Baú de ossos da cultura: Da Idade de Ouro à Idade do Ferro

Paulo César de Carvalho

“Pode-se determinar a priori o nível de civilização de um povo conhecendo-se unicamente a espécie de metal – ouro, prata, cobre ou ferro – com que fabrica suas armas, seus instrumentos ou seus adornos.”
(Karl Marx e Friedrich Engels, Cultura, arte e literatura: textos escolhidos, Expressão Popular, São Paulo, 2012, p. 101).

PARTE 1 – Uma questão de método de conhecimento: do átomo ao universo, do ouro à civilização

Para quem não tem uma visão de conjunto da extensa obra de Marx e Engels, não enxergando o modelo teórico de conhecimento que eles propuseram, a epígrafe pode parecer reducionista: como seria possível, afinal, determinar o grau de civilização de um povo só pelo tipo de metal utilizado na fabricação de ferramentas, de armas e adornos? Para chegar da parte (o metal) à totalidade (a civilização), de fato, há um longo caminho a percorrer: uma distância tão grande quanto a que separa a terra do céu, ou o osso do macaco à nave do astronauta (como no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, que comentamos nos artigos anteriores).

Por isso mesmo, antes de explicar a epígrafe e o que ela tem a ver com a cultura (objeto de análise desta nossa série), não é demais repetir o óbvio: a correta compreensão de um elemento particular implica a sua localização precisa dentro de uma totalidade, que é resultante de uma complexa dinâmica de relações entre múltiplos “elementos desiguais e combinados” (como diria Trotski). Aliás, o filósofo Leandro Konder explica assim essas raízes hegelianas fundadoras do método dialético marxista:

As coisas não existem soltas no espaço e no tempo. Compreender algo implica compreender o seu movimento, o seu quadro circunstancial particular; implica apreender-lhes as leis a partir das leis do todo em que se insere (…). A verdade é atingida em graus diversos, e em seus graus mais profundos só é alcançada a partir do todo: o processo em que a verdade se realiza é um processo de totalização. (Leandro Konder, Os marxistas e a arte, Expressão Popular, São Paulo, 2013, p. 30).

Deixemos o próprio Marx comentar um pouco essas “mediações” entre os níveis “micro” e o “macro” no processo de conhecimento da realidade (para não dizer que não falamos novamente de Kubrick, na linguagem cinematográfica – bem guardadas as devidas proporções – é como se fossem as relações entre o “primeiríssimo plano” e o “plano geral”, na construção da totalidade narrativa):

O que se pode demonstrar no detalhe é ainda mais fácil de apresentar quando as relações são apreendidas em dimensões maiores; inversamente, análises muito gerais põem em dúvida se o resultado se confirmará no detalhe. (Karl Marx, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, Boitempo, São Paulo, 2018, p. 32).

Não por mera coincidência, esse trecho faz parte da tese de doutorado em que Marx confrontou duas concepções (atomistas) da matéria na antiga “filosofia da natureza”. Não deixa de ser muito sintomático, logo, que o seu projeto teórico hercúleo de fazer “uma crítica impiedosa de tudo o que existe” tenha começado justamente pela “menor partícula do Universo” (no paradigma científico da época). Sem querer abusar da digressão nem do trocadilho, recordemos que um dos “átomos” constitutivos do “universo” teórico de Marx foi justamente este filósofo grego que nomeou o átomo, negando a tradição do “idealismo platônico”: Epicuro resgatou a matriz “materialista” de Demócrito não só para reafirmar a validade da “filosofia da natureza” silenciada pelo coro hegemônico da escola idealista de Platão, mas sobretudo para reformular o princípio epistemológico de que é a matéria – e não entidades divinas [1], fantásticas, mitológicas – a verdadeira base estrutural do Universo.

Voltando à síntese de Marx e Engels na epígrafe, o que isso tudo tem a ver com o ouro e o ferro como medidas de distintos graus de desenvolvimento civilizatório? Epicuro afirmava que as substâncias são diferentes quanto à “dureza” em razão de os átomos estarem mais próximos ou afastados: quanto maior a sua proximidade, maior a solidez do corpo; quanto maior a distância entre eles, maior a maleabilidade do material. Para o marxismo, não interessa que o ouro se distinga do ferro porque este é mais duro e resistente do que aquele: essas propriedades, tomadas em si mesmas, nada dizem, a não ser que discriminam o ouro e o ferro.

O que importa, pois, não é o conhecimento de que a “maleabilidade” do ouro e a “dureza” do ferro são decorrentes da maior ou menor proximidade dos átomos, mas que o metal mais duro é o mais resistente. Por um motivo simples de ordem prática: mesmo sem saber o que era átomo, o homem da “Idade do Ferro” já tinha plena consciência de que não seria com o ouro que conseguiria enfrentar as forças adversas da natureza. Depois de usar o cobre e de substituí-lo pelo bronze [2], sabia que precisava de um metal ainda mais forte para tornar possível o que já se tornara então necessário: foi o emprego do ferro, então, que lhe permitiu superar muitos dos vários obstáculos que surgiram, ampliando as condições materiais de existência.

