O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos anunciou que preparou uma primeira versão da medida provisória que irá regulamentar o ensino domiciliar no país, a ser enviada ao Congresso Nacional em 01 de fevereiro. O tema faz parte de 35 medidas prioritárias que o governo Bolsonaro pretende aprovar nos primeiros cem dias. Confira abaixo quatro ideias sobre os objetivos da ministra.
1. O convívio escolar é parte da formação: É na escola que se aprende a lidar com a diversidade
A ministra Damares Alves (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) disse em entrevista que a educação domiciliar não prejudicaria a socialização da criança, porque existem outros espaços em que ela conhece pessoas (cursos, vizinhos, igreja etc). No entanto, está desconsiderando que o convívio escolar não se trata apenas de garantir que a criança tenho amigos (o que por si só já é importante).
O convívio escolar é o momento de aprender a viver em sociedade, de descobrir que construímos coisas coletivamente e que precisamos respeitar o convívio. É na escola que se aprende que cada um tem a sua vez de falar, a ouvir a opinião do colega, e mesmo discordando, que é necessário respeitar.
É no convívio com pessoas diferentes que aprendemos a lidar com a diversidade. Alguns pais desejam a educação domiciliar para afastar os filhos de ambientes escolares onde ocorre o bullying (formas de preconceito), no entanto, essa não é a solução para este problema. Em casos de bullying, a família deve atuar em conjunto com a escola para combater a prática e não só proteger as vítimas, como educar os agressores. Isolar a criança vítima de bullying do ambiente escolar não irá prepará-la para enfrentar o preconceito ao longo da vida, bem como não irá diminuir o preconceito dos agressores. A escola deve ser o espaço de combate a todas as formas de bullying.
2. Novo governo estimula a desconfiança e perseguição aos professores
Um discurso cuidadosamente preparado pelos atuais ocupantes do governo, por meio de projetos como o Escola sem partido, criou nos últimos anos uma grande desconfiança dos pais em relação à capacidade dos professores. Baseando-se em um discurso conservador e muito pautado por visões religiosas de alguns grupos, a ideia que se gerou foi que os professores ensinariam nas escolas coisas contrárias aos valores das famílias.
Assim, debates sobre gênero, sexualidade e política, deveriam ser banidos do espaço da sala de aula, pois ensinar os alunos a refletir e questionar não deveriam ser funções da escola. Esse é o discurso da intolerância a qualquer ideia diferente da sua.
A escola, como instituição coletiva, deve ser plural, democrática, aberta, e por isso incluir temas relacionados ao cotidiano dos alunos. Ela deve ser um espaço em que qualquer estudante se sinta à vontade para expressar suas opiniões e onde possa aprender a expressá-las sem agressividade, baseando-se no diálogo. Retirar o aluno desse ambiente para isolá-lo em casa significa estar fechado à possibilidade do diálogo com ideias diferentes das da família.
Isso significa que a família está errada e a escola certa? Não. Significa que aprender a ouvir ideias diferentes das nossas é parte do aprendizado do convívio em sociedade e do exercício da cidadania e da democracia. Se a família não aceita expor seus filhos a ideias diferentes, então quem está doutrinando é a própria família, ao negar aos jovens a liberdade de se desenvolver.
Quanto às questões de gênero e sexualidade, debates hiper-valorizados pelos setores conservadores, ocorre uma grande confusão porque os pais têm receio que seus filhos tenham um gênero diferente do designado ao nascer, ou uma orientação sexual diferente da heterossexual. O pensamento conservador diz que quem nasce com o sexo feminino deve ser mulher e quem nasce com o sexo masculino deve ser homem, e é aqui onde ocorre uma incompreensão de que o gênero é uma construção social (ou seja, os conceitos do que é feminino e masculino mudam de uma sociedade para outra, bem como de época). A realidade é que independente do quanto se eduque uma pessoa que nasceu com certo sexo biológico para seguir os comportamentos de certo gênero, o verdadeiro gênero da pessoa se revela ao longo da vida; hoje há inclusive pessoas que não se identificam com essa definição de dois gêneros e buscam novas formas de se expressar. A escola pode debater esse assunto, mas ela não vai alterar o gênero de nenhum aluno, bem como o indivíduo ser educado somente em casa não vai ser capaz de modificar o que ele sente com relação a isso.
