da OEA, a legitimidade do autoproclamado Juan Guaidó, o “White Dog”, como foi chamado o “presidente” recentemente ungido pelo Departamento de Estado norte-americano.
A política abstencionista que o Haiti tinha mantido juntamente com outras nações do Caribe, tinha sido determinante para evitar que os Estados Unidos e o Grupo de Lima expulsassem a Venezuela desse organismo inter-regional, em fevereiro de 2018. Mas a política pragmática e o mendicante de Moïse, raramente poderia ser confundido com afinidade ideológica com o socialismo do século XXI. Ao ser puxado pela coleira, Moïse voltou rapidamente aos trilhos, traindo os laços históricos do país com a Venezuela e, especialmente, a política generosa apoiada por Hugo Chávez Frias e a plataforma de integração energética Petrocaribe desde 2005.

Assim, quase ninguém aponta hoje que, se é para combater emergências humanitárias, êxodo migratório, insegurança alimentar, repressão estatal e ausência de democracia, o foco de preocupação deve ser o Haiti devastado e os olhares cautelosos sobre sua classe política e seus adereços internacionais. Mas é evidente, dado o apoio irrestrito dos Estados Unidos ao apartheid israelense ou o regime desordenado da monarquia absolutista saudita, que o objetivo é garantir a exploração do petróleo bruto venezuelano e completar o processo de recolonização continental inaugurado com o golpe em Honduras exatamente uma década atrás. Os demais são apenas álibis mais ou menos imaginativos, como as armas de destruição em massa do Iraque ou o patrocínio do terrorismo por Cuba.

Para essa indiferença retumbante para a crise haitiana, também devemos adicionar uma explicação ligada ao racismo secular de um colonialismo estruturado desde os dias da escravidão e do comércio mundial plantacionista triangular. Racismo que faz com que vários setores, incluindo os progressistas ou os “esquerdistas”, observem com olhos birlhandos a “elegância” dos combates (certamente digna) nas ruas parisienses dos milhares de coletes amarelos, mas desprezem as batalhas desesperadas de pessoas negras no Terceira pessoas Mundo, que continuam a se mobilizar pelas casas das centenas de milhares, e até milhões de pessoas, desde o levante popular de julho de 2018.

Se à corrupção endêmica adicionarmos a delicada situação da economia e da sociedade haitiana, podemos facilmente compreender o rancor acumulado e desejo de transformação social, expressa nas ruas pelo mosaico que, contraditoriamente, expressa a união e setores políticos, urbanos e rurais, eclesiásticos e empresários, conservadores e radicais. Alguns indicadores econômicos podem nos ajudar a resumir rapidamente a situação: a desvalorização da moeda nacional, o gourde, de 20 por cento sobre 2018; uma inflação de dois dígitos que alguns analistas estimam na ordem de 14 ou 15%; o desperdício de recursos públicos em regalias de todos os tipos absorvidas pela classe política; a má-gestão econômica de um estado que não tem sequer um orçamento oficial, já que o programado para o ciclo 2018-2019 foi retirado; os níveis alarmantes de desemprego e a completa informalidade do mundo do trabalho; a ruína arruinada da produção agrícola; o êxodo permanente de jovens mulheres, expulsas do campo para a cidade e daí para países onde são discriminados e superexplorados; e, finalmente, a fome que atinge duramente praticamente 60% de toda a população.

A palavra “ladrão” tem no crioulo, a língua nacional dos haitianos, uma conotação negativa muito maior do que em outras línguas continentais, como português, espanhol e inglês. Não é um termo de uso frequente ou uma palavra de conotação leve. O roubo é considerado uma ofensa grave para toda a comunidade, por isso, em algumas áreas rurais ele ainda é severamente punido, com métodos de justiça auto-geridos pelas próprias comunidades. É por isso que caracterizar o presidente da república e toda a classe política como ladrões, é um fato menos freqüente e ainda mais significativo do que em muitos dos nossos países.

A acusação está relacionada com o desvio de fundos públicos, comprovados pelo Senado haitiano e investigados pelo Superior Tribunal de Contas, que culpa altos funcionários do estado da atual administração e a gestão presidencial anterior de Michel Martelly. A soma, desperdiçada pela classe política local de acordo com várias capitais, é de cerca de 3.800 milhões de dólares, destinados a atender às necessidades infraestruturais infinitas do país. São fundos que a Revolução Bolivariana concedeu generosamente no âmbito dos programas de desenvolvimento da Plataforma Petrocaribe.

Um carro blindado das Nações Unidas, conduzido por militares estrangeiros, perdeu o controle e bateu em um tap tap, o meio popular de locomoção haitiana. O saldo, trágico, foi de quatro mortos e nove feridos. Um acidente involuntário, sem dúvidas. Mas o espanto e raiva dos cidadãos comuns não parece ser devido à inexperiência do condutor, mas à incapacidade de entender por que um carro blindado, um veículo de guerra, circula ameaçadoramente por um país pobre, sem forças armadas e que não representa uma ameaça para a segurança de países terceiros.

Há 15 anos começou a chamada pacificação do Haiti, liderada pelas Nações Unidas e consagrada na intervenção de uma força militar e civil multilateral, a MINUSTAH (agora MINUJUSTH). Mas hoje, a principal ameaça para a população, em vez de insegurança local (baixa, se comparada com o resto da região), e até mesmo mais do que o poder representado pelas suas próprias forças policiais, é a presença de forças de ocupação. Abusos sistemáticos contra as mulheres dos chamados “guetos”, entre 7 mil e 9 mil mortes pela epidemia de cólera trazida ao país por um contingente de soldados nepaleses, e um número desconhecido de jovens mortos nas favelas, são contados da capital Port-au-Prince. No Haiti, como poderia acontecer na Venezuela, a chamada “ajuda humanitária” nada mais é do que um excelente álibi para violar a soberania territorial de nossas nações.

As forças policiais já reconhecem o saldo de dez mortos com os protestos. Cerca de meia centena e igual número de feridos, confirmadas enfaticamente por setores da oposição e movimentos sociais. Nos últimos dias, as ruas e redes sociais mostram uma série de imagens escabrosas. Jovens e crianças deitadas, morrendo, nas ruas da capital. Um militante popular resgatado por seus colegas, depois de ser abatido por uma bala policial nas proximidades do parlamento. Uma densa fumaça preta que cobre a cidade quase permanentemente, gerando um clima irrespirável. O mercado de Croix-des-Bossales, mil vezes incendiado, mil vezes reconstruído, novamente reduzido a um emaranhado de ferro retorcido.

Mas também há, sem dúvida, imagens heróicas, com esse heroísmo típico de pessoas simples, sem ter para onde correr, que se encorajam. Estar nas ruas do Haiti hoje é muito mais que uma opção política e um gesto de coragem: é uma necessidade vital, o cross desesperado de um povo contra as cordas. Homens em cadeiras de rodas ou com muletas marchando ao sol escaldante do meio-dia. Vendedores e mulheres idosas gritando seus slogans ultrajantes em face da repressão policial. E também, pequenos gestos de solidariedade internacional que brilham como luzes fracas e chegam ao país, quebrando as barreiras da linguagem e da preguiça.

Nou gen dwa viv tankou moun. “Temos o direito de viver como gente”, diz uma faixa que sintetiza um programa mínimo, elementar e meramente humano. O programa de um povo que ainda se lembra das glórias do passado, que ainda acredita nas possibilidades de regeneração nacional e que fanaticamente, e pela segunda vez, busca sua independência e dignidade. Um povo que sofre, sim, mas jamais se submete.