Passemos a palavra a Marx [3]:

A grande importância dos metais em geral, no interior do processo imediato de produção, está ligada à sua função de instrumento de produção. Independentemente de sua raridade, a grande maleabilidade do ouro e da prata comparados com o ferro e até com o cobre (no estado de endurecimento em que os empregavam os antigos) impede que se lhes utilize para ferramentas (…). Inúteis no processo imediato de produção, não são indispensáveis como meios de existência, como objetos de consumo. (Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política, Expressão Popular, São Paulo, 2008, p. 197).

O conhecimento da natureza só se justifica como instrumento para que o homem a enfrente e subjugue, transformando-a em meio de produção e reprodução da existência. O epicurismo é uma “filosofia da natureza”, o marxismo é uma “filosofia da história”: o seu objeto de investigação é o próprio homem na luta histórica contra a natureza e contra o próprio homem; o próprio homem é o sujeito ativo do conhecimento. Como Marx não cansou de repetir, ao transformar a natureza, os homens não produzem apenas os bens necessários à sua existência, mas também a si mesmos, bem como as relações sociais em que se inscrevem.

Posto isso, lembremos que a cultura – conforme começamos a definir no primeiro artigo desta série – surge como atividade prática, ligada ao cultivo da terra (a agricultura) e à criação de animais (a pecuária). Nessa perspectiva, para compreender o que diz a epígrafe, é preciso considerar que o ouro, sendo o primeiro metal descoberto pelo homem, é índice de um estágio civilizatório mais primitivo: é extraído em forma pura diretamente da natureza, e não produzido pelo trabalho humano, como o bronze, que requer conhecimentos técnicos para misturar zinco, estanho e cobre, ou o ferro, que exige domínio da metalurgia (sem fornos de alta temperatura, por exemplo, impossível fabricar o metal).

Chamando novamente a atenção para o óbvio, não foram arados, machados, enxadas, enfim, quaisquer ferramentas de ouro que facilitaram o trabalho no campo, permitindo ao homem desenvolver a agricultura e aumentar a produção: foi o ferro, e não o ouro, o metal responsável pelo progresso da época, pelo aprimoramento da “cultura material” do período. Mas o ouro – não esqueçamos – irá desempenhar outro papel significativo na história da cultura, representando outros valores e outros “valores”, tanto materiais quanto espirituais… Problematizando a epígrafe, se o ferro valeu de fato mais do que o ouro “num nível de civilização”, como explicar que, noutro nível (também de análise), foram necessários milhões de enxadas, arados e machados – nas mãos de milhares de homens e mulheres – para sustentar uma única coroa de ouro na cabeça de um único homem, conferindo-lhe o poder supremo de “homem único”?

Para concluir, sem encerrar, eis a questão (de método): há mais mediações entre a cultura material “de ferro” e a cultura espiritual “de ouro” do que supõe o vão materialismo mecanicista da “filosofia da natureza” dos pseudomarxistas de plantão. Nesta nossa odisseia pela teoria do conhecimento de Marx e Engels, em busca de uma teoria da cultura “perdida” (a ser “encontrada” entre os vários níveis dos múltiplos fragmentos de seus escritos – acabados e inacabáveis – não sistematizados), entre o tanto que não conhecemos, não desconhecemos o aviso aforismático de Hegel inscrito a ferro e fogo na porta da consciência: Na facilidade com que o espírito se satisfaz, pode-se medir a extensão de sua perda.

Moral da história, eis a contradição à espera da síntese dialética do leitor: se a maleabilidade do ouro é a sua derrota, e se a dureza do ferro não ganha medalha de ouro, então a vitória… É preciso não ser “Rubião” para decifrar o irônico enigma machadiano de Quincas Borba: relendo com Marx “o mestre na periferia do capitalismo” – depois de Epicuro, Hegel, muitos pesos, medidas e “mediações” – são ou não as enxadas de ferro que garantem aos vencedores as batatas de ouro? Enfim, não dá para resolver a equação da epígrafe sem aplicar a “lei do desenvolvimento desigual e combinado” dos metais na história dos homens.

*Paulo César de Carvalho (Paulinho) é militante da RESISTÊNCIA-PSOL.

NOTAS

[1] A tese de doutorado de Marx é de 1841. Entre 1845 e 1846, ele escreverá com Engels A ideologia alemã, fazendo críticas impiedosas a um dos componentes fundamentais da “cultura espiritual”, a religião: Como se esse “reino de Deus” tivesse alguma vez existido em qualquer outra parte que não na imaginação, e os doutos senhores não vivessem continuamente, sem o saberem, no “reino dos homens” para o qual agora procuram caminho (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, Expressão Popular, São Paulo, 2009, p. 61). Um ano antes, em 1844, Marx dissera o seguinte: A supressão da religião como felicidade “ilusória” do povo é a exigência da sua felicidade “real”. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões (Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, Boitempo, São Paulo, 2013, p. 151-152).    

[2] Ver o conceito de “cultura acumulada” nos nossos artigos anteriores.

[3] A obra Contribuição à Crítica da Economia Política é de 1859: as formulações nela presentes foram feitas, portanto, dezoito anos após às que constam da sua tese de doutorado. O trecho foi extraído do capítulo 2, “O dinheiro ou a circulação simples”, nota 4, “Os metais preciosos”.