A família pode sim ensinar seu valores e sua religião, mas a escola é o espaço em que o aluno terá contato com a diversidade da sociedade e poderá aprender que não existem somente os valores e a religião de sua família. E mais do que isso, poderá aprender a respeitar.
3. Ser alfabetizado não é o suficiente para alfabetizar
Um exemplo pessoal: sou professora de História e em 2014 estava dando aulas na rede pública estadual de São Paulo. Tive uma turma de 7º série e descobri uma aluna que não sabia ler, mesmo já estando nessa série avançada. Como professora, fiquei preocupada com a situação e tentei auxiliar a aluna, separando um tempo nas aulas para sentar com ela e tentar ajudá-la com a alfabetização. Foi quando descobri que alfabetizar uma criança é um processo delicado, que exige muita dedicação e principalmente formação específica. O fato de eu ser alfabetizada e ser professora de outra disciplina não era o suficiente para me dar ferramentas adequadas para alfabetizar uma aluna, eu precisava ter uma formação própria para isso. Foi a partir daí que passei a realmente valorizar as professoras da educação infantil e das séries iniciais que fazem esse complexo processo de dar as bases necessárias ao aprendizado de toda criança.
Eu percebi que não basta ser alfabetizado para ter a capacidade de alfabetizar uma criança. No entanto, a proposta da educação domiciliar coloca os pais, independente de sua formação, como capacitados para fornecer a educação de conteúdos escolares. Sou habilitada como professora de História e não tenho a arrogância de me considerar capacitada para lecionar outras disciplinas, pois sei da formação necessária a cada uma. Como uma única pessoa, pai, mãe ou responsável pode se sentir totalmente habilitada a ensinar todos os conteúdos de um currículo escolar?
Mas a pergunta que precede é: por quê os pais querem tirar essa responsabilidade das mãos de profissionais preparados para isso?
4. Proposta oculta descaso com a educação pública
Quem são os pais que estão movimentando esse debate? Existe uma associação chamada ANED – Associação Nacional de Educação Domiciliar, que possui cerca de 13 mil pessoas na página do Facebook (visualização em 31/01/2019).
Segundo Censo Escolar de 2018 o Brasil possui 8,7 milhões de matriculados na educação infantil, 27,2 milhões de matriculados no ensino fundamental e 7,7 milhões de matriculados no ensino médio, sendo desses 1,2 milhão de alunos da educação especial.
O governo Bolsonaro colocou como uma das suas prioridades dos primeiros cem dias uma medida que beneficia cerca de 13 mil pessoas e não propôs nenhuma medida que atenda à educação pública que responde a cerca de 43,6 milhões de crianças e adolescentes. A medida, conforme a própria Damares confirma, está sendo levada adiante não pelo Ministério da Educação, mas pelo ministério dela porque seria uma demanda das famílias.
Um dos argumentos da ministra é que em sala de aula o professor perde cerca de 40% do tempo em gerenciar a sala. O que ela desconsidera é que isso ocorre porque o descaso com a educação pública coloca um único professor em salas com 40 a 50 crianças, o que torna o ambiente inadequado para o andamento de uma boa aula, não à toa, muitas escolas da rede privada optam por turmas de no máximo 20 alunos, uma quantidade muito mais adequada. Assim, ao invés de propor uma redução de alunos por sala de aula, e aumentar a contratação de professores para suprir a demanda, a ministra considera que o aluno pode ter mais acompanhamento em casa.
A medida provisória para a educação domiciliar pode inicialmente estar atendendo o interesse de uma parcela ínfima das famílias, mas se torna uma ferramenta perfeita para justificar um desinvestimento na educação pública. Cabe aos pais se unirem aos professores e lutarem para que o Estado garanta uma educação pública e gratuita de qualidade a seus filhos.
Foto: Reprodução
*Tonne de Andrade é Licenciada em História pela USP e Mestranda em História Social.
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