*Bruna Piazzi é cientista social, fotógrafa e educadora popular. Participa da cobertura do Esquerda Online em Brumadinho (MG)
“Espero que vocês sejam sensíveis”. Foi o que a nossa anfitriã Angélica nos disse antes que saíssemos de casa rumo à Brumadinho – MG ontem. “As pessoas estão sofrendo muito, completou”.
Apesar do ecoar das suas palavras na minha cabeça e de ter acompanhado as notícias trágicas nos últimos dias, não acredito que estava preparada para o que iriamos encontrar. Aliás, quem estaria preparado para tanta dor?
Ao chegar em Brumadinho, sete dias após o crime socioambiental mais perverso dos últimos tempos, pude sentir a atmosfera densa de uma tragédia que não se encerrava com o derramamento da lama, nem muito menos tinha início com ela.
A Vale, empresa responsável pelo crime, atuava de maneira cirúrgica tentando mitigar o sofrimento alheio, apresentando-se, mais uma vez como uma solução para a vida do trabalhador. Ao contrário da escuta. O grito silenciado. A potência que a tristeza e a indignação continham precisava ser engolida, antes que fosse tarde. Antes que se tornasse perigosa.
Assim como a lama, o sofrimento, angústia e dor da perda de familiares e amigos era novamente colocado em segundo plano. Soterrados. A prioridade no momento era de se achar os corpos, para depois pensar em uma solução para os que não foram. Até aí, justo. Afinal é direito nosso poder enterrar os nossos. Mas qual destino que nos seria reservado?
Conforme caminhava pelo Córrego do Feijão, reparava nos olhares atônitos daqueles moradores que ainda tentavam situar-se no espaço e no tempo presente. Como tocar a vida em frente?
As pessoas vagavam. Ativistas, militantes e missionários acompanhavam seus passos, tentando oferecer conforto de todos os tipos. Às vezes um abraço ou um gesto dava conta de suportar mais um segundo ali. Talvez porque tinha olho no olho. Talvez porque tinha afeto. Talvez porque era só o que tinha.
Durante a tarde, visitamos a casa de um casal de pequenos agricultores, a Isamara e Pedro (foto). A lama havia tomado grande parte da casa deles e a Vale ainda não tinha tomado nenhuma providência. Estavam sem água, sem luz e com poucos mantimentos. Dois corpos foram encontrados no quintal do casal.
“O sonho acabou”, me disse Isamara, enquanto recordava da vida tranquila que tinham optado por levar no último ano desde que haviam juntado todas as economias e mudado-se de Belo Horizonte para o Parque da Cachoeira. “O que aconteceu não foi acidente, foi um crime. Eles acabaram com nosso futuro, roubaram nossos sonhos”, completou Pedro.
Em meio às fotografias que fazia, olhei para o chão que pisava. Havia muita lama. Muita lama mesmo. Por baixo dessa lama, haviam pessoas. Pessoas e suas histórias; suas coisas, casas, seus objetos de trabalho. Calçados. Vira e mexe enquanto andávamos eu via um ou outro chinelo. Daqueles que conseguiram correr para salvar-se. Ou não.
Havia uma vida soterrada embaixo de mim. Não uma só, mas muitas vidas. Não também só aquelas ceifadas pelo tsunami da semana passada. Mas também aquelas vidas roubadas pelo trabalho, pelo sol à pino, pela necessidade de produzir para sabe-se lá quem e em troca receber pouco ou quase nada para si.
Havia também a vida de um rio, ou talvez de dois, três. De um ecossistema inteirinho. Disseram que em vinte dias a lama chegaria ao São Francisco. Havia a vida de milhares de ribeirinhos. De indígenas. Havia a vida que fazia sentido só porque tinha rio e sem o rio, havia somente o vazio.
O silêncio daquela fração de segundo fora interrompida pela passagem de um helicóptero que resgatava mais um corpo. Olhamos para o alto. Talvez para tentar resgatar também o pouco de esperança que ainda nos pertencia diante de todo o cenário.
O Frei Agostinho – que nos acompanhava desde o início na caminhada pelo Parque da Cachoeira – nos chamou para voltar para a cidade. Abracei o Pedro, a Isamara, a família que estava lá. Me despedi. Tinha algo que queria dizer, mas não tinha palavras na hora. Não havia sentimento de pena, mas de indignação.
Não havia também muito mais o que pudesse fazer.
Ao voltarmos para a cidade de Brumadinho me peguei observando o assédio da grande mídia para com o sofrimento alheio. Cenas bizarras. O capital lucra até com a dor do outro. Precisava voltar para casa. À noite haveria um culto em homenagem aos mortos, mas não pude participar.
Sob o céu que anunciava o final de tarde, conforme andávamos de carro rumo à Contagem, observava a paisagem urbana. Quantos tantos outros soterramentos haveriam ali?
Empilhar corpos para contá-los depois. Talvez seja disso que estejamos falando há mais de 500 anos.
Brumadinho, 02 de fevereiro de 2019.
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